segunda-feira, fevereiro 11, 2013

O Protocolo de Kioto é uma ficção.

Capital financeiro e mudança climática



Falta hoje um regime regulatório internacional que permita pensar que a economia mundial poderá reduzir sua pegada de carbono na atmosfera na velocidade exigida. O Protocolo de Kioto é uma ficção. E no setor financeiro é onde estão concentradas forças que se oporão fortemente a um acordo que evite o perigo da mudança climática catastrófica. (Na foto, a nevasca que acaba de atingir os EUA, apenas três meses após a tormenta tropical Sandy). 

Alejandro Nadal – SinPermiso
As forças do capital financeiro dificultarão muito o enfrentamento das mudanças climáticas. Alguns dizem que a estrutura do setor financeiro não facilitará a transição para uma economia de baixo nível de carbono. O problema é mais grave: o sistema financeiro é um potente obstáculo para prevenir uma catástrofe derivada do aquecimento global.
Para avaliar a dimensão do perigo, é importante recordar alguns dados. Na atualidade, a concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera alcança as 394 partes por milhão (ppm). O CO2 é o gás de efeito estufa mais comum (não é o único, nem o mais potente). Os modelos mais desenvolvidos sobre mudança climática indicam que só abaixo das 450 ppm de CO2 se tem uma probabilidade de manter o aumento de temperatura dentro da classe dos graus centígrados. Os cientistas consideram que esse patamar não deve ser rebaixado caso se queira evitar uma mudança climática catastrófica.
Estudos científicos consideram que para aumentar significativamente a probabilidade de permanecer abaixo deste patamar a economia mundial deveria limitar suas emissões para o período 2000-2050 a 886 gigatoneladas de dióxido de carbono (GtCO2). Na primeira década do século se emitiram 321 GtCO2, de modo que só nos resta um volume disponível de 565 gigatoneladas para o período 2010-2050.
Dados da organização Carbontracker Initiative revelam que se se extraíssem e queimassem as reservas mundiais conhecidas de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás) teríamos emissões superiores as 2.795 GtCO2. Ou seja, essas reservas contém cinco vezes mais carbono do que o teto acima mencionado de 565 GtCO2. Extrair e usar essas reservas poderia levar à concentração de CO2 na atmosfera para as 700 ppm, o que mudaria o planeta tal como o conhecemos.
Agora, as reservas de combustíveis fósseis das 200 empresas mais importantes de carvão, petróleo e gás no mundo (empresas cotizadas em bolsas de valores) tem reservas com um potencial de carbono de 745 GtCO2. Isso quer dizer que se estas empresas extraírem e queimarem suas reservas estaremos rebaixando para 180 GtCO2 o volume que nos resta disponível para o período 2010-2050 (as 565 GtCO2 acima mencionadas). O problema é ainda mais sério porque estas cifras não incluem as empresas estatais e tampouco levam em conta as gigantescas reservas de gás natural que existem no xisto nos Estados Unidos e em vários outros países.
O problema é que as reservas nas mãos destas companhias já estão anotadas em seus balanços com um enorme valor monetário. Uma avaliação destas empresas admite que essas reservas serão efetivamente realizadas, o que significa que serão extraídas e utilizadas. Do ponto de vista contábil, ninguém está preocupado se a utilização dessas reservas é suficiente para ultrapassar o perigoso patamar dos graus centígrados. A mudança climática não é um conceito contábil.
Para dizê-lo de outro modo, se existisse uma autoridade capaz de aplicar a restrição das 565 GTCO2 para os próximos quarenta anos, estas empresas somente poderiam queimar umas 150 GtCO2. O restante, carbono não injetado na atmosfera, seria de ativos sem valor e se traduziria em perdas colossais para os investidores que comprometeram recursos nessas empresas.
Essas 200 empresas do mundo da energia fóssil têm um valor em bolsa equivalente a 7,4 trilhões de dólares. Os países com maior potencial de gases de efeito estufa nas reservas de empresas que operam em bolsas são Rússia, Estados Unidos e Reino Unido. E nas bolsas de valores de Londres, São Paulo, Moscou, Toronto e do mercado australiano até 30% da capitalização de mercado está vinculada a combustíveis fósseis.
Estamos na presença de um conflito de dimensões históricas: de um lado está a comunidade científica advertindo para não se queimar essas reservas de combustíveis fósseis e do outro estão as empresas e investidores que tem interesse em realizar seus ativos (extrair e usar essas reservas). Quem prevalecerá? Nos últimos 30 anos, o setor financeiro do mundo foi capaz de dominar a política macroeconômica. Com efeito, as prioridades da política monetária e fiscal do mundo inteiro respondem hoje (inclusive em meio à crise) às necessidades do capital financeiro. Por que seria diferente no que diz respeito às políticas sobre mudanças climáticas?
Hoje carecemos de um regime regulatório internacional que permita pensar que a economia mundial poderá reduzir sua pegada de carbono na atmosfera na velocidade exigida. O Protocolo de Kioto é uma ficção e a única coisa que resta é um “compromisso” para se chegar a um acordo em 2015 que deverá entrar em vigor em 2020. No setor financeiro estão concentradas forças que se oporão com tudo a um acordo que evite o perigo da mudança climática catastrófica.
Tradução: Katarina Peixoto

Fonte: Carta Maior, Meio Ambiente| 11/02/2013.

sexta-feira, fevereiro 08, 2013

nenhum lugar

Esquecer

Importa o tempo preso numa caixa
Como sussurar no ouvido da procura
Andar só mesmo lendo seu sorriso
Cordas virando uma agonia em vida

Cardo e poeira sobem nos ombros
A sorte que abandona os que amam
Ou tentam achar um oásis sem vento
E secam o leite do que é esquecido

Caem os dias do seu afastamento
Danço como um pássaro que pesa
Porque ter asas pouco interessa
Quando não se chega a nenhum lugar



domingo, janeiro 27, 2013

O modelo adotado pela China foge completamente de exemplo a ser seguido

Notas sobre o “pibinho” da China
Desaceleração da economia chinesa preocupa governos e grandes corporações de todo o mundo. O grande debate, porém, deveria ser o de como compatibilizar o desenvolvimento econômico e a inclusão de parcelas da população ainda à margem dos benefícios do “progresso”. E aí, de fato, o modelo adotado pela China foge completamente de exemplo a ser seguido.
Agora os resultados são oficiais. Acabam de serem divulgadas as informações a respeito do desempenho da economia chinesa para o ano passado, de acordo com o calendário civil do mundo ocidental. Apesar de boa parte de 2012 ter sido do ano do dragão para o calendário chinês, o mundo todo se volta para a performance econômica do gigante do Oriente, com um olhar meio contraditório. Afinal, se levarmos em consideração o ritmo de crescimento dos anos anteriores, alguns analistas chegam a afirmar que a China apresentou um “pibinho”. E bota aspas de ironia na expressão! Mas como havia quem aguardasse ingenuamente por um crescimento maior, digno do vigor daquele mítico animal, a revelação feita pelas autoridades chinesas pode mesmo beirar a frustração.
De acordo com os relatórios produzidos pelo Escritório Nacional de Estatísticas da China, os números definitivos consolidados apresentam um crescimento do PIB chinês de 7,8%. Esse patamar de atividade econômica significa um importante recuo face ao que havia sido realizado em 2011, uma vez que naquele período o PIB do país havia subido 9,2%. O dado fica ainda mais contrastante caso comparado com o desempenho médio anual da última década, quando o produto cresceu a um ritmo de 10,7% a cada 12 meses.
Desaceleração na China e frustração no Ocidente
Os temores e as decepções expostas por representantes de governos, organismos multilaterais, corporações empresariais e do mundo das finanças em geral são compreensíveis. E, reconheçamos, sentimentos desse tipo são também partilhados por entidades ligadas ao movimento sindical e ao movimento dos países não-alinhados. Aliás, essas expectativas todas devem ser analisadas à luz das conseqüências que qualquer tropeço sentido pela economia chinesa pode provocar sobre os mais variados cantos de nosso planeta.
Afinal, essa que passou recentemente à condição da segundo economia mais robusta do mundo carrega consigo, simultaneamente, o enigma de ser uma via alternativa para o terceiro milênio e uma das chaves para a solução da crise internacional no curto prazo. Em mais uma dessas ironias da História, o destino dos países mais importantes do sistema capitalista contemporâneo está nas mãos daquilo que for decidido nas reuniões, encontros e demais instâncias ligadas ao Partido Comunista Chinês. Quem poderia imaginar um quadro desses há anos atrás? Nos tempos recentes, o desempenho dos Estados Unidos de Obama, da União Européia de Ângela Merkel, do Japão de Shinzo Abe dependem em larga escala daquilo que ocorre com a economia chinesa. No momento atual da crise internacional, então, a sino-dependência é ainda mais expressiva.
As alternativas para a recuperação da atividade econômica no chamado mundo desenvolvido dependem, em grande medida, da capacidade desses países encontrarem potencial de crescimento “para fora”. Apesar de constituírem mercados consumidores importantes, a saída “para dentro” tem esbarrado em limites como alto grau de endividamento das famílias, nível elevado de desemprego e outros elementos que contribuem para esse fenômeno a que estamos todos assistindo: a enorme resistência em sair da recessão. Por outro lado, como seus governos ainda operam com forte viés conservador em suas respectivas políticas econômicas, a prioridade tem sido a de evitar as perdas apenas do financismo. Com isso, a busca do crescimento via mercado interno tem se revelado quase como uma impossibilidade.
Importância da China para a economia mundial
A posição estratégica da China vem justamente de sua expressiva capacidade em influenciar o ritmo da atividade econômica no mundo inteiro hoje em dia. De um lado, ela assegura a demanda por produtos primários de grande parte dos países chamados “não-desenvolvidos”, comprando minérios de todos os tipos e produtos agrícolas de forma ampla e generalizada. De outro lado, ela atua exportando um volume impressionante de produtos industrializados para todos os continentes. Nos países de baixo nível de renda, a chegada de tais bens propicia o acesso - até então impossível - em razão dos preços agora mais baixos. Já nos países de renda mais elevada, como os Estados Unidos e a Europa, a inundação de produtos chineses baratos contribui para manter a inflação sob controle e para garantir o acesso da população, cuja renda disponível está sendo reduzida com a crise, a uma cesta de consumo mínima.
Além disso, há que se mencionar outro aspecto relevante. Ao longo dos últimos anos, o espaço nacional chinês vem se fortalecendo como uma alternativa nada desprezível para a continuidade do processo de acumulação e reprodução ampliada do capital, em escala internacional. Isso significa que as grandes corporações multinacionais optaram por aprofundar a política de “deslocalização”, ou seja, de transferir suas plantas industriais para além das fronteiras de suas nações de origem. Quando multinacionais mastodônticas passam a produzir aviões, veículos, celulares, computadores, produtos eletrônicos e demais bens simbólicos da nossa sociedade contemporânea na China, é sinal de que algo mais sério está em transformação subterrânea no modelo.
Corporações do mundo capitalista dependem da China
A lógica de funcionamento e crescimento dessas empresas não mais responde, exclusivamente, aos interesses dos dirigentes, acionistas e eleitores dos países originários. Para continuar operando de forma competitiva, elas devem crescer e reduzir custos. Assim, passam a depender cada vez mais das benesses do modelo assegurado pelo Estado chinês. Isso significa produção de bens e serviços a baixos custos, por meio de incentivos fiscais e reduzida remuneração da força de trabalho. E veja que não se trata dos modelos espoliadores do tipo “maquiladoras” do México. Os dirigentes chineses têm um projeto de nação em sua estratégia e impõem severas condições de transferência de tecnologia e de regulamentação estatal. Pouco a pouco, acumulam capacidade de fazer igual e/ou melhor, com empresas próprias. 
Por outro lado, a remuneração do estoque de capital internacional depende também do desempenho econômico da China. As grandes corporações internacionais transferem para seus acionistas espalhados pelo globo boa parte daquilo que conseguem realizar como lucro nas atividades de suas empresas operando no território chinês ou em articulação econômica com aquele país. E na outra ponta, os sucessivos superávits comerciais da China ao longo das últimas décadas converteram-se numa enormidade de reservas internacionais. Atualmente eles têm acumulado o equivalente a US$ 3,3 trilhões, aplicados especialmente em títulos da dívida pública norte-americano, os famosos títulos do Tesouro dos EUA. 
Face a tamanha “folga” de recursos para investimento, os responsáveis pela política econômica chinesa começam a flexibilizar o destino das aplicações. É amplamente conhecido o processo intensivo de créditos e empréstimos concedidos aos países em desenvolvimento, na América Latina, África e Ásia. Valores expressivos, em condições financeiras favoráveis, mas com contrapartidas sérias em termos de abertura dos mercados locais para produtos chineses e também para flexibilização de regras para facilitar imigração de mão-de-obra originária do populoso país asiático.
A China cresce, mas o modelo não é sustentável
Com isso, estamos talvez assistindo a um inédito processo histórico de transição imperial “por dentro” e com regras “pacíficas”, pois a deflagração de algum conflito bélico em escala internacional significaria o fim do mundo – literalmente. A dependência mútua entre os Estados Unidos (e com ele o conjunto do sistema capitalista ocidental) e a China expressa essa curiosa contradição. Um modelo em decadência, o outro em ascensão. E os dois dependem da relativa boa saúde de ambos para sobreviver. Um querendo sair do abismo e evitar que seja ultrapassado pelo outro. O outro querendo adiar a longa agonia do primeiro, mas procurando evitar a morte súbita.
A economia mundial deve ter crescido por volta de 3% em 2012. Poucos países terão crescido mais do que os 7,8% da China, e ainda assim são economias menores e sujeitas a outras variáveis para seu desempenho localizado. É o caso de Afeganistão, Timor Leste, Etiópia, Iraque, Moçambique, Omã, Turcomenistão, Uzbequistão, entre outros. A economia chinesa acusou o impacto provocado pela crise nos países desenvolvidos. Mas nem por isso, seu crescimento alcançado no ano passado pode ser menosprezado. Inclusive porque as perspectivas para 2013 são de uma taxa um pouco maior. 
O grande debate, na verdade, deveria ser o de como compatibilizar o desenvolvimento econômico e a inclusão de parcelas da população ainda à margem dos benefícios do “progresso” com redução das desigualdades socioeconômicas e um modelo marcado pela sustentabilidade em sentido amplo do termo. E aí, de fato, o modelo adotado pela China foge completamente de exemplo a ser seguido.
Paulo Kliass é doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.

domingo, janeiro 20, 2013

Como é possível que uma área tão sensível, como a saúde...!

Mercantilização na saúde e no ensino superior

A divulgação recente de más notícias sobre o desempenho de empresas atuantes da área da saúde e do ensino superior traz à tona o necessário debate a respeito da preocupante mercantilização dos serviços públicos em nosso País. À medida que parcela expressiva destes setores passou a ser composta de corporações capitalistas, os impactos negativos se fazem sentir pela maioria da população.
No início do ano, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) acabou por decidir pela interdição de 225 planos de saúde operados por 28 empresas atuantes no setor. Esse tipo de medida não é uma grande novidade. Antes disso, em outubro passado, esse órgão regulador do sistema havia proibido 301 planos de venderem seus produtos. E ainda em julho de 2012, a lista de proibição contemplava 268 planos. Ainda que tais fatos possam passar a idéia de que o Estado está agindo e fiscalizando, a pergunta que deve ser feita vai em sentido oposto. Como é possível que uma área tão sensível, como a saúde, chegue a tal extremo de descontrole e regulamentação?
Outra decisão que causou grande impacto foi a operação de venda da empresa líder de saúde privada, a Amil. Em novembro de 2011, o Estado brasileiro autorizou que ela fosse comprada por uma das maiores operadoras globais, a norte-americana United Health, pelo valor de R$ 10 bilhões. Além das dificuldades envolvendo a internacionalização do setor, a decisão gerou muita polêmica por afrontar o impedimento legal de que hospitais (também incluídos no pacote) sejam propriedade de grupos estrangeiros.
Ensino superior privado: mercantilização crescente
Na área do ensino superior, em dezembro passado, o Ministério da Educação proibiu 207 cursos de realizarem concursos vestibulares para novos alunos e no início do presente ano comunicou que outros 38 cursos haviam sido punidos com a proibição de expandirem o número de vagas, tal como solicitado pelas instituições proprietárias. A educação universitária também vem sendo objeto de profunda transformação empresarial e corporativa, de modo que o crescimento da parcela de setor privado no conjunto do sistema é bastante expressivo.
De acordo com os dados oficiais do INEP, existem 2.365 instituições de ensino universitário no Brasil. A repartição de tais faculdades e universidades revela que 88% do total são entidades privadas, restando apenas 12% no setor público (considerando o conjunto federal, estadual e municipal). Em termos numéricos: 2081 privadas e 284 públicas. Se a análise for para o total de alunos inscritos, o setor privado oferece 76% do total e o setor público fica com apenas 24%.
Em termos de matrículas, a expansão quantitativa foi expressiva ao longo da última década. Em 2002 havia 3,5 milhões de matrículas no ensino superior e em 2011 atingiu-se o marco de 6,7 milhões de alunos inscritos. Porém, a maior parcela desse crescimento de 75% deveu-se ao setor privado. As matrículas no setor público cresceram 69% ao longo dos 10 anos, ao passo que as do setor privado cresceram 105%.

Esse crescimento expressivo das escolas particulares encontrou na própria formulação de políticas públicas um importante aliado. Por um lado, pelos longos períodos em que a orientação de contenção de gastos públicos provocou um verdadeiro sucateamento do modelo das universidades públicas, em especial as federais. Restrições orçamentárias em seqüência contribuíram para inviabilizar investimentos necessários da rede física e de seus equipamentos, Além disso, a política de recursos humanos não contribuía para atrair e manter pessoal qualificado. 
PROUNI: socialização dos custos da baixa qualidade
Por outro lado, o governo criou um programa de apoio a bolsas de estudos para as escolas privadas. Através desse modelo, as empresas do setor passaram a ter praticamente assegurada uma significativa da receita correspondente às vagas oferecidas. O discurso oficial soltava loas a um modelo que parecia agradar a todos, menos a um futuro com educação de qualidade assegurada. A população de baixa renda via finalmente chegar o sonho do diploma de ensino superior. As empresas operantes no sistema de educação privada reduziram de forma significativa o risco em suas operações e nem se preocupavam com os resultados obtidos, pois o Estado assegurava suas receitas operacionais, por meio das bolsas oferecidas.
Atualmente, o PROUNI custeia 1,1 milhão de bolsistas, sendo 740 mil na modalidade integral (100% do valor da mensalidade) e 360 mil na modalidade parcial (50% do valor da mensalidade). Além disso, existe a opção do financiamento a juros subsidiados. O programa FIES oferece recursos para pagamento de despesas com matrículas e mensalidades. As regras existentes prevêem um período de carência durante o curso e o reembolso posterior a juros anuais de 3,4%, quando o beneficiário teoricamente tiver obtido ganhos salariais derivados de sua formação. Com esse incentivo, as empresas que operam na educação universitária passaram a ter um mercado cativo para suas vagas. 
Saúde e educação: mercadoria ou direito universal?
Esses dois exemplos evidenciam os impactos negativos do caminho da mercantilização crescente das áreas de serviços públicos. A conversão desses direitos democráticos - acesso à saúde e à educação – em simples mercadorias oferecidas pelas leis de oferta e demanda compromete a qualidade desses importantes pilares de cidadania e de construção de uma sociedade inclusiva e sem desigualdades de natureza social ou econômica.
Dentre as conseqüências do período de hegemonia absoluta do pensamento neoliberal, encontra-se a tentativa de disseminação da idéia de que a ação pública é sempre ineficiente e prejudicial ao conjunto da sociedade. Assim, a melhor solução seria sempre aquela encontrada nos termos das relações de troca, no ambiente determinado pelas leis do mercado. Direitos e serviços públicos, a exemplo da saúde e da educação, passam a ser encarados e tratados como simples mercadorias, a exemplo de todas as demais existentes em uma economia capitalista. Conceitos como oferta, demanda, cliente, preços, taxa de retorno, multa, contrato, inadimplência, valor de prestação, carência, entre outros, passam a fazer parte do dia-a-dia de quem convive com categorias como saúde, doença, vida, morte, educação, pesquisa, ciência, conhecimento. Uma inversão completa de valores!
Ora, parece evidente que esse processo de mercantilização é contraditório com aquilo que se pretende justamente com sistemas de educação e de saúde portadores de qualidade para seus usuários e para o próprio País. 
Quando a lógica de operação de um hospital ou de uma universidade passa a ser a da maximização do retorno do investimento realizado a qualquer custo, está comprometida a própria natureza pública do serviço a ser oferecido. As prioridades estratégicas, as áreas de maior urgência social, a distribuição espacial de acordo com necessidades regionais, a remuneração dos trabalhadores nos sistemas, tudo isso passa a ser relegado a um segundo plano nas decisões empresariais.
Serviço público: interesse social ou lógica privada?
A contabilidade fria do modelo capitalista busca a realização do lucro por meio da dinâmica de elevação de receitas e redução das despesas. Essa abordagem favorece o atendimento dos interesses dos proprietários e acionistas da empresa, mas quase nunca satisfaz as necessidades de áreas socialmente sensíveis. Essa é a principal razão, inclusive, que levou boa parte dos países do mundo capitalista à opção por delegar ao Estado a prestação de tais serviços. Ou então, pela constituição de modelos que contam com subsídios públicos destinados a instituições privadas, mas que demonstram efetiva competência e qualidade naquilo que oferecem à sociedade.
No nosso caso, o risco do processo que atravessamos é o de ficarmos com o pior dos mundos. As áreas de excelência do setor público estão, aos poucos, sendo sucateadas e perdendo competência e qualidade. As áreas de expansão do setor privado encontram um potencial de crescimento com baixa capacidade de regulação e fiscalização do Estado. A mercantilização tende a provocar uma segmentação baseada no nível de rendimento dos usuários dos sistemas, com a complementação de recursos públicos sem a correspondente qualidade na prestação dos serviços “públicos” oferecidos. A relação mercantil pressupõe um contrato. E o contrato estabelece a restrição do uso ao pagamento prévio. 
Os recursos orçamentários deixam de ser utilizados para reforçar e reconstruir um sistema público à altura das necessidades de nossa população. Na verdade, são drenados para apropriação privada em um sistema onde a lógica predominante é a da remuneração do capital.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

sexta-feira, novembro 16, 2012

“privatização” e “concessão”

Portos: mais privatização na infra-estrutura

Mais de 90% do volume das trocas comerciais entram e saem de nosso País por portos. A demanda pela utilização das estruturas do complexo portuário em todo o território nacional tem aumentado. E a diretriz geral do pacote que está por ser anunciado pelo governo aponta para a continuidade da privatização do sistema portuário.
O anúncio oficial do pacote dos portos foi novamente adiado, em razão de algumas divergências entre os diferentes órgãos do governo federal envolvidos na elaboração do projeto. Mas a diretriz geral aponta na direção da continuidade da privatização de nosso sistema portuário. Enfim, tenho a certeza de que, mais uma vez, vai começar todo aquele debate a respeito das diferenças entre “privatização” e “concessão”. É compreensível. Afinal, os que tentam desesperadamente defender o indefensável precisam elaborar melhor seus argumentos e refinar ainda mais sua capacidade retórica. O fato é que conceder a exploração econômica de uma atividade pública ao setor privado é apenas uma das inúmeras formas de se promover a privatização. A venda de uma empresa estatal ao empreendedor capitalista é, com certeza, a modalidade mais carregada de simbolismo. Mas não é a única.
De qualquer maneira, o fato é que o governo da Presidenta Dilma está prestes a concluir a metade de seu mandato e mais uma vez reforça a opção de oferecer ao capital privado a responsabilidade pela gestão e o privilégio de auferir os lucros de um setor estratégico de nossa economia. Muito já se falou a respeito das razões que a teriam levado a trilhar esse caminho. Apesar de todas as indagações a respeito, o fato é que o argumento mais utilizado pelos defensores envergonhados da privatização - a suposta falta de recursos do Estado - não se sustenta. 
Tanto é que todas as operações de concessão realizadas até o momento foram acompanhadas de generosas benesses, como as vultosas somas de recursos financeiros do BNDES e do Tesouro Nacional para auxiliar os grupos privados.
Ora, se o dinheiro existe e está sendo oferecido a custo praticamente zero para os novos empreendedores, a única explicação que sobra é a surrada estória da suposta superioridade da eficiência privada em comparação à ação estatal. Não há dúvida de que a gestão pública em nossas terras precisa (e muito) ser aperfeiçoada e que alguns bons passos têm sido dados nessa direção ao longo dos últimos anos. Porém, o mito da superior capacidade do setor privado em oferecer serviços de melhor de qualidade e menor custo ainda está longe de se demonstrar como fato inquestionável em nossa realidade. Basta ver o que ocorre com os planos privados de saúde, com a qualidade das empresas vendedoras de diploma de ensino superior, com as tarifas e serviços nas áreas de eletricidade, telecomunicações e saneamento, entre tantos outros. Assim, a opção de Dilma é de natureza eminentemente ideológica: a crença equivocada de que o agente privado sempre faz melhor do que o setor público.
Os conhecidos gargalos de infra-estrutura estão clamando por soluções urgentes há muitos anos. Não apenas os remendos emergenciais não são feitos, como também as proposições estratégicas vêm sendo adiadas eternamente. E então a dinâmica das decisões governamentais acaba sendo determinada por algum apagão aqui, um congestionamento ali, um atraso no cronograma de exportações acolá, uma ameaça de caos aéreo logo ali na frente. E como não há um plano estratégico e consolidado a respeito de como enfrentar a questão da infra-estrutura de forma ampla, as decisões acabam sendo apresentadas no caso a caso, no setor a setor, sempre estranguladas por alguma pressão de crise conjuntural localizada. 

Assim foram sendo anunciados os planos de privatização - por meio de concessão por décadas ao capital privado - das rodovias, depois das ferrovias, em seguida os aeroportos. E agora, mais recentemente, o complexo portuário avança na fila.

Além disso, é importante não esquecer que já operam em regime de concessão e exploração pelo setor privado outras áreas estratégicas – de natureza de serviço público - para o funcionamento de nossa sociedade. É o caso da geração de energia elétrica, o sistema de telefonia, as telecomunicações de forma ampla, a terceirização da saúde por meio dos convênios com as organizações sociais, a operação de banda larga de internet, a complementação dos sistemas previdenciários via fundos de pensão e planos de seguros de previdência privada. Enfim, cada vez a sociedade se vê enredada nas teias da mercantilização generalizada de serviços que deveriam ser oferecidos pelo próprio Estado.

O Brasil tem mais de 8.000 km de costas navegáveis, com potencial de serem utilizadas como espaço de trocas comerciais com o resto do mundo por meio marítimo. O potencial de vocação ultramarina remonta há séculos, desde a chegada de nossos colonizadores em 1500. Ao longo das últimas décadas, o comércio exterior passou a ganhar relevância em nossa grade de atividade econômica. Os números relativos à corrente de comércio (somatório de exportações e importações) são bastante expressivos. Em 1991 o valor total era de US$ 53 bilhões, saltando para US$ 113 bi em 2011 e atingindo a cifra de US$ 482 no ano passado. Isso significa que, a partir do aprofundamento da abertura comercial iniciada com Collor em 1990, a troca comercial dobra de valor na primeira década e depois quadruplica nos 10 anos seguintes. Ou seja, em 2 décadas o valor se vê multiplicado por 8. 

No caso específico brasileiro, corrente de comércio exterior significa exportações e importações utilizando prioritariamente o transporte marítimo como instrumento de logística. Mais de 90% do volume das referidas trocas comerciais entram e saem de nosso País por portos. Assim, percebe-se como tem aumentado a demanda pela utilização das estruturas do complexo portuário em todo o território nacional. Quando se fala em bilhões de dólares, na verdade as operações se concretizam, fisicamente, em várias centenas de milhões de toneladas de mercadorias. As expectativas para 2012 é que a movimentação total de cargas nos portos se aproxime da marca simbólica de 1 bilhão de toneladas. Tal fato é ainda mais compreensível em razão da natureza primário-exportadora de nosso modelo econômico. Exportar “commodities”, como soja e minério de ferro, implica alta tonelagem e elevado volume, com baixo valor monetário. Basta compararmos o valor agregado diferenciado entre a exportação de uma tonelada de minério e a importação, por exemplo, de uma tonelada de computadores ou celulares. E dá-lhe desindustrialização!

Quase a metade de nossas capitais de estados são cidades com portos marítimos, além dos casos de Santos em São Paulo e de Paranaguá no Paraná, que se destacam entre os portos de maior movimentação do País, ainda que as capitais de tais unidades da federação estejam mais no interior. Nossa estrutura portuária conta com 37 portos públicos e 42 terminais de uso privativo (TUPs). Esse sistema é consolidado em 7 Companhias de Docas, distribuídas regionalmente por todo a território nacional. Como a holding federal do setor, a Portobrás, havia sido extinta em 1990, logo no início do governo Collor, o setor passou por um período grave de indefinição, que só voltou a ser minimamente restabelecido, por meio da Lei n° 8630 de 1993 – conhecida como Lei dos Portos. 
Atualmente, o modelo não é nem totalmente público, nem totalmente privado. As chamadas Autoridades Portuárias contam com um grau razoável de autonomia na gestão dos portos e são dominadas pelos setores interessados na sua própria exploração comercial. Na prática, trata-se de mais um fenômeno de apropriação privada do espaço público para usufruto de interesses econômicos, sem que o Estado consiga fazer valer sua função de regulamentação e de preservação do interesse público e nacional na gestão das atividades portuárias.
Frente a esse quadro, nem a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) nem a Secretaria Especial de Portos (vinculada à Presidência da República) conseguem imprimir sua condição de órgãos reguladores do sistema. A maior parte das cargas transita pelos TUPs, em especial os da Petrobrás e da Cia Vale – na verdade, eles respondem por 2/3 da tonelagem total envolvida no comércio exterior. Por ali escoam as exportações em granel sólido (produtos agrícolas e minerais in natura) e em granel líquido (em especial o petróleo). O outro terço circula pelos chamados “portos organizados”, que se caracterizam por sua natureza pública de concessão para exploração privada. Como a composição das exportações é bem distinta das importações, ocorre que a tonelagem das primeiras respondem também por 2/3 do total de volume de comércio, ao passo que as importações representam apenas 1/3 da corrente comercial. É o impacto sobre a dinâmica portuária de sermos exportadores de bens agrícolas e minerais, enquanto importamos bens manufaturados.
Como se pode perceber, trata-se de um setor que apresenta alta complexidade operacional, logística, comercial e financeira. Adicione-se a isso a exigência da presença de órgãos estatais em de sistemas de controle de política sanitária, aduaneira e de segurança nacional para reforçar a natureza pública do fenômeno. E finalmente a delicada sistemática de determinação de tarifas e taxas de retorno para as operações. Afinal, como determinar de forma, digamos, adequada o custo de embarcar um contêiner em um cargueiro? Ora, esse caldo de cultura exige, parece evidente, a firme presença regulamentadora e fiscalizadora do Estado. 
Não fosse apenas por isso, a operação portuária se caracteriza por aquilo que a literatura econômica chama de monopólio natural. Não se trata de um simples mercado da batatinha, em que uma multiplicidade de agentes de oferta pode operar como controlador de abuso de mercado. Não gostou do preço e da qualidade da mercadoria? Dirija-se à barraca ao lado e compre ali seu produto em melhores condições. No caso do porto, assim como na eletricidade e no saneamento, não existe essa opção. Daí porque o Estado é o agente natural provedor desse tipo de bem ou então um forte regulador, com o objetivo de assegurar o equilíbrio e o bem estar coletivo.
Se adicionarmos, por fim, o ingrediente atual da necessidade emergente do aporte de dezenas de bilhões de reais a título de investimento para ampliação e modernização da estrutura portuária, aí que não se escapa mesmo da presença estatal. A sociedade brasileira merece, é claro, um sistema de portos ágil e eficiente - a tal fato parece não haver objeção. 
Isso significa rever sistemas e processos que contribuem para que nossas tarifas sejam relativamente mais elevadas do que muitos países desenvolvidos, sem a correspondente qualidade da operação. Porém, é essencial escapar da ilusão simplista de que basta transferir a gestão e conceder o direito de exploração comercial, a perder de vista, para o setor privado para que tudo se dê às mil maravilhas.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto, 14/11/2012.

sábado, novembro 10, 2012

para que as trombetas começassem a soar

Mais uma vez, sua excelência, o superávit primário

Os órgãos da grande imprensa não perdem a oportunidade de mostrar o seu inconformismo com qualquer escapada da receita conservadora, tão exigida pelo setor financeiro. Bastou o anúncio do ministro Mantega sobre o desempenho do superávit primário 2012 para que as trombetas começassem a soar.
Bastou o anúncio do Ministro Mantega a respeito do desempenho do superávit primário para 2012, para que fosse disparado o já conhecido festival de ataques por parte do financismo e dos representantes da ortodoxia. Os órgãos da grande imprensa não perdem jamais a oportunidade de mostrar o seu inconformismo com qualquer escapada da receita conservadora, tão exigida pela grande banca. Na verdade, o responsável pela política econômica apenas veio a público e fez o reconhecimento oficial daquilo que todos os que acompanhamos a economia no dia-a-dia já estávamos cansados de saber. 
Afinal, já vamos chegando a meados do mês de novembro e realmente as informações disponíveis apontam que o governo não vai conseguir cumprir a meta estabelecida lá atrás, ainda em 2011, de reservar 3,1% do PIB para o superávit primário. Em valores monetários, isso corresponderia a um esforço fiscal próximo a R$ 140 bilhões. Mas o que nos interessa refletir é a respeito das razões que teriam levado o governo a se comprometer com tal meta e quais as conseqüências para o País do não cumprimento de tal objetivo.
Plano Real e o tripé da política econômica
Os fundamentos da política econômica atual foram lançados em 1994, quando o Plano Real foi anunciado e a política de estabilização da inflação começou a apresentar resultados positivos. A partir daquele momento, veio a público e passou a ser incorporado no jargão do “economês” o famoso “tripé da política econômica”, uma trinca de fatores que foi alçada à condição de sacro-santidade imexível. Assim, passamos a conviver de forma institucional com as seguintes regras: i) definição de metas para a inflação; ii) liberdade cambial e política de câmbio flutuante; iii) definição de metas de superávit primário.
A definição de metas para a inflação foi acompanhada de um discurso e de uma prática de maior autonomia – na verdade, uma quase independência – para a atuação do Banco Central, em especial na definição da taxa oficial de juros, a SELIC. O governo teria uma meta de inflação anual a ser perseguida, com uma margem de erro para cima e para baixo. A maioria das pessoas pode até não saber, mas o BC já tem a meta definida para 2014 (!!): o centro é de 4,5%, com 2 pontos percentuais, para cima e para baixo. O acompanhamento dessa performance era realizado pelo Comitê de Política Monetária (COPOM), na verdade uma reunião periódica da diretoria do Banco Central com esse fim exclusivo: definir a taxa de juros. A base teórica para exercer o controle do crescimento dos preços era a necessidade de conter a demanda, para evitar a inflação. E o principal instrumento para tanto era elevar a taxa SELIC - arrocho monetário no “economês” – para retirar recursos do consumo e direcioná-los para a poupança.
A adoção do regime de liberdade cambial se encaixava bem no discurso neoliberal a favor das soluções de mercado para resolver as crises e oferecer sempre a alternativa considerada mais “eficiente” para a sociedade. Em contraposição à política de câmbio administrada pelo governo, a liberdade cambial retirava toda e qualquer possibilidade de que esse setor essencial da economia fosse utilizado como instrumento de política pública. A liberdade de ir e vir para o capital especulativo internacional se somou à implementação de uma monetária de taxas de juros estratosféricas por mais de uma década. Nossas terras permaneceram por um longo período como as mais atrativas do planeta em termos de rentabilidade financeira e a pressão permanente derivada do ingresso de recursos externos provocou a valorização artificial de nossa moeda, o real. As conseqüências perversas foram a farra dos importados e a perda de competitividade das exportações de manufaturados brasileiros no exterior.
Para fechar o tripé, entrou então em cena, bem fortalecido, o conceito inovador do superávit primário. Um verdadeiro golpe de mestre engendrado pelos representantes do financismo na esfera internacional. 
Essa inovação foi concebida no seio dos organismos multilaterais e implementada pelos cinco continentes afora, com a pressão e o aval de FMI, Banco Mundial i tutti quanti. É sabido que um dos postulados básicos do pensamento liberal refere-se à redução do tamanho do Estado à sua dimensão mínima. Além disso, soma-se a preocupação quase obsessiva com o desempenho das contas públicas, exigindo mais do que um sistema em equilíbrio: propõe-se o superávit das receitas sobre as despesas. Em tese, nada tão anormal assim – afinal, uma boa gestão fiscal não faz mal a ninguém e se o Estado consegue esse saldo positivo, pode até utilizar esses recursos excedentes para mais investimentos e coisa e tal.
Superávit primário: o pulo do gato
Mas o pulo do gato reside justamente no adjetivo que esconde a essência da medida: “primário”. Essa forma especial de contabilizar o superávit das contas públicas faz uma divisão malandra nas despesas realizadas pelo Estado. Isso significa que as despesas financeiras, com juros e com pagamento de serviços da dívida pública, não devem ser contabilizadas como despesas ordinárias. Por mais esquisito que possa parecer, é exatamente isso que se passou a fazer na contabilidade pública a partir de então. Assim, o setor público é chamado a fazer um grande esforço fiscal de corte de despesas orçamentárias (saúde, educação, saneamento, pessoal, previdência social e outras), com o objetivo de gerar o tal superávit primário. E todo o saldo desse resultado é dirigido automaticamente para o pagamento das despesas financeiras! Ou seja, os cortes acontecem nas despesas não-financeiras para assegurar que as despesas que beneficiam apenas o setor menos produtivo da sociedade sejam efetuadas sem nenhum risco.
Esse modelo absurdo sobreviveu durante muito tempo, apesar das constantes críticas à sua injustiça social implícita e ao benefício exclusivo para o setor rentista e parasita das economias capitalistas. No caso brasileiro, apenas com o rescaldo da crise a partir de 2008 é que alguns pilares do pensamento hegemônico conservador foram sendo relativizados.
Um deles refere-se à flexibilização da rigidez dos cálculos do superávit primário. A partir de então, os investimentos das empresas estatais, por exemplo, deixaram de ser contabilizadas como “despesa simples” e retiradas da equação. E com toda a razão, pois gastos com investimento têm efeitos duradouros a longo prazo e não podem ser tratados como qualquer despesa corrente, a exemplo das compras de material de consumo.
Mas, na essência, a idéia de sacrificar os gastos não-financeiros para não comprometer as despesas com juros permaneceu intocada por esse tempo todo. Basta lembrar que todos os anos o Orçamento Geral da União reserva parte expressiva das receitas para essa finalidade. Em 2012, por exemplo, estão previstos 40% do total orçamentário para pagamento de juros, serviços e rolagem de dívida pública. Uma loucura!
A novidade mais recente que fez elevar a temperatura e os humores nos meios do financismo é o reconhecimento explícito de que nem mesmo a meta oficial vai poder ser cumprida esse ano. Enquanto a maioria do País respira aliviada com a notícia, os representantes do sistema financeiro abrem a sua bateria de ataque contra a “falta de controle da gestão fiscal”, a “gastança irresponsável” e outras pérolas que permeiam as páginas e as telas dos grandes meios de comunicação. Mas vale observar que tal situação não decorre de nenhuma mudança de postura do governo ou alguma intenção de priorizar as despesas reais em relação às financeiras. Não, nada disso! Trata-se apenas da constatação resignada de que esse ano não vai ser possível.
A redução do superávit primário é solução e não problema
O fato é que a conjuntura econômica está levando a que a meta de 3,1% do PIB não seja mais factível. Há um conjunto de fatores que contribui para tanto. Em primeiro lugar, a redução da taxa oficial de juros ao longo dos últimos meses tem provocado uma redução do volume de juros a ser gasto com a dívida pública. Em segundo lugar, a previsão de crescimento da economia feita lá atrás (4,5% ao ano) tampouco vai se concretizar – com isso as receitas tributárias também vão diminuir, o que é normal e compreensível. Em terceiro lugar, as políticas anticíclicas adotadas pelo governo têm incluído de forma sistemática a isenção de impostos e a concessão de outros benefícios fiscais e tributários. Finalmente, o Estado tem sido chamado a tomar a iniciativa em um conjunto amplo de novos investimentos, o que significa também um aumento de gastos públicos essenciais.
Ora, face a essa nova forma de organização de fatores, não haveria mesmo como a conta fechar com aquele superávit primário exagerado. Melhor dizendo, não haveria razão para que 3,1% do PIB fossem mais uma vez dirigidos para pagamento de serviços financeiros da dívida pública. 
Com as receitas caindo e as despesas não financeiras aumentando, não há meio de manter o superávit tal como imaginado. Na verdade, essa chiadeira toda do financismo reflete o desconforto de um setor que sempre viveu às custas de uma drenagem assegurada dos recursos orçamentários para o caixa de suas empresas. Mais do que não cumprir a meta para 2012, o governo deveria tomar a iniciativa de ampliar o debate na sociedade e reintroduzir a isonomia no tratamento do gasto orçamentário. 
Com isso, a despesa de natureza meramente financeira deixaria de ter esse atendimento especial, um verdadeiro tratamento VIP. Afinal, por que os cortes sempre são feitos nas áreas sociais e não nos gastos com juros? 
Qual a razão para que itens como salário mínimo, pensões, 
aposentadorias, saúde, educação e reforma agrária sejam sempre objeto de redução, ao passo que as verbas do mesmo orçamento destinadas ao rentismo parasitário sejam mantidas sem questionamento?
A busca de um modelo de desenvolvimento social e econômico, com a necessária preocupação de sustentabilidade, deve passar por esse debate. Redefinir o esforço que o conjunto da sociedade realiza para assegurar recursos a uma parcela reduzida de sua elite é uma urgência. Assim talvez o superávit primário deixaria de ser reverenciado como Vossa Excelência e passaria à condição de todos nós, simples e honrados cidadãos da República.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate aberto, 08/11/2012.

domingo, novembro 04, 2012

Oportunidade!

Nós temos uma oportunidade de sermos melhor nessa vida, e temos de tentar isso. Seja através da arte, da produção como um todo, dos avanços da técnica, para o coletivo dos seres vivos e do meio ambiente. O conjunto de serviços e produtos podem ser destinados a uma sociedade que não adoeça permanentemente, sob imaginários que só beneficiam uma pequena classe dominante e seus representantes políticos; o capitalismo não funciona com o propósito essencial de cuidar da humanidade como um todo nem da natureza, isso é fato. O que deverá mudar nesse sentido parece que está claramente apontado em meio a crise (profunda) que permanece desde 2008.

sexta-feira, novembro 02, 2012

Keith Jarrett - The Köln Concert: Part II b

“Para decifrar a ‘circulação autopropulsora do capital"

“O ano em que sonhamos perigosamente”, de Slavoj Žižek

 Boitempo Editorial


Este novo livro do filósofo esloveno Slavoj Žižek, oferece uma análise crítica de 2011, “o ano em que sonhamos perigosamente”, como já aponta o título, e no qual emergiu uma série de mobilizações globais de caráter contestatório. A obra dá continuidade ao trabalho de reelaboração teórica já anunciado nos livros Em defesa das causas perdidas e Vivendo no fim dos tempos.

Invocando a expressão persa war nam nihadan – “matar uma pessoa, enterrar o corpo e plantar flores sobre a cova para escondê-la” – a fim de descrever o atual processo de neutralização desses acontecimentos e seus significados, Žižek coloca-se diante da difícil tarefa de pensar a conjuntura global sob uma perspectiva renovadora. Por isso, tem sido considerado um dos mais originais e provocativos teóricos da contemporaneidade.

A forma aberta e o estilo ensaístico despojado desta coletânea de oito ensaios sustentam o obtuso equilíbrio entre uma articulação interdisciplinar e o que o jornalista Ivan Marsiglia, que assina a orelha do livro, descreve como a “ousadia de uma abordagem totalizante da realidade social, em tempos de saberes hiperespecializados”. Não é à toa que o livro remete também ao complexo conceito de “mapeamento cognitivo” desenvolvido por Fredric Jameson, um dos expoentes atuais desta tradição teórica.

Os dois ensaios iniciais, “Da dominação à exploração e à revolta” e “O ’trabalho de sonho’ da representação política”, tecem justamente considerações sobre o capitalismo atual e apresentam o desenvolvimento de uma teoria global dos impasses da representação ideológico-politica. Já os quatro ensaios centrais “O retorno da má coisa étnica”; “Bem-vindo ao deserto da pós-ideologia”; “Inverno, primavera, verão e outono árabes”; e “Occupy Wall Street, ou o silêncio violento de um novo começo” concentram-se na análise detida dos diversos movimentos que marcaram 2011.

Sua análise esquadrinha tanto o que chama de “sonhos emancipatórios” (Primavera Árabe, Occupy Wall Street, levantes em Londres e Atenas) como os “sonhos destrutivos” que motivaram, por exemplo, a chacina de Anders Breivik, na Noruega, e outros movimentos racistas e ufanistas que eclodiram por toda a Europa. O desafio está em situar a multiplicidade dos acontecimentos no interior do campo de forças produzido pelo capitalismo. “Para decifrar a ‘circulação autopropulsora do capital’, que hoje prescinde até da burguesia e dos trabalhadores, Žižek reafirma, em termos freudianos, a ideia de luta de classes: assim como diz Freud a respeito da sexualidade, não é que tudo se resuma à luta de classes, mas a luta de classes se faz presente em tudo”, interpreta Marsiglia.

Os ensaios “The Wire, ou O que fazer em épocas não eventivas” e “Para além da inveja e do ressentimento” refletem, a partir da cultuada série americana The Wire e de uma análise mais detida do pensamento do filósofo Peter Sloterdijk, sobre o desafio de combater o sistema sem contribuir para aprimorar seu funcionamento. Por fim, em “Sinais do futuro” Žižek anuncia um descontentamento subterrâneo em marcha e, prevendo uma nova onda de revoltas, situa o ano de 2012 em um presente que guarda o potencial oculto de um futuro utópico, manifesto em fragmentos limitados, distorcidos e até pervertidos.

Trecho do livro

“Marx descreveu a má circulação do capital, que se aperfeiçoa e cujo caminho solipsista da autofecundação chega ao apogeu nas especulações metarreflexivas da atualidade sobre os futuros. É simplista demais afirmar que o espectro desse monstro que se aperfeiçoa e segue seu caminho negligenciando qualquer preocupação humana ou ambiental seja uma abstração ideológica, e que por trás dessa abstração haja pessoas reais e objetos naturais em cujos recursos e capacidades produtivas se baseia a circulação do capital e dos quais o capital se alimenta como um parasita gigante. O problema é que, além de estar em nossa má percepção da realidade social da especulação financeira, essa abstração é real no sentido preciso de determinar a estrutura dos processos sociais materiais: o destino de todas as camadas da população, e por vezes de países inteiros, pode ser decidido pela dança especulativa solipsista do capital, que persegue seu objetivo de lucratividade com uma indiferença abençoada em relação ao modo como seu movimento afetará a realidade social.”

Sobre o autor

Slavoj Žižek nasceu em 1949 na cidade de Liubliana, Eslovênia. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é diretor internacional do Instituto de Humanidades da Universidade Birkbeck de Londres. O ano em que sonhamos perigosamente é o seu oitavo livro traduzido pela Boitempo. Dele, a editora também publicou Bem vindo ao deserto do Real!, em 2003, Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917, em 2005, A visão em paralaxe, em 2008, Lacrimae Rerum, em 2009, Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa, em 2011 e Vivendo no fim dos tempos, em 2012.

PUBLICAÇÕES NA IMPRENSA:
22/10/2012 - IHU - Unisinos - A esquerda derrotada. Entrevista com Slavoj Zizek - Da redação
24/10/2012 - Carta Capital - Ideias Entrevista - A esquerda derrotada - Gianni Carta
28/10/2012 - Folha de S.Paulo - Ilustrada - Filósofo Slavoj Zizek analisa discurso do cinema em documentário - Vivian Whiteman
28/10/2012 - Correio Mariliense - Para Slavoj Žižek, 2011 foi o ano em que sonhamos perigosamente - Da redação

sábado, setembro 29, 2012

“Qual classe média?”

Renda do capital ainda é renda do capital, assim como renda do trabalho continua sendo renda trabalho. Por mais que a remuneração mensal dos despossuídos tenha evoluído, o conceito de classes sociais e seus conflitos de interesses continuam valendo para a análise do modo capitalista de produção.
Paulo Kliass
A Presidência da República está colocando em marcha uma delicada operação política, que pode trazer conseqüências perigosas para a análise e a compreensão de nossa realidade social e econômica. Tudo começou com o anúncio, por parte da Secretaria de Assuntos Estratégicas (SAE), do lançamento de um novo programa, considerado prioritário no âmbito do governo. Foi batizado com o nome de “As Vozes da Classe Média”.
Em tese, nada demais a chamar atenção, não é mesmo? Afinal, esse tema da classe média tem ocupado as páginas dos grandes jornais de forma crescente, ao longo dos últimos tempos. No entanto, vale a pena chamar a atenção para alguns elementos do entorno desse programa em especial e do simbolismo político envolvido com o fato. O atual titular da SAE é o dirigente do PMDB/RJ, Wellington Moreira Franco, que substituiu o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães desde o início do mandato da Presidenta Dilma. O órgão mais importante de sua pasta, porém, é o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), que era presidido desde 2007 pelo economista Marcio Pochmann, professor da UNICAMP e pesquisador crítico das correntes mais conservadoras dos vários campos das ciências sociais. Sob tais condições, o ministro carioca pouco conseguia influenciar na política interna do instituto.
As mudanças na direção do IPEA: de Pochmann a Neri
Convencido a disputar a prefeitura de Campinas pelo PT, Pochmann pediu demissão do cargo e Dilma optou há poucos dias pela nomeação definitiva de outro economista: Marcelo Neri, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ). Com esse passo, a avaliação reinante nos corredores do poder é que o conservadorismo tem todas as possibilidades de retornar às áreas dirigentes do IPEA. Independentemente de sua competência técnica e suas qualidades profissionais, o novo presidente do órgão representa grupos e correntes ligados à ortodoxia econômica e à ressonância de todo o pensamento neoliberal em solo tupiniquim. Afinal, as posições da FGV são mais do que conhecidas nesse domínio.
O lançamento do novo programa “Vozes da Classe Média” é a perfeita expressão política de mais um movimento de mudança no interior do governo. Neri é um estudioso da questão da distribuição de renda e coordenou recentemente uma publicação chamada “A nova classe média – o lado brilhante da base da pirâmide”, onde todo o foco reside nessa suposta nova composição de classe social em nossas terras. Do ponto de vista político, o trabalho articulado pelo pesquisador da fundação carioca cai como sopa no mel para os dirigentes políticos governistas. Tanto que a própria Presidenta fez referência pública ao autor, em um evento no Rio de Janeiro, ainda em abril passado, elogiando e recomendando a leitura da obra. Bingo: o recado político estava dado, para quem quisesse ouvir. Talvez tampouco seja mera coincidência o fato do PT não ter lançado candidato a prefeito no Rio de Janeiro e do governo federal apoiar o peemedebista Eduardo Paes, sempre ao lado do governador Sérgio Cabral, também do PMDB e muito prestigiado pelo núcleo duro de Dilma. O círculo se fecha.
Já Pochmann, havia lançado um livro com interpretação bastante diferente desse oficialismo chapa branca. A Editora Boitempo publicou há pouco a obra “Qual classe média?”, que chama a atenção logo de início pelo ponto de interrogação no próprio título. Como estudioso sério e crítico, o ex-presidente do IPEA lança uma série de indagações a respeito da suposta unanimidade em torno desse “novo” conceito de classe média. E demonstra que não se pode confundir a inegável melhoria nas condições de renda na base da sociedade com a transformação em sua estrutura de classes sociais. Com a devida vênia de nossa Presidenta, eu recomendaria também a leitura do livro de Pochmann. No entanto, por se tratar de um estudo que não compartilha desse clima de oba-oba ufanista e irresponsável, ele não é tão útil nem funcional para alavancagem da política governamental no varejo e no cotidiano. Afinal, a honestidade intelectual exige alguns “poréns” e algumas observações de reparo metodológico. Xi, lá vem o chato do Paulo Kliass outra vez... Pois é, são os ossos do ofício!
“Voices of the poor” e “Vozes da classe média”: do Banco Mundial à SAE
Em sua apresentação oficial, está dito que o programa “Vozes da classe média” pretende servir como parâmetro para a elaboração de políticas públicas pelo governo federal. Talvez não seja por outra simples coincidência que ele tenha recebido esse nome. Na verdade, trata-se de uma quase versão para o português de um conhecido programa do Banco Mundial lançado lá em 2000, na virada do milênio, que é chamado de“Voices of the poor” (Vozes dos pobres). Era uma tentativa de ouvir e estudar o fenômeno da pobreza ao redor do mundo, incluindo países como Brasil, Etiópia, Índia, Indonésia, Uzbequistão, entre outros. Mas para além desse vício de paternidade, o caminho que o governo pretende adotar agora contém graves equívocos metodológicos. Como a idéia é sempre elogiar o suposto sucesso da política de melhoria das condições da população da base da pirâmide, entra em marcha um verdadeiro “vale-tudo” no sentido de organizar, rearranjar e espremer os números e os dados estatísticos. O objetivo é oferecer resultados convincentes e belas conclusões. Tudo perfeito e adequado para o recheio do discurso oficial, a ser faturado politicamente.
Parte-se de um fato inegável: ao longo dos últimos anos, a política de transferência de renda (via programas como Bolsa Família) e a política de valorização do salário mínimo foram o carro chefe de uma transformação significativa nas condições da população mais pobre em nosso País. Com elas vieram também a ampliação dos benefícios concedidos pela previdência social, a melhoria das condições no mercado de trabalho e o acesso ao crédito. No entanto, também é amplamente reconhecido que a política econômica desse período continuou a favorecer e beneficiar as camadas mais ricas de nossa sociedade, por meio da política de juros elevadíssimos (que só começou a mudar no último ano), das isenções fiscais, das desonerações tributárias, da ampliação da privatização e toda a sorte de benesses dirigidas ao capital em geral e ao setor financeiro em particular. 
Assim, apesar de ter ocorrido uma melhoria na distribuição na base da sociedade, o restrito topo da pirâmide foi ainda muito mais beneficiado. E como os níveis da desigualdade e de concentração são muito elevados, o aspecto significativo seria analisar o que ocorreu com os 0,5% mais ricos na comparação com os 99,5% restantes. Se pegarmos faixas amplas com os 10% ou 20% das famílias com maior renda, estaremos misturando alhos com bugalhos e as conclusões serão, obviamente, apressadas e equivocadas. Isso porque os dados utilizados vêm da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, onde apenas uma pequena amostra do total das famílias responde a um extenso questionário de forma voluntária. Com isso, os domicílios familiares de renda mais elevada tendem a subestimar as informações fornecidas a respeito dos valores e das fontes de seu rendimento efetivo.
Os números do programa e as conclusões equivocadas
De acordo, com o programa “Vozes da classe média”, os limites para fazer parte desse novo recorte de “classe” são os seguintes: de R$ 291 a R$1.091 como renda mensal familiar per capita. Dessa forma, as conclusões são uma maravilha! Mais de 50% da população brasileira estão nesse perfil – um total superior a 100 milhões de pessoas. Então, vamos lá verificar – na realidade concreta da vida real - quem está enquadrado dentro dessa inovadora definição de “nova classe média” e quem já está recebendo uma renda tão elevada que está até acima desse nível, passa a fazer parte das elites, da classe alta.
Consideremos o caso de um jovem casal, sem filhos. Um dos cônjuges recebe um salário mínimo e o outro está desempregado. Sua renda mensal é de R$ 620, o que nos permite concluir uma renda per capita de R$ 310 a cada 30 dias. Imaginemos ainda que seus vizinhos sejam um casal com 2 filhos, onde os pais trabalham e recebem cada um deles salário mínimo também. A renda mensal da família é de R$ 1.240, com uma renda per capita de R$ 310, como no caso anterior. Vejam que ambas as famílias são integrantes da “nova classe média”, pois estão acima do patamar mínimo de R$ 291, o que lhes permitiria a chave de acesso ao paraíso do consumo, segundo as capas das revistas semanais penduradas nas bancas de jornal. Pouco se fala a respeito da qualidade dos serviços públicos que recebem, como saúde, educação, saneamento, transporte público, etc. O que importa é a renda auferida. 
Cabe ao leitor optar: o estabelecimento arbitrário desses valores seria ato de ingenuidade ou de maldade? Afinal, não é lá muito difícil contabilizar os níveis de despesa mensal dessas unidades familiares: o transporte coletivo numa grande cidade; o aluguel de moradia em péssimas condições; as contas de água, luz e telefone celular; o gás para cozinha; as compras de cesta básica e seus complementos; etc. Ora, o retrato é de uma sobrevivência nesse nível básico, que não permite quase nenhuma capacidade de poupança, nem o usufruto das boas condições de vida. Quem teria a coragem de afirmar que esses indivíduos seriam integrantes da “nova classe média”? Em sentido oposto, Pochmann nos oferece uma interessante reflexão a respeito do fenômeno, na apresentação de seu livro:
“O adicional de ocupados na base da pirâmide social reforçou o contingente da classe trabalhadora, equivocadamente identificada como uma nova classe média. Talvez não seja bem um mero equívoco conceitual, mas expressão da disputa que se instala em torno da concepção e condução das políticas públicas atuais.”
Por outro lado, tão ou mais impressionantes são as conseqüências da definição casuística do limite superior para o enquadramento em “nova classe média”. Imaginemos outra vez a situação de um casal típico de assalariados, com um filho. Ele acabou de conseguir um emprego numa empresa automobilística no ABC e recebe o piso da categoria. Ela é empregada de um banco e também recebe o piso salarial assegurado pelos acordos dos sindicatos com a FENABAN. A renda mensal do trio familiar supera R$ 3.300, com um equivalente per capita superior aos R$ 1.091 do programa oficial do governo. Dessa forma, a conclusão é assustadora: pasmem, mas essa família de trabalhadores não seria mais integrante da “nova classe média”. Em função dessa “estupenda” remuneração mensal, eles já teriam sido alçados à condição da elite, fazem parte das classes altas da sociedade brasileira! Uma loucura, para dizer o mínimo!
Trabalhadores ou classe média?As políticas desenvolvidas ao longo da última década contribuíram para a melhoria das condições de vida da maioria da população. No entanto, o elevado grau de desigualdade social e econômica nos coloca ainda entre os países mais injustos do planeta. Assim, não se “acaba com a pobreza” da noite para o dia, apenas com uma canetada, estabelecendo um limite arbitrário de renda de forma injustificada. O caminho é longo e passa pelo aprofundamento das políticas de distribuição de renda. Não será por força dos limites quantitativos constantes de um eventual Decreto que o Brasil amanhecerá menos pobre ou menos injusto.
Reconhecer as significativas transformações ocorridas com a população de menor renda em nosso País ao longo dos últimos 10 anos não nos permite tentar avançar na deturpação dos dados da realidade. Não se pode ser conivente com a utilização política e eleitoral de informações viesadas, com o fim exclusivo de propiciar análises encomendadas para usufruto do governo de plantão. Renda do capital ainda é renda do capital, assim como renda do trabalho continua sendo renda trabalho. Por mais que a remuneração mensal dos despossuídos tenha evoluído, o conceito de classes sociais e seus conflitos de interesses continuam valendo para a análise do modo capitalista de produção.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto, 27/09/2012

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