Andar ereto
por Viviane de Santana Paulo
Houve aquele domingo da semana, sem saber ao certo o que fazer a mãe ficou feliz com a espontânea idéia de ir ao zoológico com as crianças — programa perfeito para um domingo sem planos. As crianças estavam animadíssimas, empolgadas em ver o leão, o urso polar e os macacos. Foram de carro, suas duas filhas e os dois filhos da vizinha, o marido ficou em casa, reparando alguma coisa no computador, um vírus de última hora se alastrando na sagrada paz do domingo, não houve remédio, o homem teve de ficar sentado em frente à tela eletrônica.
É uma grande vantagem não haver trânsito nas ruas, elas adquirem uma outra aparência, temos a impressão de estarmos em uma outra cidade ao depararmos com o sossego superficial e as ruas momentaneamente desabitadas.
Um repentino bem-estar apoderou-se da motorista cantando uma música infantil com as crianças, dirigindo o automóvel, atravessando uma metrópole infestada de civilização duvidosa. Ela logo arrumou um lugar no estacionamento, não estava cheio, não se sabe o que as famílias ficam fazendo nos domingos ao invés de levarem os filhos ao zoológico. Ah, talvez estivessem em casa, assim como seu marido, consertando o computador. A mãe comprou o sorvete na entrada e todos seguiram para dentro do parque, bem próximos uns dos outros para não se perderem.
Havia a jaula estreita da pantera andando de um lado para o outro, quase não havendo espaço para dar a volta com seu corpo negro e selvagem e ela fitava as grades de aço passando verticais pelos olhos felinos e verdes. Como se não houvesse nenhum mundo por trás das grades e não havia, porque o mundo que se tem é aquele no qual se vive.
Eva estava agora diante da jaula dos macacos, viu uma fêmea amamentando o filho. Quantas vezes não se sentou assim com a Maria no peito? Mas aquela não era ela, era um animal, um mamífero, que dá leite às crias, mas não as levam à escola. Riram com os macacos, da semelhança que possuem com os seres humanos e porque não limpam a bunda. A fêmea fez um carinho no filho. Repararam que do outro lado do habitat um velho macaco pegava no sono deitado numa rede, os pequenos olhos abriam e fechavam, ele olhava sonhando para as crianças. O macaco estava nesse zoológico já havia alguns anos, depois que escreveu o tal relatório para a academia, deram-lhe um monte de medalhas, de prêmios, e o deixaram em paz. Porém, logo viram que ele vivia muito em paz e resolveram lhe tirar as medalhas, os prêmios, e o colocaram na jaula dos macacos para ser igual aos outros. Temos que fazer parte de nossa espécie e ser como ela e não rebelar-se ou mostrar superioridade. Foi esse o argumento usado para o processo de regressão doAffe. Contudo, ele demorava-se a ficar igual aos de sua espécie, continuava inteligente e escrevendo as esconsas. Os manuscritos eram sabotados para fora da jaula e publicados sob pseudônimo nos jornais. De resto, ele dissimulava que era igual aos outros e os homens sabiam que ele dissimulava e que ele sabia que eles sabiam que era simulacro.
A arte de viver é também fingir não conhecer a verdade, seguir mostrando que o que sabemos é somente aquilo que exigem de nós, o que é permitido, outra coisa é fuga, o risco de sobreviver por si só, de ser livre; fingir que não estamos cientes de os outros de nossa espécie saberem que simulamos a verdade. Enfim, tudo se resume em um fingimento e a verdade em si se perde em alguma fresta dessa encenação, da hipocrisia.
Eva não se recordava muito bem, mas havia lido algo do macaco no jornal. Engraçado, com tantas coisas para fazer, não conseguia se lembrar do tema, tinha apenas certeza de ter sido um desses escritos levados para fora do zoológico. Os leitores conheciam o dilema, liam os artigos impregnados de desespero apático, sabendo que era injusto, mesmo assim ninguém fazia nada pelo macaco. Deixaram-no abandonado à sina de ser ele próprio.
A míope ajeitou os óculos na cara, viu que estavam sujos, tirou-os, limpou-os na barra da blusa, e colocou-os novamente. Muitos não haviam lido o tal do relatório, senão esse animal não estaria ali, atrás da jaula de vidro cheia de plantas e cipós, de onde os macacos nos olham sem entender o quanto somos esquisitos, selvagens e falsos com nossa espécie e com as outras.
Estavam agora em frente à jaula do orangotango, Eva reparou que os pêlos meio alaranjados estavam sujos e refletiu sobre a sorte que ele teve de ser absolvido, os crimes cometidos na rua Morgue foram perdoados. Afinal... não passava de um animal que não sabe o que faz.
E Eva continuou pensando que, há milhões de anos, se não tivéssemos nos levantado, estaríamos como eles. Foi o andar ereto a grande chave do desenvolvimento, a partir daí iniciou-se o vôo rasante para o futuro imprevisível e inerente, em linha reta ao progresso humano, à solidão e ao isolamento. Porém, a partir daí procura-se o distanciamento do mundo animal. O homem se colocou num ápice, cada vez mais evidente, onde somente ele é o soberano e tenta negar a si próprio. O andar ereto para o futuro desconhecido, contra a parede, as grades da jaula estreita.
Eva andava ereta, com o corpo de fêmea que havia parido, os seios caídos amparados pelo sutiã, os quadris largos, as celulites nas nádegas, a barriga flácida, o excesso de peso inchando os pés pequenos. Estavam no caminho que ia dar no viveiro dos pássaros: gaivotas; araras coloridas; tucanos curiosos; papagaios verdes e amarelos, e tagarelas; revoada de periquitos... Pareciam tão livres, tão livres...! Batiam as asas e alguns se sustentavam no ar: tão leves, tão leves... e soltos ali dentro. Habituaram-se porque quando não há outra possibilidade, a única sobrevivência é adaptar-se ao que se vive no momento. E o homem se adapta com rapidez! Os animais demoram mais, alguns acabam morrendo. Não estes que já estavam habituados à restrita imensidão, ao azul do céu engradado e à brisa trazendo, de vez em quando, o cheiro do distante.
Em seguida pegaram um atalho para irem ao habitat do jaguar onde uma pomba obstruía o caminho estreito e não se movia com os movimentos espalhafatosos das crianças, os gritos e risos altos. A pomba inofensiva e insistente, fitava arrulhando aqueles seres humanos, amedrontando passantes de um caminho corriqueiro. Mas ela não era o Noel, não ficaria ali estarrecida e ameaçada, pensando em tudo que poderia ter sido e não foi e no abismo que havia entre ela e aquela espécie. Pegou as crianças pela mão e foi decidida em cima do estorvo. A pomba que desse passagem e não ela! Porém, a ave não saiu do lugar, mesmo tendo os pés das crianças quase em cima da cabeça. As crianças riram e em seguida ignoraram a pomba, esqueceram o episódio, queriam ver o jaguar que era muito mais interessante do que uma simples pomba cotidiana e doméstica.
Eva deu a volta, as crianças a seguindo, juntas, para não se perderem no enorme zoológico tranqüilo de um domingo à tarde, com os pais na frente do computador, por causa de um vírus infectando os costumes e rituais de antigamente. E o jaguar que havia andado pela imensa floresta do equador, salvado Antonio José Bolivar, estava mancando, dava para ver quando se levantou para ir comer o alimento que os funcionários lhe ofereceram. As crianças ficaram com muita pena dele. Melhor sair daqui, ir para outro bicho menos fragilizado! Porque não queremos a fragilidade, buscamos a força e nos esquecemos que uma depende da outra, para entrelaçar-se e formar uma coisa só.
Chegaram então na jaula da mula-sem-cabeça jorrando fogo pelo pescoço, cavalgando num cercado sem mato e capim e defecando crenças que lhe introduziam pescoço abaixo, como se enfia uma pá de carvão no forno. Impressionante como modernizaram seu habitat: um vidro à prova de fogo e escuro, lá dentro as noites de quinta-feira, os pecados da carne da mulher e a infidelidade dos sacerdotes.
No habitat do boto a água turva do Rio Negro reluzia a pele rosa. Ele nadava com tanta desenvoltura e sorria atrás do vidro do gigantesco aquário. Aquele sorriso incrustado no focinho. Há espécies que são assim: carregam esse sorriso incrustado que não desmancha nem quando estão tristes ou odiando ou falecendo. E, enquanto todos se certificam de sua felicidade, eles se corroem por dentro cada vez mais e o sorriso ficando ainda mais evidente.
Ali estavam no covil das anacondas. Eva se lembrou da manchete dos jornais sobre o regresso da anaconda que fugiu do zoológico. Depois de ter conseguido a liberdade, caiu nas garras da selva que não era mais a mesma. Veio um homem, depois outro e mais outros e a selva se tornou outra coisa. A anaconda não reconheceu mais sua pátria e regressou ao cárcere voluntariamente. Isto também acontece, quando cerceiam a confiança no nosso mundo, desmatam aquilo que tanto conhecemos e que faz parte de nossa natureza. Foi uma sensação! Todos queriam visitá-la, recebeu um habitat maior, mais alimento e aquele respeito indevido, do qual era obrigada a usufruir, porque o respeito maior e autêntico seria a selva, mas esta já lhe era há muito inacessível.
Havia também os filhotes da imensa anaconda, que havia sido a rainha da selva, e que morreu com um tiro na cabeça, quando certo vaporzinho passava pelo rio Paranahyba. O passageiro avistou, de longe, o réptil na margem do rio, e atirou, acertando-a na mente. Restaram os ovos que havia botado, um momento antes, no meio do corpo em putrefação do homem que havia morrido por ali, sem ninguém saber. O homem morto que ela tanto velou para, por fim, usá-lo como ninho de vida selvagem e livre.
Agora estavam cansados e foram para uma dessas lanchonetes estratégicas no meio do zoológico, cheia de souvenires de bichos de plástico, adesivos, camisetas, canecas, livros, Cds e etc. Havia algumas mesas no terraço, com o guarda-sol aberto, pois fazia calor, de onde se podia ver os longos pescoços das girafas comendo folhas colocadas nas cestas penduradas nos galhos das árvores.
As crianças comeram hambúrgueres, tomaram coca-cola e estavam correndo pra lá e pra cá. Eva se cansou de dizer para uma e para outra: não faz isso, não faz aquilo, não mexe aí, não sobe aí, deixa isso e etc. Calou-se e a boca mordeu o hambúrguer. Estava mastigando o grande pedaço e só reparou que estava com mais fome do que pensava quando sentiu o gosto da carne bovina. Não era nenhuma vaca sagrada, nenhum boi mitológico seqüestrando a Europa sentada em seu lombo, atravessando o Mediterrâneo. Era a carne de um boi cheio de antibióticos, que passou a vida inteira imóvel dentro de um cercado de ferro, onde não podia sequer enfiar os chifres no impenetrável obtuso e tê-los partidos. Ter partido não o obtuso que é duro demais, mas os chifres! Nem isso podia fazer, autodestruir-se, tinha de esperar que outros o fizessem da maneira e na hora que quisessem. Para depois devorarem-no assim: com maionese e ketchup.
Continuaram o passeio, mas de repente, entrando por um atalho para chegar no viveiro das focas, depararam-se com um chiqueiro de porcos. Mas o que esses animais estavam fazendo num zoológico? Eram simplesmente porcos, desses que a gente vê nas fazendas. Naturalmente, os filhos nunca os haviam visto, viviam nessa grande cidade e estavam integrados nessa época, gostavam de ver televisão e jogar no computador. Onde veriam suínos? Só mesmo no meio do pão, no lanche para a escola, ou no feijão, quando cozinhava feijoada. Seja como for, achou interessante encontrar o animal caseiro no meio de um zoológico cheio de bichos selvagens. Vai ver que serviriam de alimento para alguns dos animais! E por que quebraria a cabeça se não era nenhuma Mrs. Jones na fazenda de Mr. Jones cuidando de alguma revolução de bichos?
Contemplaram os porcos como se fossem qualquer outro animal exótico na iminência de ser extinto, encarcerado na civilização.
Depois seguiram adiante.
Pararam em frente aos rinocerontes, parece que não se achavam mais os melhores do mundo e não tentavam mais dominar toda a cidade, como haviam feito em certo momento da história. Andavam de um lado para o outro, com o corpo maciço, preocupados com o passado pesado. E as crianças, de repente, repararam no senhor Behringer, que coçava a cabeça do seu lado, e gritaram seu nome. O senhor behringer era o vizinho alcoólatra de Eva que costumava vir sempre ao zoológico para tentar descobrir se era o rinoceronte africano que possuía dois chifres ou o asiático. Era fixado nos rinocerontes ou traumatizado porque, por mais que Behringer seja ele mesmo, os rinocerontes não irão deixar de ser rinocerontes com um ou dois chifres, não serão extintos, alguns permanecerão ainda tentando dominar a cidade e o mundo. Mas Eva nunca se deixará dominar por esses brutamontes, pensou ela também coçando a cabeça num gesto automático. Depois olhou furtivamente para o senhor Behringer que lhe sorria, cumprimentando-a. Ele sempre lhe perguntava se ela sabia qual rinoceronte possuía dois chifres. "O africano" —, respondia, pois ela se informara, depois de ouvir essa pergunta várias vezes. Mas o que adiantava lhe responder se o senhor Behringer não deixava de repetir essa pergunta? Eva se despediu do vizinho amavelmente, chamou as crianças e continuaram o passeio. Porém, de vez em quando, sentia suas pernas engrossarem, ficarem pesadas, se sentia corpulenta, maciça e cansada, com uma dor de cabeça no meio da testa...
Melhor ir embora!
No final da tarde, na saída do zoológico Eva pensou: bem mais adiante é a amplitude ou o cimo frio do pedestal?
No fundo, fomos nós que andamos uma parte muito importante de nós. Para, por fim, pegarmos nossos filhos e levá-los para casa.
Havia começado a chuviscar uma garoa fina de verão, o ar estava abafado e nublado. Eva veio dirigindo o carro, torcendo para que o marido tivesse terminado de consertar o computador e as crianças pudessem jogar.
Do livro: Estrangeiro de mim, Gardez Verlag Alemanha, 2005.
Viviane de Santana Paulo publicou Passeio ao longo do Reno (poesia) e Estrangeiro de mim(contos), na Alemanha. A autora pertence à primeira geração de escritores brasileiros radicados no exterior. Promove autores brasileiros no meio literário alemão:foi mediadora na publicação dos artigos de Affonso Romano de Sant`anna e José Miguel Wisnik em duas edições da Lettre International, revista de grande renome na Alemanha. "Procuro criar um amálgama entre os valores heterogêneos das culturas, e também uma ponte entre a realidade brasileira e a internacional e fazer com que muitos leitores a transitem de um lado para o outro." Vive em Berlim e trabalha na Embaixada do Brasil.
E-mail: vsantanapaulo@yahoo.com.br
Fonte: Cronópios
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