Reflexões na Reta Final de Campanha
por Jaldes Reis de Meneses*
Desde o começo do ano, em conversa com amigos e em debates nas minhas aulas de Teoria Política, ao contrário dos que julgavam que as eleições gerais de 2010 seria um espetáculo desinteressante e rotineiro, eu pensava o inverso simétrico: as eleições seriam das mais interessantes e animadas a quem se posta como observador, uma luta renhida, muitas vezes sem quartel, envolvendo, na cena principal, os dois principais grupos em disputa pelo poder político brasileiro, o PT e o PSDB, além de uma extensa série de interesses a tomar partido nos rumos da disputa.
Esses interesses não são apenas os clássicos de uma disputa na sociedade capitalista, cujo cerne é o conflito entre a grande burguesia e os trabalhadores sindicalizados. Ou seja: a contenda entre a renda do capital e os rendimentos do trabalho, mediada pelo Estado. Na Europa (França, Grécia, Espanha, etc.) os efeitos da crise econômica de 2008 puseram na ordem do dia o conflito aberto entre o capital e o trabalho, por meio de uma pauta de reformas de iniciativa estatal.
No velho continente, da parte dos Estados nacionais, da burguesia e da tecnocracia ilustrada predominante nos cargos de mando da União Européia, busca-se a saída da crise através da remoção de direitos sociais já tradicionais, conquistados depois da segunda guerra mundial.
As soluções em curso na Europa assemelham a um dolorido um ato cirúrgico sem anestesia: pensemos na radicalidade do chamamento intrínseco ao conflito imerso na proposta de aumentar a idade mínima de aposentadoria de 60 para 62 anos. O welfare state empacou na Europa: a greve e a luta de rua voltaram à moda. (Em outro diapasão, justiça se faça a Barack Obama: enquanto na Europa busca-se programar reformas antissociais, nos Estados Unidos, o presidente enfrentou contra a direita republicana o combate pelas políticas de saúde e, logo depois de vencida essa batalha, propôs um plano de obras públicas tipicamente keynesiano).
Diferente do europeu, ou mesmo americano, é o caso brasileiro, podendo vir a ser – para ficar numa questão pontual, mas de interesse analítico – o fio da meada explicativo, afora as incompetências políticas do doutrinarismo, ao fracasso eleitoral dos partidos de discurso classista nas eleições de 03 de outubro, principalmente o PSOL. A idéia do conflito aberto encontra-se fora do lugar, atualmente. Estamos em tempos de conflito regulado.
A regulação pelo bonapartismo. O segundo mandato de Lula, na prática, congelou a pauta das reformas antissociais, ao molde das que estão estourando na Europa. Neste sentido, conciliador, ele prestou um relevante serviço à incompleta burguesia e ao inacabado capitalismo brasileiro. Getúlio Vargas costumava dizer, irônico e melancólico, que a burguesia não entendia o trabalho orgânico que ele fazia para ela porque ele se adiantava. Fez-se demiurgo. Pode-se afirmar o mesmo de Lula: nunca as taxas de lucro estiveram tão elevadas, em tempos de regime democrático, nem a paz social tão festejada na esfera política.
Teria a luta de classes desaparecido na paradisíaca terra colonial dos papagaios, como a chamavam os primeiros portugueses? Nada disso. Nosso cotidiano continua cruento, em estado de sítio popular permanente, à maneira da ficção de uma tropa de elite. A guerra de classes brasileira continua seu curso: encontramo-la no registro naturalista da luta pela sobrevivência e no conflito agônico e sem quartel das ruas, repletas de assaltos e homicídios, de saltimbancos improvisados nos sinais de trânsito e na faina sem descanso do trabalho informal.
No entanto, surgiu um balsamo. Comentava em debate com João Pedro Stedile na UFPB, ano passado: a crueldade das ruas afastou-se e não reverbera no terreno da política. A pauta política, contraditoriamente, exala o otimismo do desenvolvimento, das novas oportunidades de investimento, a exemplo do pré-sal. Na esfera política, a guerra de classes se dispersou ao mesmo tempo em que temporariamente se dissolveu o conteúdo exclusivamente classista.
Como veio à luz a prestidigitação?
Do ponto de vista estritamente político, o governo Lula permanece compondo com os mesmos setores acantonados no Estado durante o período FHC. Mas qual a novidade essencial da mesmice: doravante, na era Lula, os antigos movimentos sociais oposicionistas às reformas de FHC passaram a fazer parte do governo. Lula estendeu ao máximo a base política do Estado. Quase nenhum setor social e de classe se põe de fora do Estado, desde a FENABAM ao MST.
Novamente, é de alvitre invocar o espectro de Vargas: o caudilho gaúcho costumava deixar os órgãos de política monetária para os marginalistas e os de desenvolvimento para os cepalinos. Outro exemplo das práticas de Vargas: entregou o nordeste às velhas oligarquias, mas estimulava o crescimento do PTB nos centros urbanos emergentes do processo de industrialização. O conflito era o próprio governo, mas a palavra final era do presidente, que até estimulava o conflito sob as rédeas internas.
Como cogitar entender tanta coisa nova, ainda mais este modo heterodoxo de operar a política, conquanto de raízes fincadas na história do país?
Tornei a cogitar o populismo como categoria explicativa ao formidável movimento societário que se passa aos nossos olhos. Populismo e hegemonia, ou a construção de uma fase de hegemonia populista no Brasil.
Em teoria política, populismo é um conceito polissêmico, mais descritivo que rigoroso. Há vários mal-entendidos sobre o populismo.
Em primeiro lugar, precisa-se conhecer a história do populismo, desde a origem romântica e russa, no século XIX, até a influente corrente norte-americana antitruste, em começos do século passado. Desprovido de análise histórica e repleto de preconceitos, a corrente principal do mundo acadêmico norte-americano sempre tratou os regimes populistas liminarmente, em insossa abordagem economicista. Conforme os autores do maistream, populistas são os regimes “gastadores”, voluntaristas, avessos à disciplina fiscal, preocupados com o crescimento e a distribuição de renda, todavia sem medir os riscos de inflação e de déficit externo, as coerções externas e a resposta dos agentes econômicos às políticas agressivas contrárias ao mercado (Rudiger Dornbush & Sebastián Edwards, The macroeconomics of populism in Latin America).
Na verdade, o alvo de tais definições são as políticas redistributivas dos diferentes populismos. Escapam a estas definições os contextos políticos, contrastantes no tempo e no espaço, principalmente abordar a riqueza social e dramática de todo populismo: a necessidade, para se manter vivo ou sobrevivendo, da compulsão de crescer economicamente.
A nota curiosa é que a sociologia paulista – um dos braços intelectuais tanto do PSBD como do PT – recebeu o populismo brasileiro com aguda desconfiança. Florestan Fernandes costumava dizer alto e bom som que sequer tivemos populismo, como na Argentina, mas simplesmente demagogia. Caio Prado Jr. cuidou de definir a “era Vargas” em “A revolução brasileira” na condição de “malfadado” período histórico. Francisco Weffort estudou a “manipulação” dos trabalhadores.
Justifica-se a posição acre dos intelectuais paulistas. Entre vários aspectos nocivos, por exemplo, quanto à estrutura sindical, o regime populista foi de tutela corporativa do Estado sobre a organização dos trabalhadores. Ironia da história, o PT nasceu sob a influência dessa crítica sociológica. Com o tempo, na medida em que foi se amoldando à vida política institucional, passou a gerir e a gostar da estrutura herdada. Nos dias de hoje, o governo Lula, no âmbito das várias acomodações, conseguiu conciliar o antigo sindicalismo pelego (representando pela Força Sindical) e o novo/velho sindicalismo neoestatal dos fundos de pensão (CUT e consortes). Fez-se a partilha: a Força Sindical dirige o Ministério do Trabalho (ou seja, os negócios atinentes a quem representa e deixa de representar os trabalhadores), ao passo que a CUT comanda os negócios da china dos fundos de pensão.
Enganam-se, no entanto, aqueles que vêem na adesão das massas ao populismo simplesmente manipulação. Apesar de tudo, as massas não são simplesmente “traídas”. Há um jogo de perde e ganha, ontem e hoje, de apelo hegemônico, nas fimbrias do sistema institucional construído, caso contrário o regime sumiria rapidamente do mapa.
Nestes termos, para abreviar, penso que o segundo governo Lula moveu as peças do xadrez, gerando tanto adesão como oposição. A engenharia política permitiu o acesso à criação social. Passamos da política institucional às placas tectônicas que se movem no subsolo. São muitas as transformações sociais, a mais importante das quais a mobilidade dos grupos que transpuseram nos últimos anos o umbral da pobreza absoluta, da carência, integrando, a partir do acesso permanente ao consumo com base no mercado interno, o embrião de uma nova classe média de origem popular. Estimativas conjeturam 36 milhões de cidadãos, na fronteira entre a cidadania passiva e ativa.
A propósito, no clima de campanha eleitoral, há muita confusão a respeito do fenômeno da pobreza. Setores dilmistas, bem intencionados e ingênuos, aludem uma hipotética “erradicação” da pobreza. É preciso ir devagar com o andor. Caso haja continuidade das políticas sociais, alçamos a um processo, talvez, de erradicação da pobreza absoluta. Diverso é o problema da pobreza relativa, que persistirá, pois como denota a própria expressão, ela é relativa, tem como medida a desigualdade social capitalista. Ademais, a problemática desigualdade no capitalismo, deve desaguar na comparação dos rendimentos do trabalho vis-à-vis os rendimentos do capital.
Por outro lado, a oposição ao governo tem sido chamada a dar respostas políticas a uma série de fatos novos. O grupo de Serra/PSDB/DEM/PPS responde de duas maneiras: a primeira, dominante no primeiro turno, buscando aparentar ser mais lulista que o lulismo, nas promessas de continuidade, 13º da bolsa família e 600 reais de salário mínimo. Mais que proposta para valer, o objetivo é disputar simbolicamente com o populismo emergente. Pode-se ser contra, mas demonstra argúcia tática. Em segundo lugar, a oposição pratica zoologia política. Gosto muito dessa expressão de Leon Trotsky, que significa a política que apela aos baixos instintos. Neste sentido, a campanha eleitoral tucana desentupiu do poço da irracionalidade, dos recalques e da ignorância, os argumentos mais vis de que se tem notícia em eleições presidenciais desde 1989. Trata-se de um jogo perigoso, nos termos do que fazer com esse espólio sujo no caso de operar a difícil almejada virada. Os tucanos desceram dos salões ao prostíbulo.
*Jaldes Reis de Meneses é professor de Teoria da História (UFPB).
Fonte: Blog Campo de Ensaio, 15/10/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário