Tropa de Elite 2 – A saga do “herói brasileiro” e o quanto há de política na afirmação de que “filme é apenas arte”
por Fabiana Melo Sousa
Assistir o filme “Tropa de Elite 2 - O inimigo agora é outro” e não fazer comparações com o primeiro é tarefa muito difícil, tanto no que diz respeito à estética quanto à repercussão da opinião pública a respeito da violência no Rio de Janeiro. Mas será possível encaminhar uma análise destas duas instâncias de forma separada? Talvez a maior indagação seja: quais são os limites que separam arte e política?
No início do filme somos avisados que “qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência”. Esta é a primeira imagem-aviso que recebemos numa afirmação diagética do espaço onde estamos: expectadores numa sala escura, comendo pipoca numa tarde de sábado. E somos muitos: 3 milhões em menos de uma semana de exibição, chegando ao valor de R$30 milhões arrecadados com a bilheteria do filme, somente na primeira semana de exibição.
Mas o que leva tantas pessoas ao cinema? Em primeiro lugar, o tema do filme é mais do que nacional. Ao contrário dos discursos hegemônicos de que brasileiro só gosta de filmes estrangeiros e de que estamos cansados de tanta violência sobre o Brasil no cinema, o longa retrata a crise que as grandes cidades brasileiras estão passando hoje, transformando-se em palco principal dos contrastes sociais que o país vive, em que a riqueza e beleza, no caso de Tropa, da cidade maravilhosa, convivem lado-a-lado com as favelas.
O argumento da obra tem como principal pensador o ex-comandante do BOPE do Rio de Janeiro, Rodrigo Pimentel, e mostra neste cenário desigual um policial humanizado como protagonista desta cidade em crise. Esta saga do “herói brasileiro” é novamente vivida por Wagner Moura que dessa vez traz uma densa atuação, conforme o filme pede, com uma expressão corporal que diria tudo por si, mas que fica prejudicada em diversos momentos por uma maquiagem exagerada.
Nosso herói agora está com outros problemas: separado de sua esposa Rosane interpretada por Maria Ribeiro, ela agora é casada com Fraga (Irandhir Santos), um militante de direitos humanos e um dos maiores críticos da atuação do BOPE que mais tarde candidata-se a deputado estadual, tentando instaurar uma CPI para investigar as milícias do Rio de Janeiro. É claro que este conflito confunde-se entre ideológico e pessoal quando o que está em questão é o filho de Nascimento e sua formação de opinião quanto ao trabalho de seu pai.
Um homem que, primeiramente, precisava escolher entre a ética que envolve seu trabalho e o futuro de sua família, agora vive um policial maduro e vê a sua crença de colocar ordem nesta sociedade corrupta através de sua “tropa de elite” cair por terra ao descobrir que existe uma lógica de sistema que sustenta toda esta desordem. Lógica que é maior do que a relação dualista e estreita entre bandido (traficante e policial corrupto) e mocinho (o policial do BOPE). O Capitão Nascimento agora está dentro do sistema e, ao tentar combatê-lo, percebe que a corrupção está em seu cerne. Muito tarde, o militar se dá conta de que ela não é um defeito, mas sim parte da concepção de Estado que é exercida neste país. “O inimigo agora é outro” aponta o próprio título do filme.
Nosso herói agora está arrependido e tenta de muitas formas desfazer o mal feito, mas percebe que o problema é muito mais grave do que imaginava, pois está cercado de inimigos: o governador que apoia a milícia por questões eleitorais, os deputados estaduais que ganham muito com a ascensão da milícia e todas as outras figuras conhecidas, até a mídia que atua como poderosa arma na opinião pública para legitimar a violência.
A sensação de impotência diante de algo que já está ali há muitos anos sendo vivenciado pelo herói é claramente identificada pelo expectador. Quem de nós como cidadãos brasileiros nunca tivemos essa sensação numa fila de hospital público ou ao tentar educar nossos filhos nas escolas do Estado. Para os poucos que chegam à universidade é de indignar ver a estrutura física das instituições de ensino sucateadas ou mesmo, quando no limite desta questão, sofremos com a violência propriamente dita, executada por aqueles que cedem ao abandono da humanidade e se assumem como parte da barbárie com o outro.
A estética documental que é mantida neste segundo filme também ajuda muito na aproximação com a “realidade” e na simpatia dos 3 milhões de expectadores.
A fotografia lavada de Lula Carvalho, onde as imagens não são retocadas deixam um clima tenso e ao mesmo tempo parece que estamos assistindo cenas que vimos todos os dias nos noticiários. A câmera é inquieta e em algumas sequências a instabilidade do enquadramento chega a incomodar, como é o caso da primeira, que retrata uma rebelião numa penitenciária.
Daniel Rezende respeita o tempo interno que o filme exige numa montagem, valorizando os atores em cena e dando maior intensidade à câmera perturbadora e com movimentos inquietos, que também são explorados em primeiríssimos planos nos momento em que Nascimento conversa sobre seu filho com sua ex-esposa.
O elenco como um todo é atravessado pelo trabalho de Fátima Toledo que mais uma vez deixa sua marca na preparação de elenco em filmes que exigem dos atores intensidade e entrega total para viver o instante das cenas: suas vozes, posturas e olhares passam para o expectador todos os incômodos e emoções possíveis, principalmente nas cenas de violência explícita, assim como nos diálogos improvisados que marcam muitos momentos do filme.
Mas será que estes elementos estéticos do filme dão conta de responder a pergunta: o porquê de o público brasileiro identificar-se tanto com Tropa de Elite 2? Estes elementos fílmicos nos levam a outra pergunta: o que estes elementos em conjunto contribuem ou não para a nossa construção de mundo que por sua vez influenciariam em nossa construção política de mundo?
Esta questão não é só de quem escreve estas palavras, a declaração do atual comandante do BOPE, Paulo Henrique Moraes também aponta esta preocupação, pois ele mesmo declarou em entrevista coletiva sobre o filme no dia 14/10/2010 que, ao misturar ficção e realidade, o filme pode vir a confundir a opinião dos expectadores. Atrevo-me a afirmar que o capitão pode estar certo e errado ao mesmo tempo.
O grande incômodo que o primeiro filme “Tropa de Elite” causou nos grupos de direitos humanos foi exatamente a respeito de sua estética documental que aproximava acontecimentos reais vividos pela sociedade carioca, que era o caso da guerra entre o tráfico de drogas do Rio de Janeiro e a relação com a polícia, mas que tinha como pano de fundo a saga de um herói que em muitos momentos aparecia em cenas de tortura. Não são necessários estudos muito profundos para perceber o quanto o personagem Capitão Nascimento caiu no gosto popular: fantasia de carnaval da tropa de elite, o jargão “pede pra sair” que estava na boca das crianças e mesmo a opinião pública a favor da atuação da polícia nas favelas são sinais do quanto a população como um todo foi influenciada pelo o que o filme retratou. Sobre este aspecto, talvez o atual comandante tenha razão.
O fato da produção do segundo filme ter esperado as eleições passarem para ser lançado pode ter explicações políticas também: seus personagens são idênticos a algumas personalidades públicas do atual cenário carioca, principalmente os que representavam o corpo político de nossa câmara de vereadores.
O desfecho do filme também traz uma mensagem explícita: sobre o Planalto do Palácio em Brasília, Capitão Nascimento em off narra a verdadeira raiz da falha das políticas de segurança pública do país, que é não conseguir chegar ao verdadeiro crime organizado. Se as investigações fossem levadas a sério iriam chegar aos senadores, à bolsa de valores e às grandes esferas de poder do Brasil e do mundo.
Neste sentido sim, o comandante Moraes tem razão em preocupar-se com os resultados de um filme que retrata a política brasileira com o que ela de fato é: o resultado de um Estado que serve aos interesses de um projeto de mundo neoliberal que ao criminalizar a pobreza desvia a atenção do eleitor para as verdadeiras causas da violência que estamos inseridos e, como lembra Milton Santos, que organiza a cidade dentro destes interesses.
E criminalizar a pobreza é coisa que a mídia sabe fazer muito bem. A mídia, assim como todas as empresas, representam os interesses deste sistema e percebem que numa sociedade midiática tudo o que se produz em imagens é percebido como mensagem e é sempre carregado de ideologia.
Mas por outro lado, esta mesma indústria de imagens que transmite, divulga e reafirma a criminalização da pobreza, é a mesma que aliena com a indústria do entretenimento, e aí é que começo a pensar que Moraes talvez possa ficar despreocupado.
As ditaduras militares nos anos 60 aqui no Brasil e na América Latina fizeram mais do que torturar, instalaram em nós um pensamento difícil de desconstruir, que é o da descrença numa mudança de sociedade. O grito de esperança de um mundo sem injustiças foi amordaçado pelas mãos do mesmo sistema que o filme “Tropa de Elite 2” denuncia. Hoje, como resultado, temos uma sociedade que a cada dia luta para seus interesses individuais, desta forma, ir ao cinema e assistir um filme que traz uma constatação tão perspicaz é apenas entretenimento.
Voltamos então a pergunta: quais são os limites entre arte e política? E a ela acrescento outra: para que serve a arte se ela não transforma nada ou para que serve hoje lutar se atualmente temos uma sociedade que não se interessa pelas lutas coletivas?
Os limites que separam arte e politica são tênues e muitas vezes a confusão entre os dois é criticada tanto por aqueles que atuam na primeira quanto na segunda esfera, mas se o que nos difere na maioria dos outros animais é o fato de sermos seres sociais e culturais, isso quer dizer que procurar estabelecer lugares opostos para cada coisa é perder a oportunidade de trazer a tona questões que estão em nossa vida.
Não vamos esperar, assim como o Capitão Nascimento, que algo nos atravesse de forma avassaladora e destruidora para que tenhamos mais do que indignação, mais coragem para enfrentar os problemas em nossa sociedade. Precisamente, no caso da violência do Rio de Janeiro, estar sensibilizado com as lutas de heróis como o Nascimento e o deputado Fraga são importantes, mas é em nossa participação ativa e coletiva que podemos ver transformações.
Ir ao cinema, assistir um filme e comentar com os amigos, debatê-lo em sala de aula, conversar com as pessoas na fila do banco, promover exibições coletivas em casa ou em cineclube é mais do que um ato pela divulgação da indústria cultural em nosso país, é um ato político.
Santiago Alvarez, grande representante do cinema latino-americano dos anos 1960, diz ter muitas dificuldades em distinguir o que não é um filme político e talvez a sua dificuldade seja em conseguir perceber o que não é política nas ações humanas.
Identificar o filme “Tropa de Elite 2” com a nossa realidade brasileira é perceber que o tema ainda não se esgotou, portanto ele não é a única e verdadeira realidade Brasileira.
Se existe uma coisa que aproxima o fazer artístico da atuação política é o fato que em ambos nos sentimos mais vivos e mais humanos, que não vale a pena viver apenas para sobreviver. Se a arte serve para mexer com os nossos sentimentos e, se a indignação tanto com a imagem de um torturador quanto com a de um deputado honesto que tenta denunciar uma milícia é algo provocado por um filme, e se esta indignação é uma mola motora para transformação, então fazer arte é um ato político.
Ao final do filme, o filho então adolescente do Capitão Nascimento leva um tiro numa tentativa de assassinato, pois estava no mesmo carro do seu padrasto que, enfim, consegue aprovar a CPI das milícias. Na última cena, o garoto numa cama de hospital abre os olhos. E então, vamos abrir os nossos? Qualquer semelhança com a realidade é coincidência?
Fonte: Blog Leia Cinema, 18/10/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário