(Cecília Meireles)
Por falarmos de chá, lembrei-me de dois poemas chineses, muito antigos, do tempo daquela famosa dinastia T’ang, sob a qual floresceram tantos poetas, e acima da qual brilharam astros como Li-Po e Tu-Fu.
Um dos poemas é de Lo-Tung, grande bebedor de chá, que enumerava as sensações experimentadas à medida que absorvia consecutivas taças:
A primeira taça umedece-me os lábios e a garganta;
a segunda, interrompe-me a solidão;
a terceira, penetra-me as entranhas, onde resolve
[milhares de ideografias estranhas;
a quarta, produz uma leve transpiração que leva,
[através dos meus poros, o que existe de
[mau na minha vida;
com a quinta, sinto-me purificado;
a sexta, transporta-me ao Reino dos Imortais;
a sétima... Ah! a sétima... já não posso beber mais!
Sinto apenas o sopro do vento frio encher as mangas
[da minha roupa...
Onde está o Paraíso?
Deixai-me subir nesta suave brisa e que ela me leve
[para lá!
O outro poema, de Uang-Tsi, é em forma de mensagem: delicada mensagem de um homem que manda a um amigo algumas folhas de chá para agradecer-lhe um poema de outro poeta. Diz assim:
Para agradecer-vos por me terdes feito conhecer esta poesia de Tsu-Kia-Liang, envio-vos algumas folhas de chá. São da árvore do mosteiro situado na montanha U-i.
É o mais ilustre chá do Império, como vós sois o seu mais ilustre letrado. Tomais um vaso azul de Ni-hing. Enchei-o de água de neve colhida, ao nascer do Sol, na vertente oriental da montanha Su-chan. Colocai-o num fogo de gravetos de roble, que devem ter sido apanhados sobre um musgo muito antigo e deixai-o sobre esse fogo até que a água comece a rir.
Derramai-a, então, numa taça de Huen-tcha, onde deveis ter colocado algumas folhas de chá, cobri a taça com um pedaço de seda branca tecida em Hua-chan e esperai que se espalhe pela vossa câmara um perfume comparável ao de um jardim de Fun-lo. Levai a taça aos lábios e fechai os olhos. Estareis no Paraíso.
Lidos os dois poemas, verifica-se não ser difícil chegar ao Paraíso. Basta saber preparar e saber beber uma taça de chá. Notai, porém, senhores, quantos requisitos exteriores e interiores são necessários a esse ato aparentemente fácil e simples! Mesmo sem provar desse chá de tão remotos séculos, se ouvirmos bem os poemas, se os ouvirmos extremamente bem, chegaremos ao Paraíso. (Mas ainda haverá quem sonhe com lugar tão sutil?)
* MEIRELES, Cecília. O que se diz e o que se entende. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
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