A respeito da racionalidade e da eficiência na economia
por Paulo Kliass
Ao que tudo indica cada vez mais se generaliza, em quase todas as esferas de discussão no mundo, a sensação de que o sistema financeiro internacional, mantidas as regras e a institucionalidade atuais, não resiste a mais uma crise como a que eclodiu em 2008 e vem se arrastando até os dias de hoje. A urgência das mudanças parece consensual, mas o tempo e a dinâmica para transformar o “status quo” parecem lentos demais. E nessas horas todo mundo começa a se perguntar com maior preocupação onde residiria a suposta racionalidade da ação humana.
Bem que a teoria econômica hegemônica tentou conferir ares de seriedade e cientificidade aos modelos sofisticados que sustentavam o sistema vigente. Afinal, a partir do final da década de 80, foi sendo consolidada uma percepção de que realmente estávamos frente à porta de entrada do “fim da História”, nas palavras de Francis Fukuyama. O autor norte-americano era um dos que puxavam o carro-chefe daqueles que acreditavam que o fim do modelo adotado pelos países do chamado socialismo real confirmava a supremacia definitiva da alternativa liberal dos países ocidentais. Os tempos das contradições eram coisa do passado. Dali para a frente, era só se preocupar em supervisionar a sintonia fina para a administração do modelo e se preparar para curtir a felicidade terna a ser proporcionada pelo capitalismo.
No campo da economia do “establishment”, por exemplo, ganhava bastante força uma abordagem que ficou conhecida como a “corrente das escolhas racionais”. O pressuposto básico era que a eficiência do sistema de livre troca no mercado sempre se manifestava de forma inquestionável, desde a singela opção da dona de casa na escala da feira de rua até as complexas relações entre nações soberanas na busca do equilíbrio macroeconômico no plano internacional. O fundamental era assegurar a tal da “liberdade” para que as condições de plenitude das “forças de mercado” oferecessem ao conjunto dos agentes econômicos a decisão que levaria sempre à solução mais eficiente. Em síntese, o encontro dos agentes da demanda e os da oferta – sem nenhuma intervenção do Estado, diga-se de passagem – proporcionaria um ponto de equilíbrio em que todos sairiam ganhadores. Ou seja, o melhor dos mundos!
Como a realidade tende a ser mais complexa do que a simplificação inerente a qualquer modelo, uma primeira pergunta sempre vinha à tona: mas por que? Qual a garantia de que haveria um todo poderoso deus “ex-machina” a assegurar tamanha situação de bonança para todos? A resposta foi sendo elaborada teoricamente e chegou-se a um ponto essencial: a racionalidade dos agentes econômicos. Afinal, toda ação econômica envolve a intervenção do ser humano em algum tipo de cenário – pessoal, doméstico, empresarial, governamental, transnacional. E como o ser humano é dotado de racionalidade (afinal seria esse o maior diferencial na escala evolutiva, em relação aos demais seres vivos), as ações derivadas estariam, portanto, embasadas no senso da racionalidade.
A cada momento, frente à necessidade de tomar uma decisão, as pessoas acabariam optando pela alternativa dotada de maior dose de racionalidade. Se algum chato insistisse, ainda, questionando a respeito das situações de crise aguda ou de mesmo de guerra, a resposta era de que ou elas conteriam algum elemento de racionalidade intrínseca (o que não deixa de ser verdadeiro, aliás!) ou então que aqueles não passariam de momentos de exceção na história, o que só faria confirmar a validade da regra das “escolhas racionais”.
Vocês já devem ter percebido que, ao introduzir o conceito de racionalidade, o próprio modelo reconhece, sem talvez tomar consciência do ato inadvertido, a interdisciplinaridade do tema da economia. Para além das já conhecidas tangências com os elementos do social, do histórico e do cultural, aqui surge uma ponte com a psicologia. E justamente esse vai ser um dos aspectos que comprometerá a sustentação das explicações oferecidas pelas “escolhas racionais”. Qual o tipo de racionalidade que estaria por trás dos tomadores de decisão na seara da economia? Será que o resultado coletivo derivado de um conjunto contraditório de ações individuais manteria ao final do processo seu caráter racional? Na verdade, os fatos da história econômica têm demonstrado que a ação dos assim chamados “agentes econômicos” guarda uma relação profunda com a defesa dos seus próprios interesses, tal como eles se colocam frente a cada tomada de decisão.
E aí, a racionalidade de cada um dos tomadores de decisão pode ser considerada como absolutamente “irracional” pelos outros envolvidos no mesmo cenário. E justamente por existir essa contradição, essa oposição entre interesses distintos, é que a solução se dá por meio de alguma forma de disputa. E isso vale desde as relações entre países no plano do comércio internacional, até a definição do preço do carro usado na feira do final de semana entre comprador e vendedor, passando pelas guerras comerciais entre conglomerados empresariais no estabelecimento de preços e quantidades de compras e vendas. E assim, cada vez mais, parecemos nos afastar da hipótese generosa de que o pressuposto do “comportamento racional dos agentes” levaria a uma solução racional, em que seriam confirmadas as benesses da eficiência da decisão para todos.
Ora, se defender seus próprios interesses pode até ser considerado como uma atitude racional, o fato do conjunto da sociedade ser influenciada por esse tipo de comportamento não significa que estejamos todos sendo beneficiados, em termos de uma suposta eficiência, por essa ação. Os salários dos trabalhadores chineses, a maioria do povo da Grécia, os detentores de hipotecas imobiliárias nos EUA e os aposentados da França que o digam, para citar apenas alguns casos emblemáticos recentes e fora de nossas fronteiras nacionais.
Um dos fatos mais carregados de significado, após a crise iniciada há 2 anos nos Estados Unidos e rapidamente alastrada pelo mundo afora, é que a História continua e que as contradições do sistema social e econômico tampouco foram resolvidas. Desde a fundamental contradição entre capital e trabalho, passando por contradições entre diferentes setores do próprio capital, entre os interesses de diferentes países na disputa global, entre diferentes regiões por maior espaço planetário, etc.
Podemos nos perguntar qual a racionalidade de uma sociedade, como a norte-americana, que tem como um dos pilares de sua economia o chamado complexo industrial bélico-militar. Quando as pressões se fazem para aumentar produção e emprego, o resultado é sempre alguma ação dos Estados Unidos envolvendo aventuras de suas forças armadas – e sempre fora de seu território, é importante observar. Se existe algum grau de eficiência em tal opção, ela passa muito longe da melhoria das condições de vida da maioria dos povos no mundo.
A mesma indagação pode ser feita a partir do comportamento dos grandes oligopólios atuantes na esfera financeira. Exatamente como ocorreu com a crise recente, quando os principais gestores dos patrimônios buscavam soluções para seu próprio umbigo, sempre adiando assumir o que muitos analistas já anunciavam: o sistema estava quebrado, insustentável a curto prazo com aquelas bolhas de valorização artificial no mercado financeiro e nas bolsas de valores. Qual a eficiência derivada dessa busca de racionalidade descontrolada? Os zilhões de dólares , em seguida alocados pelo governo americano, contrariando inclusive a própria racionalidade da não-intervenção pública no domínio econômico e de deixar todas as soluções para o tal do “mercado”. E o espalhar dos efeitos da crise para além de suas fronteiras, atingindo severamente o resto do mundo.
O quer dizer da questão da sustentabilidade de nosso planeta? A lógica econômica que guia a ação dos principais dirigentes governamentais e empresariais nos tempos de hoje pouco avançou no sentido de alterar os modelos que claramente comprometem o futuro da Terra e da própria humanidade. Efeito estufa, aquecimento planetário, degelo, aumento do nível dos oceanos, desertificação, carência de água, emissão de gases, desmatamento, uso irracional dos recursos escassos do meio-ambiente em modelos predatórios. Exemplos não faltam. Para quem está dirigida alguma suposta eficiência inerente a esse modelo?
E para finalizar, voltando ao nosso cantinho. Como justificar o modelo de política macroeconômica vigente há mais de uma década em nosso País, que pressupõe a manutenção de taxas estratosféricas de juros pela política monetária, sacrificando uma parcela expressiva dos recursos do orçamento público para transferir renda a uma elite, ao mesmo tempo em que se anunciam cortes nas despesas públicas essenciais, sob o argumento batido da suposta falta de recursos? É óbvio que há interesses por trás dessa orientação. Mas parece mais do que demonstrado que tal “racionalidade” não apresenta “eficiência” para o conjunto da sociedade.
* Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior, 17/12/2010
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