Formar o caráter de um jovem não significa apenas colocar limites, mas, sobretudo, autorizar
por Contardo Calligaris.
Em 14 de novembro, na avenida Paulista, um grupo de cinco jovens agrediu outros jovens sem razão aparente.
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Não se sabe se o ato foi uma expressão de raiva homofóbica ou apenas a estupidez habitual de um grupinho de adolescentes soltos pelas ruas.
Não se sabe se o ato foi uma expressão de raiva homofóbica ou apenas a estupidez habitual de um grupinho de adolescentes soltos pelas ruas.
Em entrevistas na Folha, os pais de dois dos agressores se colocaram a eterna questão dos adultos quando os filhos aprontam além da conta: "onde foi que a gente errou?".
Em geral, muito mais do que nos erros dos pais, a origem da conduta criminosa (ou simplesmente estúpida) de um adolescente está no grupo ao qual ele pertence ou ambiciona pertencer.
Mas o que me importa hoje é que os pais, ao interrogar-se sobre o que fizeram de errado, concluíram que talvez eles tivessem colocado poucos limites nos filhos. Os jovens teriam se extraviado porque "faltou pulso".
Essa ideia é hoje um chavão: recusar, proibir, ou seja, frustrar os desejos dos jovens seria um ato formador do caráter. Aqueles a quem tudo seria dado não teriam noção da lei e dos limites; escravos de sua própria ânsia de satisfação imediata, eles não saberiam lidar com os contratempos da vida.
Nessa linha, como me lembrou uma leitora, Ana Lamanna, o psicanalista Wilfred Bion (em "The Theory of Thinking", teoria do pensamento, 1962) supunha que as frustrações fossem um requisito do pensamento.
Ao longo do desenvolvimento, inteligência e criatividade apareceriam à condição de que as vontades não fossem todas satisfeitas. Vulgo: a satisfação emburrece e as frustrações têm valor pedagógico.
Na semana retrasada, nesta coluna, mencionei a ideia, derivada de J. Bowlby e D.W. Winnicott (injustamente derivada, observou com razão um leitor, Davy Bogomoletz), de que a privação na infância estaria na origem da delinquência adulta.
Para a psicanálise, privação e frustração não são bem a mesma coisa, mas, para o leigo, surge uma certa contradição: afinal, ser frustrado ou privado estraga ou forma o caráter de nossos rebentos?
Outra leitora, Maria Chantal Amarante, antevendo essa contradição, propôs uma solução: "Frustrar as necessidades básicas deixa feridas imensas" (e pode, portanto e por exemplo, levar à delinquência), mas não por isso seria menos necessário "frustrar os desejos e vontades ilimitados das crianças de hoje", para que elas não "cresçam achando que podem tudo".
Como Maria Chantal, acho que muitas coisas devem ser recusadas às crianças -desde as que não são adaptadas à idade que elas têm até as que pediriam aos pais um sacrifício excessivo. No entanto, duas observações:
1) Podemos frustrar nossos filhos de pipoca e videogames, sobretudo quando eles parecem acreditar que tudo lhes é devido, mas imaginar que, com isso, a gente esteja lhes formando o caráter ou lhes ensinando a viver é puro melodrama.
Funciona assim: nós imaginamos que seríamos capazes de mimar as crianças a ponto de elas nunca aprenderem que a insatisfação é o regime normal do desejo.
Será que alguém tem tamanho poder? Não acredito, mas, aparentemente, fortes dessa ilusão, decidimos frustrá-las um pouco para salvá-las de nossa suposta (e duvidosa) capacidade de embrutecê-las à força de satisfação.
2) Também justificamos nossa decisão de recusar e proibir com a ideia de que isso estabeleceria, nas crianças, uma sólida e benéfica ideia de autoridade.
Cá entre nós, é preciso que a autoridade em geral e a nossa em particular sejam bem decadentes para que, a fim de serem levadas a sério, elas precisem privar as crianças de balas, cinema ou TV.
Mais importante: o que estabelece a autoridade e forma o caráter é mesmo o ato de recusar e proibir?
Ao procurarmos nossas falhas educativas (que sempre existem), seria bom não buscá-las só na falta de proibições e limites, mas também na falta de autorizações.
Pois, ao educar, o mais difícil talvez não seja impor limites e interdições. O mais difícil talvez seja transmitir às nossas crianças a coragem de desejar.
Pois, ao educar, o mais difícil talvez não seja impor limites e interdições. O mais difícil talvez seja transmitir às nossas crianças a coragem de desejar.
Proibir as saídas noturnas e o uso prolongado de computador é ótimo e necessário, mas a autoridade que forma o caráter de um jovem não é só a que diz não às suas vontades; é também a que o autoriza a dizer sim na hora daquelas escolhas de vida que são custosas e decisivas e diante das quais é fácil amarelar.
Fonte: Blog Contardo Calligaris, 16/12/2010
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