Água no coração
por Lúcio Flávio Pinto
De uma coisa não tenho dúvida: sou um homem das águas, um ser anfíbio. Nasci no lugar do Pará em que o rio Tapajós, o mais bonito do mundo, encerra sua jornada de mil quilômetros, incluindo um dos seus formadores, o Teles Pires, onde o governo federal quer construir cinco hidrelétricas de grande porte. Na foz, que tem quilômetros de largura entre labirintos de ilhas, o Tapajós lança suas águas verdes contra o barrento Amazonas, em frente a Santarém, que era a segunda e hoje é a terceira maior cidade do Estado.
Em 1949, quando vim ao mundo, Santarém não tinha 15 mil habitantes (hoje está com quase 180 mil, mais 90 mil na zona rural do município). Com meses, eu era levado para tomar banho no rio. Aprendi a nadar antes de ter consciência de mim. Sofri os pavores de um método que só muito depois ganharia ares de cientificidade: era largado na água e só resgatado quando começava a me afogar. Logo passei a flutuar. Daí a deslizar foi questão de braçadas.
Nossa vida era demarcada pelo ciclo das águas: seis meses subindo, seis meses descendo, com todos os efeitos do avanço ou do recuo da massa aquática sobre terras que caíam pela erosão ou cresciam pela sedimentação. Em Santarém, tudo era função do encontro de rios de coloração tão contrastante, com uma peculiaridade: quando chegávamos à alva e extensa praia na orla da cidade (hoje poluída e deteriorada) e o Amazonas vencera seu constante cabo-de-guerra com o Tapajós, ninguém se atrevia a mergulhar. Acostumados à cristalinidade do Tapajós, que permitia até pesca submarina só com óculos, vendo-se o fundo lá embaixo, sentíamos nojo da cor de sujeira do “rio-mar”. Ficávamos na praia jogando futebol ou fazendo qualquer coisa. Não era dia de banho.
Eu ainda não havia completado quatro anos quando, em 1953, houve a maior das cheias do século 20. Lembro-me dela por imagens desfocadas na memória engatinhante, pelos testemunhos dos mais velhos e por álbuns de fotografias. A mais impressionante delas exibia a rua principal do comércio tomada por tábuas de madeira, que substituíam o calçamento, todo submerso, para permitir a passagem dos moradores.
Outra grande cheia, talvez mesmo a maior de todas, foi em 1976. Já como repórter, aos 26 anos, esta eu fui verificar pessoalmente os acontecimentos. Naveguei durante 13 dias pelo Amazonas, conferindo os lugares mais atingidos pelas águas.
Mais impressionado ainda fiquei em 1984, ao chegar a Tucuruí, onde foi construída a quarta maior hidrelétrica do mundo. Vi o rio Tocantins, ainda maior que o Tapajós, completamente barrado, pela primeira vez na sua história de milhões de anos, por uma monumental parede de concreto, com quase 80 metros de altura.
De uma parte alta do terreno próximo, vendo aquele espetáculo, ao mesmo tempo da espantosa engenharia humana e de sua presença inoportuna nos domínios da natureza, o moleque aquático emergiu dentro de mim sem controle. Chorei convulsivamente, antes de poder me controlar e tentar cumprir meu ofício de jornalista, objetivo por dever de ofício. A partir de então, o homem das águas passou a predominar sobre o profissional da escrita. A indignação diante da destruição cresceu mais do que a constatação da realidade.
Pensei que não teria mais impacto igual em matéria de água. Mas em 2005 fiquei ainda mais chocado quando vi rios, paranás e igarapés secos como nunca imaginei que um dia eles pudessem ficar. O nosso referencial mental esteve sempre voltado para a abundância das águas – estrondosas, destruidoras e ao mesmo tempo fecundadoras. Era da sua subida que a nossa vida dependia. Agora tínhamos que conviver com a sua ausência. A paisagem deixava de ser amazônica. Sugeria uma África em ameaça, o prenúncio de savanas, a cena seguinte à da passagem do homem, deus ex-machina.
Se é efeito da presença cada vez mais agressiva do homem ou de algum novo ciclo da própria natureza, não interessa inquirir neste artigo, o mais pessoal que já escrevi nesta seção. Escrevo-o depois de alguns dias de uma viagem à terra natal. Um vôo quase panorâmico sobre Santarém me deu a convicção de nunca ter visto uma seca do Tapajós como a deste ano. Nem a de 2005.
É impressão forte de quem já viu muitas vezes o rio subir e descer. Não só o Tapajós, mas também o Amazonas. O nível que ele atingiu no encontro com o Negro, defronte de Manaus, é o mais baixo desde que as medições começaram a ser feitas naquele ponto, em 1902.
Isto é fato, mesmo se sujeito a algum ajuste. Não há muitos a fazer nem eles são tão amplos, como se esperaria do uso de tantas ferramentas científicas e tecnológicas disponíveis atualmente, sobretudo os satélites. Mas é inegável: as secas se tornam mais rigorosas e frequentes. Vão se constituindo em acontecimento de presença tão marcante como eram as cheias.
O encolhimento das águas do Tapajós deixou à mostra suas longas e belas praias, como talvez não existam iguais em nenhum outro rio do Brasil (e do mundo?). Mas também mostrou as marcas da agressão humana, preocupantes mesmo em Alter-do-Chão, que foi considerada por um jornal inglês a melhor praia do mundo. É enorme e preocupante o volume de lixo, que as águas antes escondiam. Alguns começam a temer pela integridade futura de Alter-do-Chão. Sua fama talvez não seja suficiente para garantir sua perenidade. O mundo das águas está mudando. Provavelmente não para melhor.
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* Lúcio Flávio Pinto é paraense de Santarém; tem 61 anos e é jornalista há 44. Passou por algumas das principais publicações brasileiras, e hoje é editor do Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que circula em Belém desde 1987. Já recebeu quatro prêmios Esso e dois Fenaj, além do International Press Freedom Award. Tem 15 livros publicados, a maioria sobre a Amazônia. Escreve a coluna Cartas da Amazônia quinzenalmente, às quartas-feiras.
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* Lúcio Flávio Pinto é paraense de Santarém; tem 61 anos e é jornalista há 44. Passou por algumas das principais publicações brasileiras, e hoje é editor do Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que circula em Belém desde 1987. Já recebeu quatro prêmios Esso e dois Fenaj, além do International Press Freedom Award. Tem 15 livros publicados, a maioria sobre a Amazônia. Escreve a coluna Cartas da Amazônia quinzenalmente, às quartas-feiras.
Fonte: Yahoo! Notícias | Opinião | Meio Ambiente, 01/12/2010
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