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sábado, agosto 13, 2011

o indivíduo “mercado” também vai ganhando ares de divindade

Às suas ordens, dotô Mercado!

O mercado “pensa”, o mercado “avalia”, o mercado “propõe”, o mercado “desconfia”, o mercado “sugere”, o mercado “reage”. E aí sim, de vez em quando, o tom de voz sobe e o mercado “exige”!! E, aos poucos, o que era antes um sujeito, o indivíduo “mercado” também vai ganhando ares de divindade.
Uma das inúmeras lições que a atual crise econômica tem a nos oferecer é a possibilidade de compreender um pouco melhor os mecanismos de funcionamento da economia capitalista em sua fase de tão ampla e profunda internacionalização financeira. Depois de baixada a poeira e dado o devido distanciamento temporal, imagino a quantidade de teses que serão desenvolvidas para tentar entender e explicar aquilo que estamos vivendo a quente pelos quatro cantos do planeta.
As alternativas de enfoque são muitas. A relação conflituosa entre os interesses do capital produtivo e os do capital financeiro stricto sensu. A autonomia – na verdade, uma quase independência – do circuito monetário em relação ao chamado lado “real” da economia. A contradição entre o discurso liberal ortodoxo patrocinado pelos dirigentes dos países mais ricos até anteontem e a prática atual de medidas protecionistas de seus próprios interesses nacionais. A postura inequívoca e amplamente expandida de defesa das vontades das grandes instituições financeiras em primeiro lugar, sempre às custas de cortes nos gastos orçamentários na área social voltados à maioria da população de seus países. A dita solidez das estruturas do mercado financeiro, agora tão confiável quanto a de um castelo de cartas. A perda completa de credibilidade das instituições financeiras, a exemplo das chamadas agência de rating, que passam a escancarar a sua relação incestuosa com setores econômicos.
O fim do mito da chamada “independência” dos Bancos Centrais, cujas políticas monetárias estariam sendo implementadas de forma neutra e isenta, uma vez que baseadas em critérios técnicos e científicos (sic...) do conhecimento econômico acumulado. A falência das correntes que se apegavam às teorias chamadas da “racionalidade dos agentes” para buscar assegurar que não haveria o que temer com o funcionamento das livres forças de mercado, pois o equilíbrio entre oferta e demanda sempre apontaria a solução mais racional possível. E por aí vai. A lista é quase infindável.
Mas um elemento, em especial, chama a atenção em meio a essa enormidade de aspectos. E trata-se de algo importante, pois diz respeito à tentativa de legitimação de toda e qualquer ação dos poderes públicos na busca da saída para a crise econômica. Com isso procura-se fugir da conseqüência mais próxima em caso de fracasso: colocar em risco a sua própria legitimidade política. Ainda que nos momentos de maior tensão seja perceptível uma contradição entre os desejos dos representantes do capital financeiro e as possibilidades oferecidas pelos agentes do governo, no final quase tudo acaba se resolvendo no conluio entre o público e o privado. Nos bastidores do poder, a ação do Estado é ditada, via de regra, pelos interesses do capital.
Mas nas conjunturas de crise profunda, como a atual, passa a operar também a chamada opinião pública. Os temas de economia e de finanças, antes restrito às páginas dos jornais especializados, ganham as manchetes de capa e se convertem em preocupação de amplos setores da sociedade. A população se assusta, exige mais explicações, quer entender melhor! Porém, não se consegue tornar tão claros os mecanismos de funcionamento da dinâmica econômica em tão pouco tempo e em tão poucas linhas. E nesse momento ganham importância os interlocutores chamados a explicar: os economistas dos grandes bancos, os analistas das instituições financeiras, os responsáveis pelas empresas de consultoria, enfim os chamados “especialistas”. Cabe a eles a tarefa de convencimento do grande público de que a crise é causada por este ou aquele fator, ou então de que as medidas anunciadas há pouco por um determinado Ministro da Economia são ou não adequadas para resolver os problemas a que se propõem.
E aqui entra em campo um elemento essencial na dinâmica do discurso. Uma entidade que passa a ser reverenciada em ampla escala, coisa que era antes reduzida a uma platéia restrita. Trata-se do famoso “mercado” – muito prazer!. Um dos grandes enigmas da história da humanidade, tanto estudado e ainda tão pouco desvendado em seus aspectos essenciais, passa a ser tratado como um ser humanizado, um quase indivíduo. Isso porque para justificar a necessidade das decisões duras e difíceis a serem tomadas - sempre às custas de muitos e para favorecer uns bem poucos – recorre-se às opiniões de “alguém” que conheça, que assegure que não há realmente outra solução. Tem-se a impressão de que o mercado vira gente, um dos nossos!
As matérias dos grandes jornais, as páginas das revistas de maior circulação, os sítios da internet, os programas na televisão e no rádio, enfim, por todos os meios de comunicação passamos a conhecer aquilo que nos é vendido como sendo a opinião dessa entidade, dessa quase pessoa. As frases e os estilos podem variar, mas no fundo, lá no fundo, tudo é sempre mais do mesmo. Recorrer a um mecanismo que beira a abstração para justificar as medidas mais do que concretas. Fazer um chamamento a uma entidade externa, com ares de messianismo e divindade, para convencer de que as proposições - expostas numa linguagem e numa lógica incompreensíveis para a maioria - são realmente necessárias. Sim, sim, é preciso também ter fé! Pois em caso contrário, aquilo que nos espera é ainda pior do que o péssimo do vivido agora. Será o caos!
É o que tem acontecido na atual crise da dívida norte-americana ou na seqüência dos diversos capítulos da crise dos países da União Européia. O mercado “pensa”, o mercado “avalia”, o mercado “propõe”, o mercado “desconfia”, o mercado “sugere”, o mercado “reage”. E aí sim, de vez em quando, o tom de voz sobe e o mercado “exige”!! E depois o mercado “ameaça”. O mercado “cai”, o mercado “sobe”, o mercado “se recompõe”. O mercado “se sente inseguro”, o mercado “fica satisfeito”, o mercado “comemora”. O mercado “não aceita” tal medida, o mercado “se rebela” contra tal decisão.
E assim, à força de repetir à exaustão essa fórmula aparentemente tão simples, o que se busca, na verdade, é fazer um movimento de aproximação. Tornar a convivência com um ser que conhece de forma tão profunda a dinâmica da economia um ato quase amical e familiar para cada um de nós. Mas o “mercado” - sujeito de tantos verbos de ação e de percepção - não tem nome! Ele não pode ser achado, pois o mercado não tem endereço. Ele não pode ser entrevistado, pois o mercado nunca comparece fisicamente nos compromissos. Ele tampouco pode ser fotografado, pois o mercado não tem rosto. O que há, de fato, são uns poucos indivíduos que fazem a transmissão de suas idéias, de seus pensamentos, de seus sentimentos. São verdadeiros profetas, que têm o poder de fazer a interlocução entre o “mercado” e o povo. Pois, não obstante a tentativa de torná-la íntima de todos nós, essa entidade não se revela para qualquer um. 
Ele escolhe uns poucos iluminados para representá-lo aqui entre nós. Como se, estes sim, tivessem a procuração sagrada para falar em seu nome e representar aqui seus interesses. E aos poucos o que era antes um sujeito, o indivíduo “mercado” também vai ganhando ares de divindade. Tudo se passa como ele se manifestasse exclusivamente por meio de seus oráculos, os únicos capazes de captar e interpretar o desejo do deus mercado. Pois ele pensa, fala, acha, opina, mas não se apresenta para um aperto de mão, ou mesmo para uma prosinha que seja, para confirmar o que andam falando e fazendo em seu nome aqui pelos nossos lados.
Mas, apesar de toda evidente fragilidade da cena construída, não há como contestá-la. O mercado é legitimado por quem tem poder de legitimar. O discurso dos que não acreditam e dos que desconfiam não chega à maioria. Sim, pois aqui tampouco pode haver espaço para a dúvida. Nenhuma chance para o ato irresponsável que seria dar o espaço para o contraditório. A única certeza é de que o mercado sempre tem razão. E ponto final. Assim, todos passam horas na angústia e na agonia para saber como o mercado “reagirá” na abertura das bolsas de valores na manhã seguinte ou para tentar antecipar como o mercado “avaliará” hipotéticas medidas anunciadas para as transações de câmbio na noite da véspera.
O resultado de toda essa construção simbólica pode ser sintetizado na tentativa do convencimento político e ideológico dos caminhos escolhidos para a solução da crise. O mercado “alertou”, o mercado “ponderou”, o mercado “pressionou”, o mercado “exigiu”. E, finalmente, o mercado “conseguiu”. Por todo e qualquer lado que se procure, tentam nos convencer que não havia realmente outra forma possível de evitar o pior dos mundos. Como somos todos mesmo ignorantes em matéria de funcionamento dessa coisa tão complexa como a economia, somos chamados a delegar também as formas de solução para a crise. E, como sempre acontece em nossa tradição, estamos às suas ordens, Dotô Mercado...
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Debate Aberto, 11/08/2011

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

o PT hoje. Um depoimento com conhecimento de causa

Éramos jovens e tínhamos cabelo

por Selvino Heck*
“Nada como iniciar o ano e descobrir que um dia cada um de nós foi jovem e tinha cabelo.” Assim comecei minha coluna semanal na Folha do Mate, jornal da minha terra, Venâncio Aires, Rio Grande do Sul, onde mantenho coluna semanal. No ‘Relembrando’, o jornal publicara notícia de janeiro de 1986, há 25 anos, quando o ex-governador e ministro Olívio Dutra, o hoje deputado estadual Raul Pont e eu visitávamos o município, num ato de filiação partidária. 
E arrematei: “No meu caso, a publicação histórica serviu para duas coisas pelo menos. Mostrar aos menos avisados, ou aos que não me conheciam então, que, sim, eu tinha cabelos (e barba comprida) e, sim, não tinha barriga. Fez-me lembrar também que fui vice-presidente estadual do PT junto com figuras ilustres como Olívio Dutra e Raul Pont. E que, de alguma maneira, os fatos históricos relatados e a trajetória de suas figuras maiores explicam o sucesso posterior do PT em Venâncio Aires e região, no Rio Grande do Sul e no Brasil.”
10 de fevereiro de 2011. Estou na Secretaria Geral da Presidência da República, depois de ter ficado oito anos na Assessoria do Gabinete do Presidente Lula. Olho ao redor e vejo Dilma Roussef, do PT, primeira mulher presidenta da República, Tarso Genro, governador do Estado do Rio Grande do Sul, vice-presidente estadual do PT gaúcho quando eu fui seu presidente, Marco Maia presidente da Câmara Federal, que conheci com 18 anos, metalúrgico e participante de grupo de jovens em Canoas, RS, Adão Villaverde, antigo companheiro de jornada, presidente da Assembléia do Rio Grande do Sul. 
Em 1986, o PT/RS elegeu a primeira bancada de 4 deputados estaduais, da qual eu fazia parte. Hoje tem 14 deputados estaduais. Elegeu 2 deputados federais, hoje tem 7, mais um senador. Elegeu 16 deputados federais no Brasil inteiro, hoje tem 88, nenhum senador, hoje tem 14. Elegeu os primeiros quatro prefeitos gaúchos em 1988. Hoje, só no Rio Grande tem cerca de 70 prefeitos, outros 70 vice-prefeitos em coligações e está presente em mais outros 70 governos municipais. E governa Venâncio Aires, com o PDT e outros aliados.
10 de fevereiro de 1980. Um grupo de abnegados militantes e lideranças sociais da Lomba do Pinheiro, conjunto de vilas entre Porto Alegre e Viamão, funda o núcleo do PT da Lomba. Concorre em 1982 com dois pedreiros a prefeito e vice em Viamão. Hoje governa o município de Viamão há 4 mandatos. 31 anos depois, o PT é governo em todos os níveis, é o maior partido brasileiro, o partido de esquerda mais importante do mundo.
Escrevo na Folha do Mate: “A vida passa, a história acontece. Se alguém em janeiro de 1986 (mais ainda em fevereiro de 1980) perguntasse a qualquer um dos participantes daquele ato em Venâncio Aires que o Partido dos Trabalhadores teria a trajetória que hoje, olhando para trás, ajudamos a construir, nenhum de nós imaginaria ou acreditaria, nem no melhor dos seus sonhos. É preciso ter ideais, perseguir sonhos e manter a coerência básica. Aí está a força do PT, de sua militância e o acerto da maioria dos seus governos.”
Mas será isso mesmo que aconteceu nestes 31 anos de história e luta? É possível dizer que o PT manteve a coerência básica, os ideais e os sonhos? Não é fácil construir um partido político no Brasil, um país onde a democracia ainda está em consolidação, onde partidos políticos pela primeira vez ultrapassam os 30 anos na legalidade, onde o povo sofrido começa a ter vez e voz no terceiro milênio e no século XXI, à base de muita luta, mobilização, ocupações, greves e protestos. 

Todos os que participamos dessa construção certamente podemos afirmar com orgulho algumas coisas (e outras nem tanto). O PT ajudou a construir a democracia, nas Diretas-Já, na Constituinte, na conquista e ocupação de espaços institucionais. O PT ajudou a construir os movimentos sociais, com todo seu enraizamento na sociedade e construção de direitos para todos e todas. Nos governos, o PT chamou a atenção para a desigualdade social e econômica e colocou como prioridade os direitos dos trabalhadores e dos mais pobres, contribuiu na democratização do Estado e da sociedade com práticas como o Orçamento Participativo, a participação social, o diálogo e a parceria com a sociedade nas políticas públicas, apostou no desenvolvimento de um mercado interno de massas, afirmou a soberania nacional.
Mas se no seu início, anos oitenta, como dizia o saudoso deputado Adão Pretto, tinha um pé na luta social, outro pé na institucionalidade, com o passar dos anos o segundo pé foi ficando muitas vezes mais forte, às vezes até sufocando o pé da luta social e da construção coletiva. Nem sempre a ética, um dos princípios básicos de sua fundação, permaneceu como referência no trato com a coisa pública. Tampouco os sonhos de mudança e de transformação radical continuam todos vivos e presentes no dia a dia da ação política. Muitas vezes o pragmatismo tomou conta e sufocou a ousadia libertária e a construção democrática e coletiva. 
O mundo mudou, é certo, nestes 31 anos e qualquer partido político precisa saber ler a realidade. Chegar ao poder, ou pelo menos ao governo, leva a novos compromissos programáticos e novas formas de prática política. No essencial, contudo e apesar de tudo, eu que sou um de seus fundadores e nele permaneço, não me arrependo de ter contribuído na construção do Partido dos Trabalhadores, com milhares ou milhões de lideranças sociais, lutadores da boa causa, companheiros de mística, sonhos e utopia. O que, em termos de Brasil, não deixa de ser uma referência e algum sinal dos tempos. A melhor idade se aproxima, os cabelos são ralos, mas o desejo e a necessidade de mudança permanecem. 
(*) Assessor Especial da Secretaria Geral da Presidência da República
Fonte: Carta Maior | Debate Aberto, 10/02/2011

terça-feira, dezembro 07, 2010

“A Prosperidade do Vício”

A riqueza material espelhada na perda dos sentimentos morais[1]
por Olga de Mello | Para o Valor, do Rio
Publicada em 1801, a novela "Juliette ou as Prosperidades do Vício", de Donatien Alphonse François, o Marquês de Sade, conta a história de uma jovem que despreza os valores morais vigentes e passa a viver para satisfazer seus próprios desejos, sem qualquer consideração pelos que a cercam. Por "Juliette" e outro livro, "Justine e os Infortúnios da Virtude", Sade foi encarcerado durante seus últimos 13 anos de vida em um hospício. A personagem Juliette, no entanto, não sofreu as mesmas sanções que o autor, pois, filha de um banqueiro, obteve a complacência da Justiça. A metáfora para a ganância de uma sociedade que adapta seus padrões éticos de acordo com os ganhos financeiros está em "A Prosperidade do Vício - Uma Viagem (Inquieta) pela Economia", do economista francês Daniel Cohen.
"O título de Sade, para os economistas, remete a Malthus, para quem a prosperidade é alcançada através do controle populacional. Guerras, epidemias e outros males seriam, então, benéficos para a sociedade", diz Cohen, que traça a história da economia ocidental, enquanto reflete sobre a relação do dinheiro com a satisfação.
"Depois que se ultrapassa um certo patamar, a riqueza não altera os níveis de frustração. A pressão social faz as pessoas sempre desejarem ter mais dinheiro que os vizinhos", afirmou Cohen, em entrevista ao Valor.
O dinheiro que compra a conivência com a transgressão também modificou conceitos morais, mas nem sempre visando apenas o bem-estar de pequenos grupos, observa Cohen.
"No século XVIII, na Europa, houve uma modificação do status moral da ganância, que passou a não ser mais considerada um mal, um vício, já que traria prosperidade e paz", diz o economista. Entretanto, a história mostra que paz e prosperidade nem sempre caminham juntas, lembra Cohen - tanto que justamente durante uma época de "prosperidade partilhada" eclodiu a Primeira Guerra Mundial. Se a Europa hoje se apresenta como o continente da paz e da prosperidade, diz Cohen, "é ao preço de uma formidável amnésia de seu passado recente". Para o economista, o maior risco no século XXI é a repetição, em nível planetário, da história do Ocidente, que, em quatro séculos de proeminência europeia sobre outros povos, terminou na barbárie da Segunda Guerra Mundial.
Vice-presidente da École d'Économie de Paris e professor da École Normale Supérieure, Cohen alterna observações históricas e esclarecimentos de economia em linguagem acessível a leigos. Um exemplo está nas páginas em que ilustra o perigo do consumismo desenfreado, que considera uma droga com milhões de dependentes e poder suficiente para "destruir nossa civilização". Cohen sugere aos leitores que imaginem as consequências para a Terra se um bilhão de chineses que utilizam bicicletas decidissem trocá-las por automóveis.
"O planeta não consegue absorver tantos consumidores sem uma radical reorientação das normas em que se baseiam nossos padrões de crescimento. Hoje, na nova era do vício, para obter relevância social é preciso crescer financeiramente, ou seja, enriquecer ou perecer". O economista responsabiliza a avidez por consumo das famílias americanas por seu "formidável endividamento" e pela derrocada do sistema hipotecário, que resultou na crise financeira global.
O pessimismo de Cohen quanto ao futuro de um planeta exaurido pela ocupação predatória dos povos é compensado por sua confiança nos propósitos conservacionistas das novas gerações, ainda que faça ressalvas a formas de uso da internet, onde "florescem tanto os laços entre amantes de música quanto redes de pedófilos". Cohen ressalta que nada tem contra a rede, cuja criação considera tão importante quanto a invenção da máquina a vapor e da eletricidade, há 200 anos. "Os novos recursos sociais que a internet proporciona são, no mínimo, ambíguos. Os jovens estão ansiosos para usufruir de seus 15 minutos de fama, enquanto prostituição e dinheiro se apresentam como valores em qualquer canto da rede. É o mesmo velho mundo, com uma nova roupagem. O que anima é que esses mesmos jovens acreditam na necessidade da proteção ambiental. Isso faz parte da cultura deles, exatamente como acontece com a internet."
Embora se mostre descrente, Cohen tem esperanças de que haja cooperação entre os povos para reduzir as agressões ao ambiente. "Em tempos de crise, alinhar-se é uma regra difícil, pois significa fazer concessões para o bem público. A cooperação é a principal questão problemática no mundo atual. Depois da quebra do Lehman Brothers, a reunião de Copenhague do G-20 mostrou que há limites para a cooperação entre os países. O relacionamento entre a China e os Estados Unidos está mais difícil do que há dois anos. Da mesma forma, há mais obstáculos no relacionamento entre a Alemanha e outros países europeus, como Grécia, Irlanda ou Portugal", diz Cohen.
Uma das raras citações do Brasil no livro é como exemplo do papel de controlador populacional exercido pela televisão. Daniel Cohen afirma que o Brasil, por ser grande consumidor de telenovelas, chegou rapidamente a menores patamares de crescimento demográfico, pelo fato de novos conceitos e comportamentos serem assim disseminados.
"Acredito realmente nas projeções sobre o crescimento econômico do Brasil, mas tenho muitas reservas quanto à ideia de que a China entrará pacificamente nesse grupo. A Índia ainda tem muito a fazer para alcançar a segunda fase da democracia, ou seja, tornar-se uma democracia social, que se preocupa com os direitos de seu povo. O núcleo de meu livro é lembrar dos precedentes da Alemanha, que se tornou uma superpotência industrial na Europa do século XX. Isso levou à paz e à democracia, mas por quanto tempo foi assim?".
Fonte: Valor on line, 07/12/2010

[1] Artigo sobre o livro “A Prosperidade do Vício” de Daniel Cohen. (COHEN, Daniel. A prosperidade do vício. Tradução de Wandyr Hagge. Zahar, 2010, 200 págs.)

terça-feira, novembro 30, 2010

quem nunca fez concessões?

A COERÊNCIA É UM VALOR MORAL?

por Contardo Calligaris
No fim de semana retrasado, estive em Olinda, na Fliporto (Feira Literária Internacional de Pernambuco). No sábado, Benjamin Moser, que escreveu uma linda biografia de Clarice Lispector ("Clarice", Cosac Naify), lembrou que, na famosa entrevista concedida à TV Cultura em 1977, a escritora afirmou que não fizera concessões, não que soubesse. 
Moser acrescentou imediatamente que ele não poderia dizer o mesmo. E eis que o público se manifestou com um aplauso caloroso.
Talvez as palmas de admiração fossem pela suposta coerência adamantina de Clarice, que nunca teria feito concessões na vida. Talvez elas se destinassem a Benjamin Moser pela admissão sincera de que ele (como todos nós) não poderia dizer o mesmo que disse Clarice.
Tanto faz. Nos dois casos, o pressuposto é o mesmo. Que as palmas fossem pela força de caráter de Clarice ou pela honestidade de Moser ao reconhecer sua própria fraqueza, de qualquer forma, não fazer concessões parecia ser, para os presentes, uma marca de excelência moral.
A pergunta surgiu em mim na hora: será que é mesmo? Posso respeitar a tenacidade corajosa de quem se mantém fiel a suas convicções, mas no que ela difere da teima de quem se esconde atrás dessa fidelidade porque não sabe negociar com quem pensa diferente e com o emaranhado das circunstâncias que mudam? Aplicar princípios e nunca se afastar deles é uma prova de coragem? Ou é a covardice de quem evita se sujar com as nuances da vida concreta?
Como muitos outros, se não como todo mundo, cresci pensando que não fazer concessões é uma coisa boa.
Fui criado na ideia de que há valores não negociáveis e mais importantes do que a própria vida (dos outros e da gente). Talvez por isso me impressionasse a intransigência dos mártires cristãos (embora eu tivesse uma certa simpatia envergonhada por Pedro renegando Jesus para evitar ser reconhecido e preso).
Durante anos admirei os bolcheviques por eles serem homens de ferro (a expressão é de Maiakóvski, nada a ver com "Iron Man") e desprezei Karl Kautsky, que Lênin estigmatizou para sempre como "o renegado Kautsky", por ele ter mudado de opinião sobre a Primeira Guerra, sobre a revolução proletária, sobre o bolchevismo etc.
Vingança da história: Lênin se tornou quase ilegível, mas a obra principal de Kautsky, que acaba de ser traduzida, "A Origem do Cristianismo" (Civilização Brasileira), continua crucial.
Mas voltemos ao assunto. Hoje, estou mais para Kautsky do que para bolchevique; até porque descobri, desde então, que Mussolini se vangloriava gritando: "Eu me quebro, mas não me dobro". Ele se quebrou mesmo, enquanto eu me dobro e posso renegar ideias minhas que pareçam ser, de repente, inadequadas ao momento (dos outros, do mundo e meu).
Olhando para trás, descubro (com certo orgulho) que, ao longo da vida, fiz inúmeras concessões, inclusive na hora de escolhas fundamentais. Poucas vezes lamentei não ter sido coerente. Mas muitas vezes lamento não ter sabido fazer as concessões necessárias, por exemplo, na hora de ajustar meu desejo ao desejo de pessoas que amava e de quem, portanto, tive que me afastar.
Alguém dirá: espere aí, então a fidelidade a princípios e valores não é uma condição da moralidade?
Estou lendo (vorazmente) "O Ponto de Vista do Outro", de Jurandir Freire Costa (Garamond). O livro é, no mínimo, uma demonstração de que a forma moderna da moral não é o princípio, mas o dilema. E, no dilema, o que importa não é a fidelidade intransigente a valores estabelecidos; no dilema, o que importa é, ao contrário, nossa capacidade de transigir com as situações concretas e com os outros concretos.
A coerência é uma virtude só para quem se orienta por princípios. Para o indivíduo moral, que se orienta (e desorienta) por dilemas, a coerência não é uma virtude, ao contrário, é uma fuga (um tanto covarde) da complexidade concreta. Oscar Wilde, que é um grande fustigador de nossas falsas certezas morais, disse que "a coerência é o último refúgio de quem tem pouca fantasia" e, eu acrescentaria, de quem tem pouca coragem.
Resta absolver Clarice. Aquela frase da entrevista era, provavelmente, apenas uma reverência retórica a um lugar-comum de nosso moralismo trivial.

Fonte: Blog Contardo Calligaris, 24/11/2010

segunda-feira, novembro 08, 2010

humanista à moda antiga

Combatendo os bárbaros
Tzvetan Todorov é um humanista à moda antiga, interessado no amplo espectro do conhecimento humano entendido como um caminho para a integridade e o saber. Linguista, filósofo, historiador, crítico literário, interessado tanto na semiótica como nas fraturas do século XX, este homem nascido na Bulgária e emigrado a Paris aos 24 anos, autor de livros fundamentais em praticamente todos os terrenos pelos quais incursionou, é um impenitente devoto da clareza do pensamento como arma contra a intolerância, a incompreensão e o totalitarismo em todas as suas formas. De passagem por Buenos Aires, convidado pela Fundação Osde para fazer algumas palestras, Todorov concedeu entrevista a Martín Granovsky, do Página/12. Na conversa, entre outras coisas, aponta as raízes fundamentalistas do ultraliberalismo e do populismo conservador que vem crescendo na Europa e nos EUA.  Martín Granovsky - Página/12
Ele é alto, grisalho, tem olhos curiosos e um aperto de mão forte. Seu francês é perfeito. Tzvetan Todorov nasceu na Bulgária em 1939, mas vive em Paris desde 1963. Foi para a França para ficar um ano e por lá ficou. Estudou com Roland Barthes. Escreveu, entre outros livros, Teoria dos Gêneros Literários, Os Aventureiros do Absoluto, A Conquista da América e A Experiência Totalitária. Veio fazer conferências na Argentina e aceitou conversar com Radar (suplemento do jornal Página/12). A entrevista ocorreu na manhã de quarta-feira, quando já se sabia que os extremistas do Tea Party tinham sido o coração da vitória republicana nos Estados Unidos.
Você escreveu que o ultraliberalismo é uma forma fundamentalista.
Sim, eu defendo isso.
Eu perguntava sobre a força do movimento Tea Party nos Estados Unidos.
Bom, na Europa conhecemos o que é o populismo.
Na América Latina também, mas suspeito que o termo é usado para nomear coisas distintas. Aqui a palavra é utilizada para sintetizar – ou criticar, dependendo do caso – experiências de centroesquerda com partidos fracos e líderes fortes.
Eu sei. Por isso me refiro ao caso europeu, que é diferente. Na Europa, é cada vez mais decisivo o voto populista de extrema direita. Um voto que cresce porque tem êxito em focalizar o inimigo de cada povo no estrangeiro diferente.
Agora o grande tema na França é a expulsão dos ciganos para a Romênia. Você se refere a isso?
É um tema grave, mas não é o ponto central na estigmatização. Em geral, a focalização sobre o estrangeiro que mencionava se refere ao diferente que, com frequência, aliás, professa a fé islâmica. E isso influi em todos os governos.
Mas a extrema direita populista a que você se refere não chegou ao governo.
Sim, mas a direita de sempre, a direita a que estamos habituados e conhecemos bem, não pode governar se não se apóia na extrema direita. O poder necessita desse apoio.
Na Suécia, os conservadores ganharam, mas, pela primeira vez, a extrema direita teve 10% dos votos e ganhou representação parlamentar.
Na Dinamarca e na Holanda a situação é ainda pior. Nesses dois países a questão do apoio da extrema direita à direita tradicional não é somente social, o que por si já é um problema grave, mas também de conformação de maiorias parlamentares. Os conservadores da Dinamarca e da Holanda precisam do voto da extrema direita no Parlamento. Por isso, os governos de direita aceitam muitas posições da extrema direita.
E na Itália?
Ocorre algo parecido com a Liga do Norte, que também tem uma posição ativa contra o estrangeiro diferente e pior ainda se ele tiver alguma relação com o Islã. A Liga do Norte está no governo associada com Silvio Berlusconi.
Por que você assinala uma diferença em relação à situação na França?
Porque tem outros matizes. Nicolas Sarcozy adota frequentemente temas e obsessões da extrema direita. Mas não exclusivamente dela. É um político pragmático preocupado sobretudo em conservar-se no poder. Assim, como coloca hoje a questão dos ciganos, no início de seu mandato adotou inclusive alguns temas da esquerda.
O movimento Tea Party nos Estados Unidos também se inscreve nessas correntes que você identifica na Europa?
Nos Estados Unidos, sobretudo em meio à crise, há um movimento contra os imigrantes. Mas esse não é o tema fundamental do Tea Party. Como a economia vai muito mal, a crítica se dirige ao governo de Barack Obama e tem raízes próprias. Nos Estados Unidos há uma espécie de filosofia de vida ultraindividualista. Essa filosofia diz que o ser humano é responsável pelo destino de sua vida. Mas essa filosofia de vida agrega a idéia segundo a qual o êxito econômico é uma medida suficiente para medir uma vida. Uma posição, evidentemente, fantasiosa.
Por que fantasiosa? Todos seus livros falam das responsabilidades do ser humano e do indivíduo.
Sim, mas não em estado de solidão. Eu estou profundamente convencido de que os seres humanos têm necessidade dos outros. Defender a liberdade ou o direito do indivíduo é um valor positivo. É preciso proteger os indivíduos da violência dos outros indivíduos e do Estado. Mas o indivíduo depende dos demais. A dimensão social do ser humano não pode – não deve – ser eliminada. A economia não pode ser um objetivo último, mas sim um meio.
Você critica a centralidade da noção de êxito econômico na concepção que definiu como “ultraindividualista”. Se o êxito fosse um valor a levar em conta, coisa que já seria discutível, qual seria sua concepção de êxito?
Eu tampouco me guio pelo êxito como objetivo da vida. Mas se, como ser humano, ao final de minha vida me perguntarem o que é o êxito, responderia que é ter vivido uma vida na qual vivi, amei, respeitei e fui amado pelos outros que amei e respeitei. Desculpe se uso tanto a palavra “vida” ou o verbo “viver”, mas prefiro não buscar sinônimos ou outras formas de dizê-lo. O êxito de uma vida inteira, de uma vida completa, é o êxito nas relações humanas. Uma vida sem amor terá sido desastrosa.
Li que você critica também as vidas baseadas somente no intelecto. No idioma argentino falaríamos de uma vida sem por o corpo.
Sim. E o mesmo se aplica a uma vida vivida tendo o êxito econômico como fim último. Ainda que seja redundante dizê-lo, seria uma vida que exclui a vida humana.
O Tea Party o impressiona?
Para além de fenômenos como os da Dinamarca e Holanda, e, de certo modo, da Itália, a tradição europeia é diferente. Na Europa, durante muitos anos todos os governos, de esquerda ou de direita, seguiram um modelo baseado no Estado de bem-estar social, o Welfare State. Esse modelo se fundamenta na solidariedade de toda a população, que se expressa, em última instância, em medidas adotadas a partir do Estado. Falo, por exemplo, da progressividade dos impostos. Quem ganha mais, paga mais. A redistribuição de renda é o princípio constitutivo do Estado. A tradição que aparece com o Tea Party alimenta-se, na origem, da conquista de um espaço vital. É um híbrido que combina a ideologia do xerife e o espaço do pregador.
O que o pregador agrega a essa ideologia?
A certeza de que, se eu sigo buscando meu espaço vital e o êxito, tendo um resultado econômico com fim último, tenho razão porque Deus me disse isso.
Estou predestinado como indivíduo.
Sim. Por isso há um caráter religioso de tipo fundamentalista muito importante. É importante destacar que nessa busca...
A busca parece uma batalha.
E é mesmo. E nessa batalha reaparecem inclusive temas de um passado recente. Obama é acusado até de instaurar o Gulag. Seria, para eles, um comunista.
Mas Obama não é sequer um radical, um homem de esquerda em termos norteamericanos.
Não, claro. É um político do mainstream, também no vocabulário norteamericano. Um político normal que está dentro do sistema político. Mas passa a ser um comunista, na crítica do Tea Party, porque parece querer regular a vida dos indivíduos. Leve em conta que, quando o Tea Party e os legisladores que recebem sua influência criticam a cobertura médica obrigatória votada por iniciativa de Obama este ano, acusam o presidente norteamericano de estar metendo-se em suas vidas. O raciocínio é assim: “Seu eu trabalhei e com meu esforço consegui um bom seguro e uma boa cobertura médica, que me permitirá uma boa aposentadoria privada, por que devo trabalhar para os que não trabalharam e, assim, não alcançaram o meu êxito?”. Falta a solidariedade elementar e isso me parece deplorável.
“Deplorável” é uma palavra forte.
Certamente. Essa forma de pensar procede, antropologicamente, de uma ignorância da necessidade do outro. E o paradoxal é que também tem escassas possibilidades de gerar as condições para o êxito econômico individual da classe média. Vou explicar melhor minha lógica de raciocínio para que não fique parecendo um simples slogan. A sociedade fica desequilibrada. Se fica desequilibrada, perde a força para combater a extensão do problema da droga ou do desemprego. Para solucionar temas dessa magnitude é necessário contar com toda a população. Não é possível fazê-lo apenas com uma parte dela. Como se vê, o Tea Party tem raízes em uma ideologia vigente em setores da sociedade norteamericana desde há muito tempo, mas seus efeitos concretos aparecem hoje. A leitura é que Obama e seu projeto se chocaram com o poder econômico.
E esse poder derrotou-o nestas eleições de metade de mandato.
As conclusões são impactantes. O homem mais poderoso do planeta, que é o presidente dos Estados Unidos, é impotente contra os interesses do grande capital. A mensagem é que as instituições não permitem sequer que um presidente legitimamente eleito adote uma política distinta, ainda que seja levemente distinta, daquela que eles defendem. A recente decisão da Corte Suprema que permite às empresas fazer contribuições à campanha eleitoral representa um freio aos políticos democráticos. Neste ambiente ultraliberal a democracia corre perigo.
Tanto assim?
Efetivamente. O poder se expressa por meio das eleições. Em 2008 se expressou votando em Obama. Mas na prática o povo não pode governar porque isso não é permitido pelos indivíduos mais poderosos. Se isso for verdade e se essa tendência se aprofundar, estaremos assistindo a uma mutação radical. Tão radical como a Revolução Francesa que, em 1879, passou de uma monarquia hereditária para uma assembleia eleita pelos cidadãos. Nós que respeitamos a integridade do indivíduo – e não falo agora, como você advertirá, do ultraindividualismo – devemos nos preocupar quando o domínio de alguns poucos políticos poderosos substitui a vontade dos indivíduos.
Como a substituem?
Usam, entre outras coisas, duas ferramentas. O lobby e o controle dos meios de comunicação. Um exemplo quase caricato ocorre é a Itália, onde Bersluconi pessoalmente é dono da maior cadeia de televisão privada e, como presidente do conselho de ministros, controla os demais sinais. Ao mesmo tempo promove um ultraliberalismo combinando o uso dos meios de comunicação mais poderosos com pressões sobre a Justiça. Por isso é essencial manter o pluralismo na imprensa. É preciso evitar que seja controlada por um pequeno grupo de indivíduos. De oligarcas, como se diz na Rússia. Na França, Sarkozy ocupou-se pessoalmente de que o aporte de capitais de que necessitava o jornal Le Monde não viesse de empresários que não eram simpáticos a ele. Nos Estados Unidos, muitas emissoras de rádio e canais de televisão como a Fox repetem dia e noite uma mensagem populista.
Populista?
Sim. Já sei o que vai me dizer. Sei que a palavra “populista” tem uma acepção diferente na Argentina. Refiro-me, por exemplo, às mensagens do líder da extrema-direita francesa Jean Marie Le Pen. Em que consiste seu populismo? No fato de que encontra fórmulas tão falsas como eficazes de chegar ao povo. Diz: “Na França, há três milhões de desempregados e três milhões de imigrantes. E eu vou lhes dizer como se resolve o problema: colocando pra fora os imigrantes”. Assim age o populismo ultraconservador. Se Obama aumenta impostos para os setores mais poderosos, dirão que o aumento de impostos afeta a classe média e repetirão isso até a exaustão. 
Mas não é só uma questão de propaganda, não? Ou, em todo caso, essa propaganda simplificadora se baseia no medo provocado pelo desemprego e a crise, ou pela falta de políticas mais incisivas, ao estilo de Franklin Delano Roosevelt em 1933.
E, além disso, a população não está bem informada e não costuma entrar em raciocínios teóricos complexos. A experiência cotidiana da França é que aumentam os preços e que, ao mesmo tempo, o chefe de governo fala bem. E um senhor Le Pen diz: “Os ciganos ficaram com o teu dinheiro”. Lembremos que, em 1933, Adolf Hitler foi eleito por sufrágio universal. O populismo, tal como descrevi, apela a um raciocínio simplificado, rápido, compreensível para todos. E digo isso não como anjo. Não vivemos em um mundo habitado por anjos. Tampouco por demônios, é claro. Eu me incluo nisso. Ou seja, gente que está informada e lê os jornais ou até os escreve. E incluo você também, se me permite.
Certamente. Qualquer explicação baseada na lógica anjo-demônio é de fanáticos. Professor, como jornalista e como leitor sempre me chamou atenção uma frase sua: que fazer-se entender, para um intelectual, é um tema ético. Acredito que a disse ironizando Jacques Lacan. Mas, para além de Lacan, por que disse “ético” e não “estético”? 
Porque a ética se funda na relação com os demais seres humanos. Implica um respeito. E então não se deve usar meios indignos. A sedução está bem e se justifica quando se busca despertar a simpatia de um indivíduo. É preciso mostrar-se eloquente, simpático, apelar a todos os fogos de artifício de que se disponha. Isso vale para um homem, para uma mulher, para qualquer um. Mas no espaço público considero que praticar a demagogia populista é um tipo de discurso obscuro com aparência de profundidade significa transgredir um contrato.
Que contrato?
O que se estabelece entre interlocutores, entre pessoas. Por isso é um contrato ético.
.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior |Internacional| 07/11/2010. Publicado originalmente no Página/12

quinta-feira, maio 20, 2010

por que não a China? (II)

O FUTURO DA HISTÓRIA HUMANA COMO UMA CIÊNCIA*
*resumo desse capítulo, do livro de Jared Diamond “Armas, Germes e Aço”, pp. 404-427.

(continuação)
Agora, compare esses acontecimentos na China com o que ocorreu quando as frotas de exploração começaram a sair da Europa politicamente fragmentada. Cristóvão Colombo, um italiano de nascimento, transferiu sua lealdade para o duque de Anjou, na França, depois para o rei de Portugal. Quando este recusou seu pedido de embarcações para explorar o oeste, Colombo voltou-se para o duque de Medina-Sedonia, que também recusou, depois para o conde de Medina-Celi, que fez o mesmo, e, finalmente, para o rei e a rainha de Espanha, que negaram seu primeiro pedido, mas acabaram cedendo a seu novo apelo. Se a Europa estivesse unificada sob qualquer um dos três primeiros governantes, sua colonização das Américas poderia ter sido natimorta.
De fato, justamente porque a Europa era fragmentada, Colombo teve êxito em sua quinta tentativa de persuadir um das centenas de príncipes europeus a patrociná-lo. Depois que a Espanha iniciou assim a colonização européia da América, outros Estados europeus viram a riqueza fluindo para a Espanha, e outros seis passaram a participar da colonização da América. A história se repetiu com o canhão da Europa, a iluminação elétrica, a imprensa, as armas de fogo pequenas e outras incontáveis inovações: cada uma, no início, era rejeitada ou combatida em algumas partes da Europa por razões idiossincráticas, mas depois que era adotada em uma área, acabava se difundindo pelo resto da Europa.
Essas consequências da desunião da Europa formam um acentuado contraste com as consequências da unidade da China. De vez em quando a corte chinesa decidia interromper outras atividades além da navegação ultramarina: ela abandonou o desenvolvimento de uma sofisticada máquina de fiar movida a água, retrocedeu à beira de uma revolução industrial no século XIV, destruiu ou praticamente aboliu os relógios mecânicos depois de ser líder mundial na fabricação de relógios e retirou-se da indústria de dispositivos mecânicos e da tecnologia em geral depois do fim do século XV. Esses efeitos potencialmente prejudiciais da unidade foram desencadeados novamente na China moderna, durante a loucura da Revolução Cultural nas décadas de 1960 e 1970, quando uma decisão de um ou de alguns líderes fechou todas as escolas no país inteiro durante cinco anos.
A freqüente unidade da China e a eterna desunião da Europa têm uma longa história. As regiões mais produtivas da China moderna uniram-se politicamente pela primeira vez em 221 a.C. e assim permaneceram a maior parte do tempo desde então. A China só teve um sistema de escrita desde os primórdios da alfabetização do mundo, uma única língua dominante por muito tempo e uma unidade cultural significativa durante dois mil anos. Por outro lado, a Europa nunca chegou nem perto de uma unificação política: ela ainda estava dividida em mil pequenos Estados independentes no século XIV, 500 em 1500, caiu para um mínimo de 25 Estados na década de 1980, e está agora com quase 40 no momento em que escrevo esta frase. A Europa ainda tem 45 línguas, cada uma com seu próprio alfabeto modificado, e uma diversidade cultural ainda maior. As divergências que continuam a frustrar até tentativas modestas de unificação européia pela Comunidade Econômica Européia (CEE) são sintomas do arraigado compromisso da Europa com a desunião.
Consequentemente, a verdadeira dificuldade para se compreender por que a China perdeu a primazia política e tecnológica para a Europa é entender a unidade crônica da China e a desunião crônica da Europa. A resposta é sugerida novamente pelos mapas. A Europa tem um litoral muito recortado, com cinco grandes penínsulas que são quase ilhas em seu isolamento, todas as quais desenvolveram línguas, grupos étnicos e governos independentes: Grécia, Itália, Ibéria, Dinamarca e Noruega/Suécia. O litoral da China é muito mais homogêneo, e só a península coreana próxima atingiu importância isolada. A Europa tem duas ilhas (a Inglaterra e a Irlanda) suficientemente grandes para afirmarem sua independência política e manter suas próprias línguas e etnicidades, e uma delas (a Inglaterra) bastante grande e fechada para se tornar uma importante potência independente. As duas ilhas maiores da China, Taiwan e Hainan, têm cada uma menos da metade da área da Irlanda; nenhuma das duas era independente e importante até Taiwan se destacar nas últimas décadas; e o isolamento geográfico do Japão o manteve, até recentemente, muito mais isolado politicamente do continente asiático do que a Inglaterra do continente europeu. A Europa é dividida em unidades lingüísticas, étnicas e políticas independentes por altas montanhas (Alpes, Pirineus, Cárpatos e as montanhas da fronteira norueguesa), ao passo que as montanhas da China a leste do planalto tibetano são barreiras muito menos assustadoras.  A área central da China é limitada de leste a oeste por dois extensos sistemas fluviais navegáveis em vales aluviais ricos (os rios Yang-Tsé e Amarelo), e é unida de norte a sul por conexões relativamente fáceis entre essas duas redes fluviais (finalmente ligadas por canais). Em consequência, a China foi dominada muito cedo por duas imensas áreas geográficas centrais de alta produtividade, apenas vagamente separadas uma da outra e, que acabaram fundidas em um único núcleo. Os dois maiores rios da Europa, o Reno e o Danúbio, são menores e ligam uma pequena parte da Europa. Ao contrário da China, a Europa tem muitos núcleos pequenos espalhados, nenhum suficientemente grande pra dominar os demais, e cada um é o centro de Estados cronicamente independentes.
Quando a China foi finalmente unificada, em 221 a.C., nenhum outro Estado independente teve oportunidade de surgir e persistir por muito tempo na China. Embora períodos de desunião tenham ocorrido várias vezes após esta data, eles sempre acabavam em reunificação. Mas a unificação da Europa resistiu aos esforços de conquistadores determinados com Carlos Magno, Napoleão e Hitler; nem mesmo o império romano em seu auge conseguiu controlar mais que metade da área da Europa.
Assim, a ligação geográfica e a existência de barreiras internas apenas modestas deram à China uma vantagem inicial. China setentrional, China meridional, o litoral e o interior contribuíram com culturas agrícolas, criações de gado, tecnologias e características culturais diferentes para a China unificada. Por exemplo, o cultivo do milhete, a tecnologia do bronze e a escrita surgiram na China setentrional, enquanto o plantio do arroz e a tecnologia do ferro fundido apareceram na China meridional. Em grande parte deste livro, enfatizei a difusão da tecnologia que ocorre na ausência de grandes barreiras. Mas a conectividade da China acabou se tornando uma desvantagem, porque uma decisão tomada por um déspota podia, e repentinamente conseguiu, deter a inovação. Já a balcanização geográfica da Europa resultou em muitos pequenos Estados independentes e rivais, e centros de inovação. Se um Estado não tratasse de descobrir uma determinada inovação, outro o faria, obrigando os Estados vizinhos a fazer o mesmo, do contrário seriam conquistados ou deixados para trás no aspecto econômico. As barreiras da Europa eram suficientes pra evitar a unificação política, mas insuficientes para deter a expansão de tecnologia e idéias. Nunca houve um déspota que pudesse fechar a torneira para toda a Europa, como aconteceu na China.
Essas comparações sugerem que a conexão geográfica provocou efeitos positivos e negativos na evolução tecnológica. (...). Naturalmente, outros fatores contribuíram para que a história tivesse rumos diversos em partes diferentes da Eurásia. (...) Fatores ambientais incluem também a localização geográfica intermediária do Crescente Fértil, controlando as rotas de comércio que uniam a China e a Índia à Europa, e a localização mais distante da China em relação a outras civilizações avançadas da Eurásia, fazendo a China praticamente uma ilha gigantesca dentro de um continente. O isolamento relativo da China é especialmente importante para sua adoção das tecnologias, e depois para a rejeição delas, que tanto lembram a rejeição na Tasmânia e em outras ilhas (Capítulos 13 e 15). Mas essa breve discussão pode, pelo menos, mostrar a importância dos fatores ambientais para os padrões da história de menor escala e de prazo mais curto, assim como para seu padrão mais geral.
As histórias do Crescente Fértil e da China também oferecem uma lição saudável para o mundo moderno: as circunstâncias mudam, e a primazia passada não é garantia de primazia futura. Alguém pode se perguntar se o raciocínio geográfico usado ao longo deste livro acabou se tornando totalmente irrelevante no mundo moderno, agora que as idéias se difundem imediatamente para todos os lugares pela Internet e as cargas são habitualmente despachadas de avião da noite para o dia entre os continentes. Pode parecer que as regras completamente novas se apliquem à competição entre os povos do mundo, e que, por isso novas potências estejam emergindo, com Taiwan, Coréia, Malásia e, especialmente o Japão.
Refletindo, nós vemos, entretanto, que as regras supostamente novas são apenas variações das antigas. Sim, o transistor, inventado na Bell Labs, no leste dos Estados Unidos, em 1947, saltou quase 12 mil quilômetros para iniciar a indústria eletrônica no Japão, mas não deu um salto menor para fundar novas indústrias no Zaire ou no Paraguai. As nações que surgem com novas potências ainda são aquelas que estavam incorporadas, milhares de anos atrás, aos velhos centros de domínio baseados na produção de alimentos, ou que foram repovoadas por povos desses centros. Ao contrário do Zaire ou do Paraguai, o Japão e outras novas potências conseguiram explorar o transistor rapidamente porque suas populações já tinham uma longa história de alfabetização, maquinaria de metal e governo centralizado. Os dois centros de produção de alimentos mais antigos do mundo, o Crescente Fértil e a China, ainda dominam o mundo moderno, ou por meio de seus Estados sucessores imediatos (a China moderna), ou por meio de Estados situados em regiões vizinhas influenciados por esses dois centros (Japão, Coréia, Malásia e Europa), ou por Estados repovoados ou governados por emigrantes deles (Estados Unidos, Austrália, Brasil). As perspectivas de domínio mundial dos africanos subsaarianos, aborígines australianos e ameríndios permaneceram obscuras. A mão do curso da história em 8000 a.C. recai pesadamente sobre nós.

quarta-feira, maio 19, 2010

por que não a China? (I)

O FUTURO DA HISTÓRIA HUMANA COMO UMA CIÊNCIA*
*resumo desse capítulo, do livro de Jared Diamond “Armas, Germes e Aço”, pp. 404-427.

Naturalmente, os continentes diferem em inúmeras características ambientais que afetam as trajetórias das sociedades humanas. Mas uma simples relação de todas as diferenças possíveis não constitui uma resposta à pergunta de Yali.[1] Apenas quatro conjuntos de diferenças me parecem ser os mais importantes.
O primeiro conjunto consiste nas diferenças continentais entre as espécies selvagens de plantas e animais disponíveis como material inicial para a domesticação. Isto porque a produção de alimentos era decisiva para acumular excedentes de alimentos que poderiam alimentar os especialistas não-produtores de alimentos, e para a formação de grandes populações que desfrutam de uma vantagem militar apenas pela quantidade, antes mesmo de elas terem desenvolvido qualquer vantagem tecnológica ou política. Por essas duas razões, todos os avanços de sociedades politicamente centralizadas, economicamente complexas, socialmente estratificadas, além do nível de pequenas tribos centralizadas emergentes, estavam baseados na produção de alimentos.
(...)
Em cada continente, a domesticação de animais e plantas concentrou-se em alguns locais especialmente favoráveis, que correspondem a uma pequena fração da área total do continente. Também, no caso das inovações tecnológicas e das instituições políticas, a maioria das sociedades adquire muito mais de outras sociedades do que as inventa. Assim, a difusão e a migração dentro de um continente contribuem de modo essencial para o desenvolvimento de suas sociedades, que, a longo prazo, tendem a compartilhar seus avanços (até onde os ambientes permitem) por causa dos processos exemplificados de modo simples pelas Guerras do Mosquete dos maoris na Nova Zelândia. Ou seja, as sociedades que no início não tem uma vantagem, ou a adquirem das sociedades que a têm ou (se não conseguirem adquiri-la) são substituídas por essas outras sociedades.
(...)
(...), a seguinte pergunta já deve ter ocorrido aos leitores: porque havia sociedades européias dentro da Eurásia, em vez das sociedades do Crescente Fértil, da China ou da Índia, aquelas que colonizaram a América e a Austrália, eram líderes em tecnologia e passaram a ter um predomínio político e econômico no mundo moderno? Um historiador que tivesse vivido em qualquer período entre 8500 a.C. e 1450, e que tivesse tentado prever as futuras trajetórias históricas, teria seguramente considerado o predomínio europeu como o resultado menos provável, pois a Europa era a mais atrasada dessas três regiões do Velho Mundo durante grande parte desses dez mil anos. De 8500 a.C. até a ascensão da Grécia, e em seguida a da Itália depois de 500 a.C., quase todas as principais inovações na Eurásia ocidental – a domesticação de animais, a domesticação de plantas, a escrita, a metalurgia, a roda, a formação do Estado etc. – surgiram no Crescente Fértil ou perto dele.
Até a proliferação dos moinhos movidos a água depois do ano 900, a Europa, a oeste ou ao norte dos Alpes, não deu nenhuma contribuição importante para a tecnologia ou a civilização do Velho Mundo. A Europa era, em vez disto, uma receptora dos progressos do mediterrâneo oriental, do Crescente Fértil e da China. Mesmo no período de 1000 a 1450, o fluxo predominante de ciência e tecnologia era para a Europa, a partir das sociedades islâmicas que se estendiam da Índia ao norte da África, e não ao contrário. Durante esses mesmos séculos, a China liderou o mundo em termos de tecnologia, depois de ter iniciado a produção de alimentos quase ao mesmo tempo que o Crescente Fértil.
Por que, então, o Crescente Fértil e a China acabaram perdendo a grande liderança de milhares de anos para a Europa retardatária? Naturalmente, é possível apontar fatores imediatos por trás da ascensão da Europa: o desenvolvimento de uma classe mercantil, o capitalismo e a patente para proteger as invenções, o fracasso em impor déspotas absolutos e uma taxação esmagadora, e sua tradição greco-judaica-cristã de investigação empírica crítica. Mas para todas essas causas imediatas deve-se levantar a questão da causa final: por que esses fatores imediatos surgiram na Europa, e não na China ou no Crescente Fértil?
Para o Crescente Fértil, a resposta é clara. Depois que perdeu a vantagem que obtivera graças à concentração disponível na região de plantas e animais selvagens domesticáveis, o Crescente Fértil não tinha nenhuma outra instigante vantagem geográfica. O desaparecimento dessa vantagem inicial pode ser rastreado em detalhes, como a mudança de impérios poderosos para oeste. Depois da ascensão dos estados do Crescente Fértil no quarto milênio antes de Cristo, o centro do poder permaneceu inicialmente no Crescente Fértil, alternando-se entre impérios como os da Babilônia, os hititas, a Assíria e a Pérsia. Com a conquista pela Grécia de todas as sociedades avançadas, do leste da Grécia à Índia, sob o comando de Alexandre o Grande, no fim do século IV a.C., o poder fez finalmente sua primeira mudança irrevogável para o oeste. Depois ele seguiu mais para oeste com a conquista romana da Grécia no século II a.C., e depois da queda do império romano, o poder deslocou-se de novo, para a Europa ocidental e setentrional.
O principal fator por trás dessas mudanças fica óbvio quando se compara o Crescente Fértil moderno com suas descrições antigas. Hoje, as expressões “Crescente Fértil” e “líder mundial em produção de alimentos” são absurdas. Grandes áreas do antigo Crescente Fértil são agora desérticas, semidesérticas, estepes, solos muito erodidos ou salinizados, impróprios para a agricultura. A atual riqueza efêmera de alguns países da região, baseada num único recurso não-renovável - petróleo -, oculta a pobreza fundamental que vem de longa data.
Em tempos antigos, no entanto, grande parte do Crescente Fértil e da região mediterrânea oriental, incluindo a Grécia, era coberta por florestas. A transformação da região, de um bosque fértil em arbustos carcomidos ou desertos foi esclarecida por paleobotânicos e arqueólogos. Suas florestas foram derrubadas para a agricultura, ou cortadas para a obtenção de madeira para construção, ou queimadas como lenha. Por causa de baixa pluviosidade e, consequentemente, baixa produtividade primária (proporcional à chuva), a recuperação da vegetação não conseguia acompanhar o ritmo de sua destruição, principalmente pela presença de muitas cabras pastando. Sem as árvores e a cobertura de grama, sobreveio a erosão e os vales encheram-se de lodo, enquanto a agricultura de irrigação no ambiente de baixa pluviosidade favorecia a salinização. Esses processos, que começaram na era neolítica, continuaram nos tempos modernos. Por exemplo, as últimas florestas perto da antiga capital nabatéia de Petra, na moderna Jordânia, foram derrubadas pelos turcos otomanos durante a construção da ferrovia de Hejaz, pouco antes da Primeira Guerra Mundial.
O Crescente Fértil e as sociedades mediterrâneos ocidentais tiveram, portanto, o azar de nascer em um ambiente ecologicamente frágil. Cometeram um suicídio ecológico destruindo sua própria base de recursos. O poder deslocava-se para o oeste à medida que cada sociedade mediterrânea oriental, por sua vez, enfraquecia, a começar pelas mais antigas, no leste (o Crescente Fértil). A Europa setentrional e ocidental foi poupada deste destino, não porque seus habitantes foram mais sábios, mas porque eles tiveram a sorte de viver em um ambiente mais resistente, com mais chuva, em que a vegetação volta a crescer depressa. Grande parte da Europa setentrional e ocidental ainda pode sustentar sua agricultura intensiva hoje, sete mil anos depois da chegada da produção de alimentos. De fato, a Europa recebeu as culturas agrícolas, as criações de gado, tecnologia e os sistemas de escrita do Crescente Fértil, que aos poucos foi deixando de ser um centro importante de poder e inovação.
Foi assim que o Crescente Fértil perdeu sua grande liderança inicial em relação à Europa. Porque a China também perdeu a liderança? Seu atraso, a princípio, é surpreendente, porque este país desfrutava de vantagens inegáveis: o surgimento da produção de alimentos quase ao mesmo tempo que no Crescente Fértil; uma diversidade ecológica de norte a sul e da costa às altas montanhas do planalto tibetano, dando origem a um conjunto variado de culturas agrícolas, animais e tecnologia; uma extensão grande e produtiva, alimentando a maior população humana regional do mundo; e um ambiente menos seco ou ecologicamente menos frágil que o do Crescente Fértil, permitindo que a China ainda sustente uma produtiva agricultura intensiva depois de quase dez mil anos. Mas seus problemas ambientais estão aumentando hoje e são mais graves que os da Europa ocidental.
Todas essas vantagens tornaram a China medieval capaz de liderar o mundo em tecnologia. A longa lista de seus primeiros inventos tecnológicos importantes inclui o ferro fundido, a bússola, a pólvora, o papel e a imprensa, e muitos outros já citados. Ela também liderou o mundo em poder político, navegação e controle dos mares. No início do século XV, enviou frotas valiosas, formadas de centenas de embarcações de até 400 pés (cerca de 120 metros) com até 28 mil tripulantes no total, pelo oceano Índico até a costa da África, décadas antes de três frágeis caravelas de Colombo cruzarem o estreito oceano Atlântico para a costa leste das Américas. Por que os barcos chineses não seguiram para o oeste, dando a volta no cabo ao sul da África e colonizando a Europa, antes de Vasco da Gama e suas três frágeis caravelas contornarem o Cabo da Boa Esperança para o leste e iniciassem a colonização européia da Ásia oriental? Por que os barcos chineses não cruzaram o Pacífico para colonizar a costa ocidental das Américas? Em resumo, por que a China perdeu sua liderança tecnológica para a tão atrasada Europa?
O fim das tropas valiosas da China nos dá uma pista. Sete dessas frotas saíram da China entre 1405 e 1433. Elas foram depois paralisadas por causa de uma típica aberração da política local, que poderia ocorrer em qualquer lugar do mundo: uma luta pelo poder entre duas facções na corte chinesa (os eunucos e seus adversários). Enviar e capitanear frotas era a marca da primeira facção. Por isso, quando a segunda facção venceu a luta pelo poder, deixou de enviar as frotas, acabou por desmantelar os estaleiros e proibiu o tráfego de embarcações transoceânicas. O episódio lembra a legislação que sufocou o desenvolvimento da iluminação elétrica pública em Londres na década de 1880, o isolacionismo dos Estados Unidos entre a Primeira e a Segunda Guerras, e muitos retrocessos em muitos países, todos motivados por questões políticas locais. Mas na China havia uma diferença, porque a região inteira estava politicamente unificada. Uma decisão parou as frotas em toda a China. Essa decisão temporária tornou-se irreversível, porque não sobrou um estaleiro para construir barcos que provassem a loucura daquela decisão temporária, e para servir como argumento para a construção de outros estaleiros. (continua)


[1] Pergunta feita por Yali, notável político local da Nova Guiné, em julho de 1972, a Jared Diamond, com sua curiosidade insaciável de quem só estudara até a escola secundária. Na nova Guiné, todos os bens (objetos – machados de aço, fósforos, remédios, roupas, bebidas e guarda-chuvas) trazidos pelos colonizadores brancos - que chegaram e impuseram um governo central - eram conhecidos pelo coletivo de “cargo”. Com um olhar penetrante lançado, Yali indagou: “Por que vocês, brancos, produziram tanto ‘cargo’ e trouxeram tudo a Nova Guiné, mas nós, (...), produzimos tão pouco ‘cargo’?” (DIAMOND, 1997, pp.13-15).

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