O Economista na sociedade moderna
Por: Cristovam Buarque (*)
Nas últimas décadas os países em desenvolvimento, em especial o Brasil, passaram a ser administrados por economistas ou por uma lógica economicista dissociada do mundo real. O resultado foi a formação de um grupo considerado de economistas, verdadeiros tecnocratas, que passaram a ditar os rumos da economia brasileira, baseados apenas em modelos econométricos e estatísticos, sem levar em consideração os aspectos éticos, culturais e humanitários do conjunto da sociedade.
Os problemas sociais e aqueles vinculados diretamente à essência do processo humano deixaram de ter uma identidade própria, e foram apropriados pela realidade única do discurso economicista. E a sociedade, influenciada por anos de primazia do econômico, caiu na armadilha de considerar as dificuldades econômicas como sendo os únicos problemas do país. Desapareceram como problemas enfáticos a fome do povo brasileiro, o analfabetismo, o desemprego, a falta de acesso à cultura e de saúde.
Tornaram-se problemas graves a dívida externa, a inflação, a taxa de juros e a taxa de câmbio. Os economistas que são formados nas universidades brasileiras raciocinam, exclusivamente, com projeções numéricas, em torno de quanto vai ser a inflação do próximo mês, se os juros devem subir ou descer, sobre o tamanho da dívida externa. Os economistas atuais perderam de vista a dimensão social do povo brasileiro.
Hoje, infelizmente, não se discute nas faculdades de economia a fome do povo brasileiro, que é o principal problema nacional. O desemprego que atinge níveis alarmantes e joga na rua da amargura milhares de pais de famílias e jovens é visto no discurso economicista como um mal necessário para conter a taxa de inflação. A maior safra agrícola do Brasil é vista com êxito, independentemente da fome de 50 milhões de brasileiros que ela não ajuda a solucionar, porquê é mais rentável exportá-la para alimentar animais que fornecerão sofisticações gastronômicas para poucos.
A indústria de equipamentos médicos pode ser um elemento dinâmico, independentemente do fato de ajudar ou não a reduzir o problema das doenças. Uma multidão de esfomeados, por falta de salários, nada representa para o economista, se o equilíbrio de preços se mantém, ao nível da renda disponível. O desabastecimento não existe, se os necessitados ficam fora das filas de poder de compra.
O conceito de valor é elaborado sem incluir o efeito de depredação sobre o meio ambiente. O valor de uma obra literária é representado apenas pelo número de exemplares vendidos. Buscando quantificar e limitar a esta quantificação o valor das coisas, o economista funciona como um elemento abstrato, que encobre a realidade, dentro de uma determinada lógica e com um determinado propósito.
Em todos os países, os economistas tecnocratas assumiram um distanciamento aparente da realidade política que lhes serviu de base para viabilizar suas estratégias. Não duvidaram em utilizar a repressão policial, a tortura, a abolição de toda liberdade, como instrumentos de política econômica, com uma dupla falta de ética: durante as ditaduras, em relação aos valores básicos do humanismo; e nos momentos de retomada da democracia, negando seus comprometimentos autoritários com os militares dos quais eram cúmplices. O problema não é que os economistas não tenham aprendido as lições recebidas nos cursos, o problema é que aprenderam da mesma forma que um químico aprende o que deve misturar para obter bicarbonato de sódio, não se perguntando por que, para que, a que custo.
Ao estudar a ciência como algo alienado das realidades de seus países, o economista perdeu a perspectiva de entender a essência do processo econômico e a realidade em mutação na qual este processo se situa. Os economistas transformam-se, assim, em uma espécie de "sapiências endeusadas" com a função de elaborar as argumentações que justificam os dogmas vigentes. Ainda mais grave é que, quando a realidade não se apresenta como as teorias previam, eles manipulam os dados criando uma realidade nova, desvinculada do real.
Este problema não é característica apenas dos economistas, mas de toda a rede que forma a moderna burocracia em cada país do mundo. O que diferencia e agrava a situação dos economistas, em relação a outros burocratas, como aqueles das forças armadas, dos sistemas de saúde etc., é que, modernamente, os economistas têm tido a possibilidade de exercer um papel ativo de liderança na definição do rumo da sociedade e da civilização.
No auge da elevação do preço do petróleo, um alto funcionário do governo da Arábia Saudita declarou que o maior problema de seu país era que toda vez que perfuravam um poço procurando água só encontravam petróleo. Como os demais países petroleiros do Oriente Médio, a Arábia Saudita vivia o drama do rei Midas, da Frigia, que, por ter liberado Sileno, recebeu como prêmio o poder de transformar em ouro tudo o que tocasse. Deslumbrado com as possibilidades, o rei Midas só percebeu as conseqüências negativas quando foi ter sua primeira refeição depois do novo poder.
Os economistas modernos trabalham ainda sem o conhecimento do mito de Midas ou sem a experiência do funcionário saudita. É este desconhecimento que faz com que depois da morte do último dos elefantes o mundo acordará mais rico, porque os donos dos armazéns terão mais marfim para comercializar, ou seja, diante da irracionalidade em que a realidade econômica funciona, o economista vê-se forçado a criar mitos, que façam os homens julgarem racionais comportamentos claramente absurdos.
Apesar de todas as suas limitações e fragilidades, a ciência econômica, e com ela o economista, é um dos campos das ciências sociais que maior contribuição pode vir a dar a uma compreensão do fenômeno das relações entre os homens, e destes com a natureza. Para isso, é necessário que a ciência econômica se desvincule dos preconceitos dogmáticos e da alienação em relação à realidade. Os economistas que se consideram cientistas exatos e defensores de uma economia positiva devem olhar a realidade natural e social cambiante e, a partir dela, formular modelos que de fato sirvam a uma racionalidade na combinação produtiva dos homens, entre eles e com a natureza.
Esta nova ciência e este novo economista, devem ser capazes de desvendar o que há por trás do véu de premissas definidas ideologicamente, e buscar a essência da economia. Ao mesmo tempo, será preciso prever que esta busca não pode se limitar a uma visão mecanicista, positivista ou materialista-histórica. Deve estar aberta ao sentimento da magia do processo econômico. A magia por trás de objetivos e métodos inexplicáveis, como o próprio desejo e lutas libertárias, ou o uso do trabalho para concretizar este desejo. A magia de processos organizativos que canalizam esforços que significam tempo em vidas, seja para levar o homem à lua, construir pirâmides, realizar um desfile de escola de samba, ou aumentar o consumo. A magia capaz de montar a logística estatal para enfrentar uma guerra e a logística privada que viabiliza o abastecimento de megalópoles. A magia dos milhares de anos, milhões de horas de trabalho físico e intelectual de centenas de milhares de outras pessoas que, ao longo da história, se unem, se articulam, se complementam com base em leis que não se conhecem e que jamais serão inteligíveis, se ficarmos presos a preconceitos e não formos capazes da modéstia de saber que há uma mágica, no limite de nosso conhecimento.
(*) Cristovam Buarque é Doutor em economia, ex-reitor da Universidade de Brasília e ex-Governador do Distrito Federal
Nenhum comentário:
Postar um comentário