terça-feira, julho 07, 2009

cronópios

22/6/2009 17:17:00
Paraulas para Palau*

Por Augusto de Campos

Em 1951, por conta da minha paixão pela arte trovadoresca provençal, adquiri uma bela antologia de modernos poetas catalães, que, para minha tristeza, acabou desaparecendo de minha vista depois que, no meu entusiasmo, a emprestei a um amigo que se mostrara interessado. Mais de meio-século se passou e só recentemente consegui recuperar, comprando-a de uma livraria internacional, a obra que tanto me impressionara: LA POESIA CATALANA – CONTEMPORANIS – Seleció e Prologo de F. Gutiérrez, editada por Josep Janés em 1947.

O catalão é a língua mais próxima do provençal, a meio-caminho do português, e desde logo me fascinaram as proximidades e dessemelhanças desses idiomas, que me soavam como harmônicos sonoros, sugerindo-me estranhas variações e ressonâncias vocabulares. Tão impressionado fiquei que inseri nos poemas que então elaborava algumas palavras, que dão a impressão de neologismos, mas na verdade são catalonismos imbricados na nossa língua. Num velho caderno da época anotei, ao lado de um pequeno vocabulário traduzido para o português, versos e palavras que me chamaram a atenção, dentre elas as que infiltrei, nem sempre com o mesmo sentido ou a mesma função gramatical, em poemas de 1952 e 1953: “coloraina”, “enlluernar” (enluernar), “veueta d’or”, “a l’afalac de l’amor”, “finestra” (fenestra), flairós” (flairar)”, “eixamplar” (exampl’eu), extraídas ou derivadas de poemas de Josep Carner, Trinitat Catasus, Josep M. Lopez-Picó, Alfons Maseres e outros.

A poesia catalã sempre me pareceu muito forte. Tem tradição trovadoresca e uma expressiva inserção moderna, que se pode contextualizar com a projeção pictórica de grande artistas como Picasso e Miró. Chego a pensar que só o isolamento linguístico explica a sua pouca projeção internacional. João Cabral, que, como se sabe, viveu em Barcelona e lá fez amigos entre poetas e pintores, teve sensibilidade para reconhecer o mérito da produção dos modernos poetas catalães, e veio a traduzi-los, até, para o português (“Quinze Poetas Catalães”, Revista Brasileira de Poesia nº IV, fev. 1949). Quando tomei conhecimento, na época, de agumas das versões cabralinas, chamou-me a atenção, especialmente, o SONETO INTRAUTERINO de Josep Palau i Fabre, com aqueles versos originalíssimos e impactantes: “Jo vul desneixer em tu. Tot home vol desneixer en un amor, un si.” [Quero desnascer em ti. Todo homem quer desnascer num amor, num seio.]. Dentre as primeiras iniciativas de divulgar a poesia da Catalunha no Brasil destaca-se a de Stella Leonardos, que publicou em 1969 uma Antologia de Poesia Catalã Contemporânea (São Paulo, Monfort Editor). Ainda há pouco um entusiasta, Vanderley Mendonça, editor e tradutor brasileiro de obras de Joan Brossa, fez estampar, em elegantes impressões bilingues do seu intrépido e já “cult” Selo Demônio Negro, duas “miniantologias” de J. V. Foix e Joan Salvat Papalat, poetas menos conhecidos mas que estão entre os mais significativos da grande safra da modernidade catalã, em tradução de Ronald Polito e Josep Domènesch Ponsati.

Animado com a recuperação da minha querida e perdida antologia, traduzi três textos do mesmo José Palau, pensando em homenageá-lo, já que, como verifiquei, faleceu em fevereiro do ano passado, aos 90 anos — passamento ignorado entre nós. Amigo de Picasso, ficou conhecido pela biografia que fez do pintor, mas a sua poesia tem permanecido em indevida obscuridade. Os catalães são aparentemente fáceis de traduzir para o português, devido à proximidade dos idiomas, mas essa facilidade é enganosa. Ao contrário das espanholas, as palavras catalãs são em geral mais breves que as equivalentes em nossa língua e o parentesco vocabular induz a equívocos. Muitos dos poemas que li sob a rubrica de “contemporâneos” são metrificados e rimados, o que torna ainda mais problemática uma tradução desse tipo de poesia à altura do original; mesmo os versos livres (menos livres do que parecem) por vezes dissimulam decassílabos, endecassílabos e dodecassílabos e, se não se tomar cuidado, o ritmo tropeça e a música se perde. Quanto aos poemas que traduzi — CANT ESPIRITUAL (Canto Espiritual), COMIAT (Despedida) [este, também vertido por Stella Leonardos em sua antologia] e L’ESTRANIER (O Estrangeiro), o primeiro deles pode ser ouvido, com algumas outras composições de Josep Palau, na sóbria e comovente leitura do próprio poeta. Vale a pena conferir: http://www.youtube.com/watch?v=caQkrNYSuww

Encantam-me esses textos pela naturalidade e diretidade villonescas do discurso, qualidades raras na poética quase que inevitávelmente rebuscada e “self conscious” da modernidade. Dialogar com o desconhecido, o desvalimento e a estraneidade com tão claras, precisas e belas palavras? Não é para qualquer um.

* PARAULAS (provençal) = PARAULES (catalão) = PALAVRAS.

* * *

CANT ESPIRITUAL

No crec en tu, Senyor, però tinc tanta necessitat de creure en tu, que sovint
parlo i t`imploro com si existissis.

Tinc tanta necessitat de tu, Senyor, i que siguis, que arribo a creure en tu
i penso creure en tu quan no crec en ningú.

Però després em desperto, o em sembla que em desperto, i m`avergonyeixo
de la meva feblesa i et detesto. I parlo contra tu que no ets ningú. I parlo
mal de tu com si fossis algú.

¿Quan, Senyor, estic despert, i quan sóc adormit?

¿Quan estic més despert i quan més adormit? ¿No serà tot un son i,
despert i adormit, somni la vida? ¿Despertaré algun dia d`aquest doble son
i viuré, lluny d`aquí, la veritable vida, on la vetlla i el son siguin una
mentida?

No crec en tu, Senyor, però si ets, no puc donar-te el millor de mi si no és
així: sinó dient-te que no crec en tu. Quina forma d`amor més estranya i
més dura! Quin mal em fa no poder dir-te: crec.

No crec en tu, Senyor, però si ets, treu-me d`aquest engany d`una vegada;
fes-me veure ben bé la teva cara! No em vulguis mal pel meu amor
mesquí. Fes que sens fi, i sense paraules, tot el meu ésser pugui dir-te: Ets.

París, 14 de maig del 1950

CANTO ESPIRITUAL

Não creio em ti, Senhor, mas tenho tanta necessidade de crer em ti, que
muitas vezes falo e te imploro como se existisses.

Tenho tanta necessidade de ti, Senhor, e de que sejas, que chego a crer
em ti — e penso crer em ti quando não creio em ninguém.

Mas depois desperto, ou me parece que desperto, e me envergonho de
minha fraqueza e te detesto. E falo contra ti que não és ninguém. E falo
mal de ti como se fosses alguém.

Quando, Senhor, estou desperto e quando adormecido?

Quando estou mais desperto e quando mais adormecido? Não será tudo
um sonho e eu que, desperto e adormecido, sonho a vida? Despertarei
algum día deste duplo sonho e viverei, longe daqui, a verdadeira vida,
onde sonho e vigília sejam uma mentira?

Não creio em ti, Senhor, mas se és, não posso dar-te o melhor de mim a
não ser assim: senão dizendo-te que não creio em ti. Que forma de amor
tão estranha e tão dura! Que mal me faz não poder dizer-te: creio.

Não creio em ti, Senhor, mas se és, tira-me deste engano de uma vez.
Faz-me ver bem a tua cara! Não me queiras mal pelo meu amor
mesquinho. Faz com que, sem fim e sem palavras, todo o meu ser possa
dizer-te: És.

COMIAT

Ja no sé escriure, ja no sé escriure més.
La tinta m’empastifa els dits, les venes...
He deixat al paper tota la sang.
¿On podré dir, on podré deixar dit, on podré inscriure
la polpa del fruit d’or sinó en el fruit,
la tempesta en la sang sinó en la sang,
l’arbre i el vent sinó en el vent d’un arbre?
¿On podré dir la mort sinó en la meva mort,
morint-me?
La resta són paraules...
Res no sabré ja escriure de millor.
Massa a prop de la vida visc.
Els mots se’m moren a dins
i jo visc en les coses.

DESPEDIDA

Já não sei escrever, já não sei escrever mais.
A tinta me empasta os dedos, as veias...
Deixei no papel todo o meu sangue.
Onde poderei dizer, onde poderei deixar dito, onde poderei inscrever
a polpa do fruto de ouro senão no fruto,
a tempestade no sangue senão no sangue,
a árvore e o vento senão no vento de uma árvore?
Onde poderei dizer a morte senão na minha morte,
morrendo?
O resto são palavras...
Nada saberei já escrever de melhor.
Perto demais da vida vivo.
As palavras morrem em mim
e eu vivo nas coisas.

L’ESTRANGER

¿De quin país és aquest estranger?
No ho sé.
¿Com se diu?
No ho sé.
¿Què fa? ¿Quina llengua parla?
No ho sé.
¿Com us dieu, bon home?
...
¿De quin país veniu? ¿On aneu?
Sóc d’aquí. Sóc estranger.

O ESTRANGEIRO

De que país é aquele estrangeiro?
Não sei.
Como se chama?
Não sei.
O que faz? Que língua fala?
Não sei.
E você, que nome tem?
—…
De que país vem? Para onde vai?
Sou daqui. Sou estrangeiro.

Augusto de Campos nasceu em São Paulo, em 1931. Poeta, tradutor, ensaísta, crítico de literatura e música. Em 1951, publicou o seu primeiro livro de poemas, O REI MENOS O REINO. Em 1952, com seu irmão Haroldo de Campos e Décio Pignatari, lançou a revista literária "Noigandres", origem do Grupo Noigandres que iniciou o movimento internacional da Poesia Concreta no Brasil. O segundo número da revista (1955) continha sua série de poemas em cores POETAMENOS, escritos em 1953, considerados os primeiros exemplos consistentes de poesia concreta no Brasil. O verso e a sintaxe convencional eram abandonados e as palavras rearranjadas em estruturas gráfico-espaciais, algumas vezes impressas em até seis cores diferentes, sob inspiração da Klangbarbenmelodie (melodia de timbres) de Webern. Em 1956 participou da organização da Primeira Exposição Nacional de Arte Concreta (Artes Plásticas e Poesia), no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Sua obra veio a ser incluída, posteriormente, em muitas mostras, bem como em antologias internacionais como as históricas publicações Concrete Poetry: an International Anthology, organizada por Stephen Bann (London, 1967), Concrete Poetry: a World View, por Mary Ellen Solt (University of Bloomington, Indiana, 1968), Anthology of Concrete Poetry, por Emmet Williams (NY, 1968). Sua poesia está coligida principalmente em Viva Vaia (1979, 4ª ed. 2008), Despoesia (1994) e Não (2003, 2ª ed. 2008). Últimos estudos e traduções: Poesia da Recusa (2006), Quase-Borges (2006) e Emily Dickinson: Não sou Ninguém (2008).

Site:http://www2.uol.com.br/augustodecampos/home.htm E-mail: a.campos@uol.com.br

Fonte: CRONÓPIOS

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