Mundo dos números (título que dei)
[...]De Hegel, precisa-se de sua clarificação sobre o papel da matemática no conhecimento científico. Na Fenomenologia do Espírito, Hegel disse o seguinte: “o conhecimento matemático só representa o devir do ser aí, isto é, do ser da coisa no conhecimento imediato enquanto tal”. E mais à frente: “no conhecimento matemático a intelecção é exterior à coisa, donde se segue que mediante ele não se conhece a coisa verdadeiramente”.
Devo, agora, em nome da inteligibilidade, reproduzir agora esses dois argumentos numa forma mais simples:
Por meio de uma função matemática, podemos, por exemplo, relacionar o salário à quantidade de trabalho, isto é, w = f (l) para descrever uma função de oferta. Isto, porém, não nos permite ver que o salário é o preço de aluguel da força de trabalho, ou seja, que ele é apenas o aspecto quantitativo imediato de uma relação estrutural entre trabalhador e capitalista. Especialmente em sua forma abreviada, w, não nos permite enxergar que essa relação social pressupõe uma divisão entre os homens, entre aqueles que possuem meios de produção − os donos do capital − e aqueles que só possuem a força de trabalho, a qual têm de vender necessariamente ao capitalista a fim de sobreviver. Ela não revela o metabolismo entre essas duas classes sociais. Ao contrário, com a concentração exclusiva em expressões tais como w = f (l) tudo se oculta, inclusive o fato de que tanto o trabalhador quanto o capitalista são subjetividades imersas num mundo dilacerado.
Mesmo uma simples troca pressupõe seres que desejam, ou seja, proprietários privados que são mais do que proprietários privados. Ademais, uma simples troca pressupõe um contrato que vem a ser um acordo de vontades. A economia mercantil, mesmo em seus aspectos mais imediatos e aparentes, pressupõe, pois, seres desejosos e volitivos. Pressupõe, também, em nível mais profundo, a relação estrutural que diz que as relações sociais entre homens se farão por meio de transações, ou seja, que elas se travaram por meio das coisas. Tudo isso desaparece nas fórmulas matemáticas de uma ciência econômica totalmente limpa de tudo o que pode vir a ser humano.
Aqueles dois argumentos levam, pois, à seguinte conclusão: a restrição em larga medida do conhecimento científico em Economia àquele que pode assumir uma forma matemática – que gerar necessariamente a mitologização dessa forma –, expressa de um modo invertido, obscuro, o propósito subconsciente de ficar na superficialidade dos fenômenos, em seus nexos aparentes, sem investigar os fundamentos internos desses fenômenos e nexos, quais sejam, as relações sociais que estruturam essa aparência superficial.
A formalização não é, entretanto, um fim em si mesmo. Ela é, sobretudo, uma pedagogia anti-humanista que se sustenta na recriação meramente matemática da realidade, configurando-se, por isso, como um novo obscurantismo. Ela dá suporte a um processo de treinamento que visa preparar os estudantes em técnicas de manipulação da realidade social, como se esta fosse um dado, mera natureza ou um mero sistema cibernético. Para tanto, precisa representar essas interações sociais, abreviada e limitadamente, sob os nomes matemáticos de variáveis microeconômicas e macroeconômicas. Eis que a linguagem assim constituída é empregada por uma elite de tecnocratas com o objetivo último de domar as interações sociais contraditórias.[...]
Fonte: Trecho do artigo “Formação do Economista num Mundo Dominado pelo Neoliberalismo”, de Eleutério F. S. Prado
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