TERRAS DA AMAZÔNIA: Muito na mão de poucos
Geógrafo questiona a aprovação de MP que regulariza a propriedade de terras na Amazônia por Frederico Viotti
Tratando-se de Amazônia, o assunto do momento é a aprovação na Câmara dos Deputados da polêmica Medida Provisória 458, que regulamenta a propriedade de terras. O projeto, aprovado em fevereiro, indica a regularização dos terrenos com extensões de até 1.500 hectares que tenham sido ocupados antes de 2004.
As modificações feitas no texto original ressaltaram as divergências entre a bancada ruralista e a ambientalista, que disputaram voto a voto as alterações que mais lhe interessavam. Ao que tudo indica, os ruralistas venceram esta queda de braço.
O texto aprovado assegurou a indenização aos posseiros caso as terras sejam retomadas pela União, a possibilidade de empresas também comprarem as posses e uma espécie de “anistia” para quem agiu contra a legislação ambiental vigente. Só é passível de punição, ainda que com garantias de defesa, quem desmatou áreas de preservação permanente ou de reserva legal.
Por outro lado, a MP também contém exigências de recomposição de reservas para os que conseguirem comprar as terras, além de proibir a alienação de florestas públicas, de unidades de conservação ou de áreas que já estejam selecionadas para a criação de áreas de preservação.
A discussão em torno da medida reuniu não só parlamentares, mas também figuras públicas, como os atores Christiane Torloni e Victor Fasano. Tanto o atual ministro do Meio Ambiente Carlos Minc quanto sua antecessora Marina Silva se posicionaram de maneira claramente contrária à aprovação.
No segundo encontro do módulo “Descobrir a Amazônia, Descobrir-se Repórter”, do Projeto Repórter do Futuro, realizado dia 16 de maio, o tema foi abordado e discutido por um especialista: o geógrafo e professor da USP Ariovaldo Umbelino de Oliveira.
Com seus estudos direcionados para as questões relativas à ocupação recente da Amazônia e suas consequências, Oliveira é firme em sua posição frente à MP: “Essa política fere o princípio de que a propriedade da terra tem que cumprir sua função social, o que por si só fere a constituição nacional”.
O geógrafo ainda caracteriza a iniciativa como uma “contra-reforma agrária”, pois estaríamos entregando o patrimônio público nas mãos dos grileiros, que já dominam os principais municípios produtores agrícolas. São terras griladas que pertencem ao Incra.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é um dos principais focos de sua crítica: “funcionários do Incra vendem terras públicas legais para os grileiros, os protagonistas do processo de destruição na natureza”. Esta acusação foi referendada pela denúncia recente ocorrida no Mato Grosso, que terminou com a prisão de 14 suspeitos de fraudes em processos de desapropriação. Entre eles, seis empregados do instituto, um do alto escalão.
“A MP foi arquitetada nos bastidores, por funcionários do Incra.” Oliveira baseia sua afirmação no fato do governo já estava fazendo assentamentos adequados antes da medida, criando novas propostas em que a terra fica sobre controle do estado, a preservação é efetiva e os assentados usufruem de todos os benefícios necessários, seguindo os preceitos do desenvolvimento sustentável. Segundo ele, essa ação prévia tira qualquer nexo da MP 458.
Ao tratar da participação do governo federal na questão, Oliveira é ainda mais incisivo. “A rigor, o estado brasileiro nem deveria incentivar nenhuma política de assentamento na Amazônia, não há necessidade. O Brasil tem 120 milhões de hectares de terras rurais improdutivas”.
Segundo dados apresentados pelo geógrafo, a Amazônia concentra 96 milhões de hectares de terras devolutas, que não constam em nenhum registro público. “Mais de 80% das terras dos municípios na região são devolutas”. Essas estatísticas deflagram um problema ainda maior: “Não há no Brasil conhecimento da situação fundiária. O Estado brasileiro não criou instrumentos para controlar suas terras. A situação está ao sabor das elites, que grilaram grande parte deste território”.
Oliveira é enfático ao analisar o papel do setor privado na preservação da Amazônia. “Os empresários desse país jamais respeitaram o meio-ambiente, nada indica que isso vá mudar. Deixar as terras nas mãos deles só aumentará o desmatamento. É a presença da propriedade privada que abre a brecha para o desmatamento”, afirma.
Sobre a questão dos assentamentos, Ariovaldo Oliveira declara que o número divulgado pelo Incra de 500 mil assentados é “mentiroso” e que na realidade não passa de 180 mil. “No cálculo final, estão somando assentamentos anteriores. Isso não é Reforma Agrária”.
Também esteve presente ao encontro o arqueólogo Eduardo Neves, que se aprofundou na função da arqueologia como chave para o resgate histórico da Amazônia e aproveitou para opinar sobre o caso. “A Amazônia pode ser ‘ocupada’ sim, mas com uma lógica bem diferente da do agronegócio. Deve-se pensar em uma ocupação de baixo para cima na pirâmide social”, afirmou.
Dentro desse cenário controverso, o perigo que a aprovação no Senado e no poder executivo da Medida Provisória 458 pode acarretar está reproduzido de forma clara no desabafo de Oliveira: “Estamos em uma encruzilhada histórica. Parte do patrimônio público nacional está sendo transferido de forma ilegal e inconstitucional para as mesmas pessoas que dominam e exploram predatoriamente essas terras há 500 anos, para quem sempre teve direito a elas. Os pobres são a justificativa para que as elites se apropriem de 150 milhões de hectares da Amazônia.”
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