domingo, maio 23, 2010

técnica e valores (I)

Ecoética e conhecimento a partir de uma postura hermenêutica*
*(resumo do capítulo, do livro Correntes da Ética Ambiental de M. L. Pelizzoli).

Questões iniciais

Este capítulo tem cinco partes: análise do prisma de conhecimento e de “constituição de mundo” da chamada “visão cartesiana”, associada ao progresso e o que isso implica; analisa brevemente os limites da alternativa “holística” que vem sendo proposta e os riscos do espiritualismo; entra propriamente na perspectiva hermenêutica, aplicada ao modo como concebemos e nos relacionamos com a natureza; remetida a proposições a partir do Gadamer, as quais podem ser frutíferas para a (eco)ética; pensa na aplicação desta perspectiva histórica na Educação.
Sempre com um olhar hermenêutico, podemos começar a perguntar: em que implica a hegemonia do paradigma epistemológico da ciência moderna[1] – como vimos antes em sua cosmovisão cartesiano-baconiana-galileana da Revolução Científica – no seu sentido reducionista, aplicada às metodologias das várias disciplinas e perpassando a ênfase (axiomas, princípios, bases...) do saber em geral? (...) O que eles tem a ver hoje com a crise socioambiental?  Como começar a viabilizar a partir daí um trabalho em nível teórico-conceitual que contorne as impossibilidades geradas na visão dos paradigmas antiecológicos? Como gerar novos valores e ethos?

O paradigma “cartesiano objetificador”

É desde este prisma, relativo ao estatuto do saber técnico-científico moderno, que se centram investigações filosóficas, epistemológicas e críticas de tonalidade hermenêutica referentes aos procedimentos antiecológicos na civilização tecnoindustrial. Torna-se infrutífero repensar o saber, a ética e a Educação (socioambiental) sem revisitar os fundamentos do pensamento científico moderno e a motivação de seus modos de conhecimento, inatacáveis anteriormente. Tais parâmetros mostram toda sua força cultural no fato mesmo de que só diante das contradições reais – corrida bélica, envenenamento de ambientes, poluição visível, destruição irreversível de habitats naturais etc. – tais formas mentais começaram a ser investigadas, mesmo que com um instrumental precário.
Fazendo uma “arqueologia” das posturas antiecológicas se encontra o que já apontamos como “atitude objetificadora do ambiente”, espelhada na supremacia da razão instrumental, ou como pensamento unilateral do hegemônico (império do Mesmo sobre o Outro). Tal forma de inteligência, tal com a ave fênix renascente, reposiciona sempre de novo a racionalidade ocidental como dominação – diante da natureza e em relação ao Criador; torna-se um princípio absoluto, recriador de uma segunda natureza, cada vez mais tecnológico-artificial. O grande salto desta empossamento de homem como senhor da natureza e reprodutor de seus organismos – em escalas mecânico-tecnológicas – pode ser acompanhado nos frutos do cartesianismo epistemológico e da Revolução Científica, ponto crucial da lógica e da práxis reorganizadora e reapropriadora nas Ciências Naturais, e então da tecnologia, e assim da produção e economia, até chegar aos estilos de vida e consumo.
Nesta virada tem papel central o estabelecimento de padrões de apreensão da Natureza não mais qualitativos mas quantitativos; a linguagem matemática e as relações numéricas reordenam a visão de mundo (a natureza este escrita em linguagem matemática – Galileu). Este torna-se um modelo concebido por uma “lógica que pressupõe a redução de todos os fenômenos naturais a relações matemáticas”, a passar pela decomposição analítica investigadora e recriadora. O que se configura, bem demonstrado a partir da hermenêutica, é um instrumental de interferência na ordem autônoma da natureza de base reducionista e mecanicista, o qual proporcionará uma relação objetificante e não mais “viva” com o real. Onde estão agora, perguntava R. D. Lang, as cores, cheiros, sabores, intuições, tradições, sensibilidades, o “mundo da vida”? Como reafirma Mauro Grun, seguindo H. H. Flickinger, a reprodução desta trajetória que vai do orgânico ao mecânico, ao nível da teoria do conhecimento, representa a perda do ‘orgânico’ enquanto objeto de conhecimento. A consequência disto é que o conceito de vida é expulso da ciência. O paradigma mecanicista é incapaz de dar conta da vida enquanto processualidade[2].
       A epistemologia moderna não questionou a dicotomia ciência versus sabedoria. A “Nova Ciência” abala as propriedades “subjetivas”, estéticas, espirituais. O conhecimento será objetivo na medida em que domina e controla mais a natureza e mais se afasta do primitivo e selvagem. A Ciência e a própria Educação institucionalizada instrumentalizam um “antropocentrismo” instrumentalizante e um ethos antiecológico.
           Então, a chave de abordagem do real na base da linearidade causa-efeito e sujeito-objeto reducionista, dicotômica e mecanicista, chocou-se necessariamente com a base biológica e ecológica das culturas anteriores; ela “resolveu” terminantemente a complexidade e os mistérios da dinâmica do natural pela via da simplicidade da simbologia matemática quantificadora e da mecânica conjugada com a  experimentação científica. O reducionismo pressupõe que a “matéria é a base de toda a existência, e o mundo material é visto como uma profusão de objetos separados, montados numa gigantesca máquina”[3]. Por fim, a razão cartesiana “pressupõe a divisibilidade infinita do objeto. A indivisibilidade do espírito é a divisibilidade do objeto. É impossível opor duas autonomias. Se a razão é autônoma, a natureza não pode sê-lo[4]. E grave é quando as Ciências Humanas beberam desta fonte.
            É só neste século que se começa a perceber realmente que as verdades deste modelo são aproximações até restritivas do real (vide as novas complexidades trazidas pela Física quântica, ou pela abordagem ambiental) e excluem toda uma gama de fatores subjetivos, interconexões não-explícitas, contextos, e a concepção de uma natureza própria como tal em sua dinâmica viva. O novo paradigma que desponta pode ser chamado de dialógico, visando a recuperar a noção de interação efetiva (observador/observado, vivo/não-vivo, Eu/Outro) com o que se chama de “real”, e com o “ambiente”; sua força ainda é menor que a do cartesianismo/reducionismo, do status quo, mas a visão de ambiente ecológico, das inter-relações e da (auto)produtividade da vida como criação contínua cresce a cada dia.
            Neste sentido, por um lado, ainda estamos nas mãos da Ciência e da tecnologia, as quais precisam reincorporar o caráter humano dos valores, o nível ético, estético e a problemática social. Como afirma Hoesle, “a crise do mundo contemporâneo está ligada ao fato de que a racionalidade científica, que ficou autônoma, se julga a própria razão e considera qualquer outra forma de racionalidade como uma forma deficiente do conhecimento do tipo das ciências naturais”. E, adiantando já um tema central aqui, apontamos: “A dissolução dos valores pela absolutização da racionalidade contemporânea é certamente uma das causas da crise ecológica, que, entrementes, ameaça não só a natureza exterior do homem, mas também a própria natureza interior do homem, e que tem, assim, causas espirituais profundamente enraizadas”[5]. Se acirrarmos a situação é possível que, como diz Bornheim, a “técnica se torne até mesmo numinosa: ela pode salvar, mas representa o perigo [...] esconde em seu bojo o perigo da destruição. De certo modo, é ela que passa a dominar e a decidir, revelando nisto uma margem de irracionalidade surpreendente, que a aproxima do incontrolável”[6].
           Entrementes, não se trata de colocar todo o peso da questão no procedimento científico, mas antes trabalhar a dicotomização entre técnica e valores na própria prática e organização civil – educacional, ética, institucional. Por conseguinte, no entrecruzamento das duas instâncias não se pode passar ao largo do modelo que se conjuga material e economicamente em tal processo, espraiando-se em todos os níveis da sociedade, que é a forma capitalista neoliberal da Economia centralizadora e a permanência do seu status quo[7]. (continua)



[1] A palavra epistemologia tem uma importância fundamental, na medida em que as críticas em jogo vão à raiz dos processos de conhecimento que servem de base para a ciência e que se passam para as sociedades; pergunta-se pelo sentido do conhecimento, no que ele implica, ao que leva; igualmente, favorece a reflexão ética implícita no Saber.
[2] Continuando, “segundo Galileu, os cientistas deveriam se restringir aos corpos materiais – formas, quantidades e movimento. A consequência disto é a perda da sensibilidade estética, dos valores e da ética” (Grun, p. 27).
[3] Capra (1982), p. 44.
[4] Grun, p. 32, grifo meu.
[5] Hoesle, p. 589s. In: Stein & De Boni (orgs.), grifo meu.
[6] Bornheim, p. 167. In: Stein & De Boni (orgs.).
[7] Cf. aqui o nosso capítulo sobre o ecossocialismo.

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