Ecoética e conhecimento a partir de uma postura hermenêutica*
*(continuação do resumo do capítulo, do livro Correntes da Ética Ambiental de M. L. Pelizzoli).
É Gadamer principalmente que levanta “o problema filosófico de desenvolver uma nova ontologia do evento da compreensão”, a saber, apontando que o conhecimento se liga aos elementos de interesse existencial, social, histórico e da cultura/linguagem dos povos. [...] “A verdade zomba do homem metódico”; hermenêutica, portanto, designa, primeiramente, “o movimento básico da existência humana, constituída pela sua finitude e historicidade, e por conseguinte abrangendo a globalidade da sua experiência no mundo. [...] O movimento de compreensão é englobante e universal”.[1]
É por isso que Gadamer vai adotar, como primeiro exemplo hermenêutico, a experiência da obra de arte, na medida em que ela, não se esgotando apenas no “horizonte subjetivo de interpretação”, não se esgota também na racionalidade científica, e, apesar disso, tem ou faz um sentido – nos atinge. Ela não pode ser também captada ou produzida de igual modo pela tecnologia nos moldes da modernidade.
Ao pensar a História, o hermeneuta, busca aquilo que na tradição remete a uma visão de conhecimento menos dominadora e mais dialógico-dialética, com o sujeito deixando-se admirar e impressionar mais pela Natureza, pela arte, pelo ser das coisas, o que só uma experiência existencial e concreta (e com o “Outro”) pode “compreender”. Essa visão dialética é eminentemente dialogal, ouve a Natureza e a Cultura, interage cautelosamente. Se a verdade da Ciência é interessada, levando à solidão (ego cogito) daquele que domina a natureza e os outros como objetos de conhecimento, a verdade dialético-hermenêutica é plural, aberta ao outro (mesmo passado), não reducionista, relevando sempre aquilo que fica fora dos limites da razão instrumental do “progresso”. Neste sentido, pensamos numa posição próxima de defesa do Outro contra a hegemonização violenta do Mesmo, como aponta o filósofo E. Levinas.
No método reducionista, o tema a investigar “orienta”, controla e manipula a realidade, o “objeto”; na dialética, é o tema que levanta as questões a que irá responder [...] aquele que interroga descobre-se como sendo o ser que é interrogado pelo tema”, pela coisa real, o que leva sempre à auto reflexão. É por isso que no método tecnicista impera o “esquema sujeito-objeto”, a noção de causa-efeito linear e dura (simplificadora), onde o próprio sujeito “torna-se agora objeto”.[2]
O mundo da vida, da sabedoria acumulada, dos saberes antigos, da experiência produtiva, do lidar com as pessoas como “humanos”, nas culturas diversas, estes elementos “abertos” não são apenas uma fonte de conhecimento preciosa, mas condição inseparável do conhecimento científico e das tecnologias, que devem respeitar os chamados saberes sustentáveis em primeiro lugar. Assim, é fundamental considerarmos o nosso mundo da tecnologia e do american way of life hoje como uma possibilidade de mundo entre tantas outras que já ocorreram e que poderão ocorrer. O “mundo da vida” não se acaba simplesmente porque robôs e computadores inteligentes e a tecnologia de controle total surgem; ele é ponto de partida e contém elementos de alteridade (singularidades humanas e da Natureza...) que não se dobram à objetificação da Vida.
Não se trata, porém, de uma mera volta ao passado contra o conhecimento atual; não podemos ter nunca o entendimento do passado como tal; contudo, devemos considerar os elementos da tradição que estão sempre em jogo quando nos relacionamos e conhecemos. Não se trata de acabar com os pressupostos, pois eles não são elimináveis, mas sim iluminar a sua participação e torná-la produtiva. Para a hermenêutica, o significado de uma experiência liga-se à “tradição da interpretação” sobre a qual estamos assentados, assim como as “possibilidades futuras que se nos abrem”; tal tradição “é produto de relações, é o horizonte no interior do qual pensamos. [...] A autocompreensão não é uma consciência que flutua livremente [...]; é uma compreensão que já se situa na história e na tradição, e apenas pode compreender o passado alargando o seu horizonte” de modo a englobar aquilo que se apresenta.[3] É claro que ocorrem também os preconceitos negativos, que devem ser humanamente aceitos, porém confrontados – para ver se não nos aprisionam ou tornam nosso pensamento “ideologizado”.
À lembrança de M. Buber, Gadamer fala de três tipos de relação Eu-Tu, tentando explicar a força da consciência histórica que nos habita; e o que nos serve também para pensar a relação com o Outro e a ecoética.
Na primeira forma de relação, o Tu é um objeto dentro de um campo de conhecimento objetivo, e algo que tem um uso determinado para seus fins. As coisas, o Saber, “torna-se então um objeto separado de nós [...] Uma “objetividade” destas, orientada para o método, domina nas ciências naturais e também nas ciências sociais, exceto onde a fenomenologia se faz sentir”.[4]
Na segunda forma de experimentar e compreender o Tu, ele é visto dentro de uma “projeção reflexiva”, é encarado como uma pessoa, “mas Gadamer mostra que esta relação ‘pessoal’ pode ainda manter-se prisioneira do Eu, sendo de fato uma relação entre o Eu e um Tu reflexivamente construído”. É uma relação guiada pela consciência dominadora, partindo do interioridade do Eu (do Mesmo); aí, por conseguinte, “há sempre a possibilidade de que cada parceiro da relação possa vencer a atividade reflexiva do outro”.[5]
A terceira forma de relação “caracteriza-se por uma autêntica abertura ao Tu. É a relação que não projeta o significado a partir do eu mas que tem uma abertura que ‘permite’ que algo seja dito [...]”; aqui, nos posicionamos de modo que o outro tenha face, nos reclame. “A pessoa ‘que teve a experiência’ não só não tem um conhecimento meramente objetificado ‘como tem uma experiência’ não objetificável que a amadureceu e a fez aberta à tradição e ao passado”, ao Outro e à Natureza viva.[6] Aqui, sabe-se melhor lidar com a realidade; aprendeu-se o valor de lidar eticamente com as pessoas, na autenticidade e atitude de não-dominação (não-violência); indica sabedoria.
[...]
Nós pertencemos a uma cultura, a um mundo, a uma tradição, e também a uma série de interações com os processos e ambientes que chamamos de Natureza. Ou seja, nada escapa a isso; não é possível ocultar o que produzimos e descartamos, bem como a nossa visão de ser humano e de mundo (de relação), que se refletem na concretude do dia-a-dia.
[2] Cf. Palmer, p. 170.
[5] Ibid. “A alteridade do outro e o passado do passado apenas são conhecidos do mesmo modo que o Eu conhece o Tu – através da reflexão. Ao pretender reconhecer o outro em todo o seu condicionalismo, ao pretender ser objetivo, aquele que conhece pretende realmente dominar” (Ibid., p. 195).
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