Ecoética e conhecimento a partir de uma postura hermenêutica*
*(continuação do resumo do capítulo, do livro Correntes da Ética Ambiental de M. L. Pelizzoli).
Limites do paradigma holístico e espiritualizador
Limites do paradigma holístico e espiritualizador
Certamente, este é o século da Nova Física, que abala as bases do saber científico; reviravolta semelhante ocorre na Filosofia e nas ciências em geral. A redução da Natureza a elementos fundamentais compactos, materiais, últimos e manipuláveis isoladamente começa a ser questionada; isto em prol de uma visão dos fenômenos com uma dinâmica de relações mútuas e interdependentes. O mérito da linha que parte da teoria dos sistemas, do organicismo e de outras perspectivas holísticas semelhantes é mostrar que o universo material é uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados sem uma propriedade fundamental; “a consistência global das inter-relações determina a estrutura da rede toda”[1]. Não obstante, o cuidado com o deslize para sistemas evolutivos ainda objetificadores, biologicistas e de alguma forma determinísticos deve ser redobrado.
No nosso entendimento de holismo, aplicado à ecoética, não pode se tratar de reduzir as partes ao todo – totalização -, numa inversão simples, mas de priorizar a inter-relação (com contexto e história) e o equilíbrio dinâmico entre sistema e “alteridade”, ordem e desordem, antigo e novo, um modo dialético de ralação, e como contínua auscultação (dialogação) e respeito para com a(s) realidade(s) em suas várias abordagens. Como exemplo concreto podemos citar a agricultura ecológica ou regenerativa. Antes de mais, ela é um diálogo de homem com a terra, permeando cultura e comunidade. (...).
O caso dos organismos geneticamente modificados, como os transgênicos na agricultura e alimentação, é ainda um exemplo mais forte e mais grave. Os tecnocratas e megaempresários do ramo acusam os ambientalistas de serem “contra o progresso”, de terem uma visão arcaica, de alarme puritano; e ainda chegam a afirmar que os transgênicos vão ajudar a resolver o problema da fome no mundo! Na verdade, há uma série de falsidades e erros aí: primeiro é que a fome já poderia ter sido resolvida há muito, e isso sé ocorre com justiça social, distribuição de rendas e política (eco)ética para o campo e não com tecnologia elitista. Segundo, que pelos meios de aferição científica baseados no paradigma cartesiano, reducionista e não holístico não se poderá inferir nunca exatamente os males dos transgênicos, tais como as consequências futuras, os efeitos indiretos cumulativos nos organismos, a alteração do equilíbrio do ecossistema, da saúde humana e outros fatos imprevisíveis. Terceiro ponto, é que este modelo de manipulação de produtos agrotóxicos, insumos químicos e de organismos com modificação genética não leva em conta a questão social, a agricultura familiar, a manutenção das sementes e códigos genéticos programados pela própria Natureza durante milhões de anos, a policultura e permacultura, ou seja, uma visão menos capitalista e mais humana da produção.
Numa perspectiva hermenêutica, trata-se de recuperar práticas e saberes “enterrados” pela sociedade industrial-tecnológica moderna. (...)... o questionamento dos paradigmas convencionais não nos deixa sem chão, e a imprevisibilidade propalada (epistemológica, científica, econômica) não é anárquica. Certamente que, no contexto, não se trata de mero retorno ao passado. É neste sentido que a abordagem ecológica encaminha eminentemente uma reviravolta e um resgate contextual, histórico e que traz a experimentação e a observação de uma forma equilibrada, respeitando o que se constitui como “mundo da vida” e como sabedoria.
À luz da abordagem compreensivo-hermenêutica pode-se mostrar que, muias vezes, dentro da concepção holística e do ecologismo espiritualizado surgem problemas, no seguinte sentido: promulgação de um retorno mítico-primitivista e deificação da natureza, conjugados com o alarme da civilização da catástrofe irreversível, reforçando o narcisismo e inércia do meio social. Este último é um dos grandes males atuais. Ele reverte, visto a impossibilidade de enfrentar politicamente o Sistema, a artificialidade e a violência das estruturas modernas, reverte as energias do indivíduo para o cuidado de si, para o sobrevivencialismo. É o narcisismo patológico no seio do social, a minar toda ação política eficaz e toda ação socioecológica radical (que iria à raiz político-econômica e cultural, e dos valores). Trata-se de, frustradas as promessas do Eldorado, segurança e bem-estar no capitalismo avançado, evadir-se a um mundo das idéias idílicas ou espirituais desvinculadas dos problemas sociais. O propagado “reencontro consigo mesmo”, a “verdadeira natureza do eu”, “volta às origens”, ”volta a Deus”, sem dúvida, muitas vezes, entra nesta cilada.
Faz-se necessário agora um “caminho do meio” equilibrante. Os risco políticos de uma deificação da Natureza realmente se apresentam. Como afirma Lasch: “Reforçada por outros meios – meios de comunicação social – tal propaganda do desastre tem um efeito cumulativo quase exatamente oposto ao efeito [...] pretendido. A infiltração da retórica da crise e da sobrevivência na vida cotidiana despotencializa a ideia de crise e deixa-nos indiferentes a apelos fundamentados na asserção de que algum tipo de emergência exige nossa atenção”[2]. A “transferência das preocupações ambientais da esfera pública para a esfera privada da subjetividade narcísico-sobrevivencial é o mais maligno dos efeitos que uma educação ambiental poderia ter, se entendermos essa última como uma interferência na realidade política”[3]. É preciso levar a sério tal alerta. Contudo, não é preciso excluir daí a questão da subjetividade e da espiritualidade.
Em contrapartida à separação Sujeito-Objeto, a compreensão hermenêutica deve-se à inserção do homem no horizonte da história e da linguagem, que, por princípio, não podem ser dominados.[...] As perguntas abriram o espaço no qual a experiência pode revelar sentido; experiência esta que, em última instância, expõe o sujeito a si mesmo[5].
A hermenêutica implica que, antes de se obter uma explicação das coisas, que é a base do procedimento científico moderno, definindo-as como um objeto palpável, em nome do rigor lógico do “de-finir” objetivo, trate-se de compreendê-las, trate-se de fazer outra aproximação à realidade, tomada como algo diferente, mas que revela o saber constituído e as tradições. Implica, portanto, não um modo fraco do conhecer, mas uma abordagem que sabe que a penetração direta do “real”, do “objeto’, é sempre permeada de interpretações por parte do sujeito; e sabe que é necessário fazer vários rodeios, desvios e resgates de elementos que aparentemente não teriam importância central ou mesmo que passam ocultos, pois o “objeto” envolve uma rede viva. Isto é necessário porque os procedimentos cartesiano e baconiano tendem ao reducionismo; eles restringem elementos que não cabem nos limites da explicação acabada, da teoria e então da experimentação laboratorial – sob condições determinadas que obrigam a natureza a dobrar-se, como matéria inerte em geral.
Por aqui, vemos que nossa inteligência nunca tem um acesso direto às coisas, puro; e isso é uma questão relativa ao modo como conhecemos e formulamos a(s) “realidade(s)”, uma questão epistemológica, pela qual deve passar todo saber que não quer ser apenas dicotômico. O interpretar, apesar de fazer parte de nosso dia-a-dia, não é mero subjetivismo e intuicionismo, mas envolve um “fenômeno complexo e universal [...] voz que devemos ouvir e compreender [...] a compreensão é simultaneamente um fenômeno epistemológico e ontológico” – ou seja, diz da existência humana e de seu sentido que vão sendo construído no mundo. A compreensão “tem que se enraizar em modos de compreensão mais latos e primordiais que têm a ver com o nosso próprio ser-no-mundo [...] é um encontro histórico que apela para a experiência pessoal de quem está no mundo”[6].
O fato de que vivamos num mundo de linguagem, rico em modos de significar, e que o encontro com as diferenças traz consigo formas diversas de cultura e de viver, mostra o quanto esse fenômeno é primordial. “A linguagem molda a visão do homem e o seu pensamento – simultaneamente a concepção que ele tem de si e do mundo”. E essa linguagem revela nossa forma de relação com as coisas; é por isso que consideramos fundamental refletir sobre os (pré)conceitos e expressões que as pessoas utilizam, relativos à Natureza e ao Ambiente, Ética e Educação, Sujeito e Outro, e ver como eles se modificaram, o que exprimem originalmente, como podem ser mudados ou então resgatados, num trabalho com os discursos, com as práticas pedagógicas e com as teorias diversas. (continua)
[1] Capra (1988), p. 42.
[2] Lasch, 1986, apud Grun, p. 80.
[3] Grun, p. 80.
[4] Este tópico inspira-se em boa parte na obra Hermenêutica, de R. E. Palmer. Lembremos que “hermenêutica” vem do grego e significa “interpretar”. Traz, na origem, o sentido de: afirmar em voz alta, traduzir, transmutar uma mensagem cifrada; remonta ao deus-mensageiro Hermes, criador da linguagem e da escrita. Aponta assim para o processo de tomar algo compreensível, envolvendo sempre uma forma de linguagem aproximadora e não definitiva.
[5] Flickinger (1994), p. 405.
[6] Palmer, p. 21, grifo meu.
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