A Redescoberta de Aristóteles por Thomas Kuhn
O episódio narrado por Thomas Kuhn em The Road Since Structure (1996) representa, em si mesmo, uma experiência paradigmática. No verão de 1947, o jovem físico de Harvard acreditava estar diante do fracasso intelectual de Aristóteles ao ler sua Física. Tudo ali parecia primitivo, equivocado, infantil. Contudo, esse “erro de leitura” — o estranhamento inicial — foi o prenúncio da virada epistemológica que o conduziria à formulação de sua principal tese: a de que o conhecimento científico é historicamente situado e linguisticamente condicionado por um paradigma.
Na primeira leitura, Kuhn julgou Aristóteles a partir dos critérios da física newtoniana: movimento como deslocamento espacial, matéria como substância fundamental, leis universais como descrições da natureza objetiva. Aristóteles, sob esse prisma, não apenas errava, mas parecia carecer de qualquer rigor empírico. Porém, quando Kuhn “olha pela janela”, como ele próprio descreve, o momento de iluminação o leva a compreender algo radical: Aristóteles não estava errado — estava falando outra língua científica.
Essa revelação marcou o início da consciência kuhniana de que as ciências não progridem apenas por acréscimo de verdades, mas por substituição de mundos conceituais. A física aristotélica e a física newtoniana não são duas etapas de um mesmo discurso crescente — são, antes, visões de mundo incomensuráveis.
Aristóteles ao ser reabilitado temos o movimento como transformação ontológica. Ao compreender o significado de “movimento” em Aristóteles, Kuhn descobre que o filósofo grego não era um observador ingênuo, mas um pensador coerente dentro de sua própria ontologia.
Para Aristóteles, kinesis (movimento) significa qualquer mudança de estado do ser — seja no espaço, na qualidade, na quantidade ou na substância. A passagem da semente à árvore é tão movimento quanto o deslocamento de um corpo no espaço. Essa definição só parece “absurda” para quem adota, como Kuhn inicialmente fizera, o paradigma da física moderna, em que movimento é apenas variação de posição no tempo.
A física aristotélica, portanto, não busca leis quantitativas, mas descrições qualitativas do ser em processo. É uma física ontológica, não matemática. Quando Aristóteles fala em “matéria” (hylé), ele não se refere a partículas mensuráveis, mas ao substrato potencial que recebe formas. O real é compreendido como uma união entre potência e ato — algo que não pode sequer ser traduzido no vocabulário de Newton ou de Galileu sem que se perca o seu sentido original.
Assim, o “erro” de Aristóteles era apenas um erro de tradução paradigmática. Kuhn percebeu que a incompreensão nasce quando aplicamos os critérios de uma ciência para julgar outra.
A lição epistemológica: ver com os olhos de outro mundo. Da experiência de Kuhn com Aristóteles surge a semente do conceito de incomensurabilidade, que mais tarde se tornaria central em A Estrutura das Revoluções Científicas (1962).
Quando um paradigma muda, muda também a forma de ver o mundo. Não apenas as teorias mudam — os próprios fatos mudam. Como escreve Kuhn: “Depois de uma revolução científica, os cientistas vivem em um mundo diferente”. Aristóteles e Newton, portanto, não observam os mesmos fenômenos: o que para um é mudança de qualidade, para outro é deslocamento de massa.
A leitura kuhniana de Aristóteles torna-se, assim, um símbolo da dificuldade da compreensão intercultural e interepistêmica. Entender um pensador do passado exige mais do que traduzir suas palavras — exige reconstruir o seu horizonte de significação. Aristóteles não foi um homem do seu tempo, tinha a mente acima do horizonte e observava o fluxo além dele, não foi uma gota submersa no rio que é levada sem saber para onde.
Nesse sentido, Kuhn antecipa o diálogo entre a epistemologia e a hermenêutica: compreender o outro é compreender o seu mundo, fazer uma viagem intertemporal. O jovem físico percebeu que não basta dizer que Aristóteles “errou”; é preciso entender o sistema de inteligibilidade no qual o seu pensamento fazia sentido.
A transformação de Kuhn: do físico ao filósofo da ciência. Esse momento de epifania marca a conversão intelectual de Thomas Kuhn, o cientista que buscava explicar o progresso da física percebe que o próprio conceito de “progresso” é relativo a um paradigma. O episódio aristotélico revela a estrutura profunda de sua filosofia: a ciência não avança por acumulação linear, mas por revoluções que transformam as categorias do pensamento. E essa é a experiência da humanidade, fundamento da história da filosofia.
Ao perceber que o erro estava nele — e não em Aristóteles —, Kuhn inaugura uma nova forma de pensar a história da ciência: uma história não de verdades crescentes, mas de mudanças de visões do mundo. A ciência, nesse sentido, é uma sucessão de mundos incomensuráveis, cada qual com a sua lógica, a sua linguagem e a sua ontologia. O legado do encontro entre mundos.
O encontro imaginário entre Aristóteles e Kuhn — separados por mais de dois mil anos — ensina uma lição perene à filosofia da ciência: compreender é ver o mundo a partir de dentro de um paradigma, e não julgá-lo de fora. O “erro” aristotélico revelou-se um espelho do próprio erro moderno — o erro de crer que existe uma ciência absoluta, fora do tempo, capaz de julgar todas as outras.
A verdadeira genialidade de Kuhn foi perceber que a história da ciência é também uma história da percepção humana. E, de certo modo, Aristóteles o ensinou a ver isso.
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