“As mudanças estão chegando…”
Ontem assisti o filme “Um completo desconhecido”, que conta retalhos da vida e arte do artista Bob Dylan, e que me trouxe na tela pinceladas da criatividade diferenciada do artista, poeta e músico compositor de significativa importância para uma geração de jovens e amantes das mudanças, esses que conheceram e viveram as grandes transformações do prodigioso século XX.
Foi essa frase, “as mudanças estão chegando…”, simples e apocalíptica, que me atravessou como um raio em pleno Morumbi, São Paulo, 1989. Eu não era mais um jovem contestador, tampouco um daqueles que carregam cartazes na Avenida. Já estava trabalhando, imerso nas análises e relatórios para o Dieese, na implantação do sistema Arpan, que gerenciava o cadastro e financeiro de entidades sindicais. Uma estatística do mundo real.
Mas naquela noite — ah, naquela noite — fui colhido por outra fonte de estatística: a de que um homem com um violão pode mudar a rotação da alma de milhares de pessoas ao mesmo tempo.
Quem me levou foi uma colega de trabalho, Verônica, daquelas que falam de programação e política com paixão, e de música com reverência. “Vamos ver o Dylan?”, ela disse, como quem convida para ver um eclipse. Eu fui. Talvez por curiosidade, talvez por saudade de algo que eu ainda nem sabia que me faltava. Retomei a possibilidade de mudanças, a partir da minha própria mudança.
Bob Dylan estava lá. Não como uma lenda distante, mas como uma presença rascante, meio curvada, envolta em sombras e luzes amareladas. A voz? Áspera como o cascalho das estradas que ele tanto cantou. Mas cada palavra era um golpe certeiro. Cada acorde, um lembrete de que estávamos todos — mesmo os mais céticos — imersos num tempo que se desfazia e se refazia diante de nossos olhos. Me emocionou.
“As mudanças estão chegando…” — ele cantou, e o estádio inteiro pareceu suspirar junto. Porque em 1989, o mundo estava mesmo à beira de um novo fôlego. Berlim ainda dividida, a Guerra Fria resfriando-se aos poucos, o Brasil saindo de décadas de sombra. E lá estava Dylan, o homem que nunca quis ser porta-voz de nada, encarnando tudo o que não sabíamos dizer.
Naquela noite, vi mais que um show. Vi um poeta em carne, osso e acordes. Vi a palavra ganhar corpo e saltar do palco como profecia suave. Vi a música deixar de ser apenas um entretenimento e se tornar espelho, farol e sismo.
Parado diante da figura iluminada no palco, no criador de mensagens, escritor e músico, vi o artista diferente daquele dos anos 60-70, parecia cansado, sua voz estava dizendo mais algo sobre ele que o mundo presente, afinal havia passado por processos recentes bastante marcantes, com forte significado para a sua vida. De referência para uma juventude rebelde, inspirando e disparando mudanças, tinha passado alguns anos em um período de estado reflexivo, religioso, se afastando até certo ponto da relação de artista amado por milhões de fãs e cobrado por suas criações, preferiu recolher-se ao seu próprio mundo de crenças. Talvez o peso das mudanças, muitas que ocorreram no mundo, e as contribuições da sua arte tenham exigido demais de sua energia vital e tônus intelectual poético irretocável. Quase quebrou.
Mesmo depois que as luzes se apagaram, quando voltamos ao cotidiano de reuniões e relatórios, alguma coisa havia mudado. Não do lado de fora — o trânsito ainda era o mesmo, a inflação também. Mas por dentro, sim. Por dentro, as palavras dele continuavam ecoando: “the times they are a-changin’...”
E naquela noite, confesso, tive a estranha sensação de que o mundo começava a mudar ali — no Morumbi, entre solos sujos de guitarra, o choro da gaita, e versos que ainda ecoam dentro de mim.
Dylan cantou, o tempo continuava o mesmo, nada mudou ali, mas me surpreendi comigo mesmo, tinha mexido nas minhas emoções e na minha mente. Escutei a sua mensagem. Foi nesse momento que fiz uma guinada disruptiva em tudo que acreditava e defendia. O gatilho de minhas mudanças disparou novas escolhas, uma jornada de novos interesses, atitudes, que se abriram, e que nos anos seguintes me fez abandonar as regras do anacrônico “compromisso de classe”, de militante de uma só causa, da proximidade com a fidelidade ideológica de uma práxis de viés autoritário. E parti para critérios de aprendizado diferentes, iniciei uma profunda análise de vida, sobre a minha antiga percepção da realidade, direcionando-me para uma abertura aos princípios filosóficos clássicos e de valores reais com alicerces democráticos. Um ganho da maturidade, resultado da experiência que elimina erros da inocência ou ignorância dos fatos? As minhas descobertas quanto às más referências históricas, leituras revolucionárias, a formação crítica da desinformação, preferência por narrativas, não eram mais importantes, decisivas, e as influências na ação passaram a ser determinadas por pensamentos próprios, não copiados de preconceitos nem absorvidos de escolas de ideologias da violência e divisão da sociedade por uma educação motivada pela vingança, conflito permanente, ressentimentos, pelo ódio ao outro: assim são marxistas, leninistas, maoistas, trotskista ou a política velada existente na militância cultural do gramscismo; selos impressos como doutrinas nas mentes de jovens universitários do Brasil nas últimas longas cinco décadas.
Os critérios das mudanças são uma construção de escolhas, que estão relacionadas com a busca da sabedoria e percepção verdadeira da unidade do real, e precisa estar firmada sobre pilares éticos, transparência de caráter e empatia humana, em valores inerentes aos marcos civilizatórios. As mudanças podem ser desejadas, conquistas que são motivadas, chegam, pode demorar, às vezes para uma, dezenas de pessoas, milhares mergulhados no oceano digital de informações, mas chegam e quando chega… muda, mudamos, e o mundo muda junto.
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