por Luiz Gonzaga Belluzzo*
O indivíduo racional e maximizador da utilidade é a argamassa do pensamento social dominante. Nas versões eruditas ou nas traduções vulgares, a hipótese da racionalidade individual é um pressuposto metafísico da ideologia dominante, necessária para apoiar a “construção” do mercado como um servomecanismo capaz de conciliar os planos individuais e egoístas dos agentes.
Para esse paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação econômica é constituída mediante a agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários, tais como os que atavam Robinson Crusoé ao Sexta-Feira. Essa operação ideológica permite a oposição entre Estado e Mercado como instâncias antitéticas da vida social. Trata-se de uma operação de “limpeza ideológica” que pretende eliminar as condições em que se trava a luta social, conflito que nasce na “esfera das necessidades”, ou seja, no âmbito das relações de produção e da concorrência, inescapavelmente mediado na esfera política pela intervenção do Estado. Na visão liberal conservadora, Estado e Mercado deixam de ser instâncias da constituição do capitalismo como sistema histórico de relações sociais, políticas e econômicas e passam a representar alternativas abstratas de organização da sociedade. Desde o início dos anos 1980, sob a liderança do Ronald Reagan e Margareth Thatcher[2], foi desaçaimada a ofensiva global – ideológica e política – contra as práticas do Estado regulador e os direitos criados pelo Estado do Bem-Estar. A “ideologia economicista” que viria conquistar os corações e as mentes de todos estava comprometida com uma ideia fundamental: é preciso libertar as forças criativas da iniciativa privada e permitir a fluência mercantil, na medida do possível desimpedida das restrições impostas pela intervenção estatal.
Os liberais de todos os matizes sustentam que o Estado interventor criou uma clientela que, entre outras coisas indevidas, quer garantia de emprego, além de sombra e água fresca, tudo fornecido graciosamente pelo Estado munificente. Garantem os adversários do Estado Social que a insistência em políticas “irracionais e populistas” produziria menos crescimento e mais desemprego a longo prazo, ao contrário do que pretendem os defensores das iniciativas voltadas intencionalmente para contrabalançar os efeitos dos solavancos da economia. Em uma versão um pouco mais sofisticada, essa pérola poderia ser assim engastada nos adornos do livre-pensamento: está fadada ao fracasso qualquer proposta de intervenção, em nome da segurança coletiva, que esteja em desacordo com as hipóteses científicas da escolha racional do indivíduo “utilitarista”, cuja ação deve estar apenas limitada por restrições impostas pela escassez de recursos e pelo funcionamento dos mercados competitivos.
A recomendação para os mercados financeiros, por exemplo, é a desregulamentação e a eliminação das barreiras à entrada e saída de capital-dinheiro nos países, seja fracos ou fortes, de modo que a taxa de juro possa exprimir, sem distorções, a oferta e a demanda de “poupança” nos espaços integrados da finança mundial.
Para os mercados de bens, submeter as empresas à concorrência global, eliminando os resquícios do protecionismo ou quaisquer políticas deliberadas de fomento. E para os mercados de trabalho, a flexibilização e a remoção de cláusulas sociais, ineficientes e danosas para os trabalhadores.
Tais reformas devem ser levadas a cabo num ambiente macroeconômico em que a política fiscal esteja encaminhada para uma situação de equilíbrio intertemporal sustentável e a política monetária controlada por um banco central independente.
Essas condições macroeconômicas significam que as duas dimensões públicas das economias de mercado – a moeda e as finanças do Estado – devem ser administradas de forma a não perturbar o funcionamento das forças que sempre reconduzem a economia privada ao equilíbrio de longo prazo.
Mas escapou a esse ideário bem-comportado que os fenômenos centrais do capitalismo destravado de nosso tempo são o acirramento da concorrência entre as grandes empresas internacionais, a escalada da financeirização e as rápidas mudanças na geoeconomia mundial. As posições relativas de países, continentes e classes sociais sofrem, já há algum tempo, alterações tão radicais quanto perturbadoras. O economista Richard Freeman, da Universidade de Harvard, diz, em artigo recente, que a velha conversa sobre os benefícios do comércio – na situação em que os países avançados produzem bens de alta tecnologia com trabalho qualificado enquanto os menos desenvolvidos se dedicam aos setores de mão-de-obra não qualificada – “tornou-se obsoleta com a presença da China e da Índia”.
No anos 1990, Paul Krugman, o economista recém laureado com o Nobel, patrocinou uma cruzada ideológica contra os movimentos antiglobalização que protestavam pela perda dos bons empregos americanos para os trabalhadores produtivistas da Ásia. Em artigo recente sobre os efeitos da migração de empresas para a China, Krugman foi obrigado a reconsiderar seus pontos de vista. Os moradores de Flitch, no estado de Michigan, perderam o emprego na fábrica de autopeças fechada sob pressão da concorrência chinesa.
Indagado sobre o destino dos desempregados, o economista Gregory Mankiw respondeu candidamente: “As pessoas têm de se mover”. Afirmou isso depois de ter proclamado a necessidade de se ministrar um curso de economia no ensino médio para que o público em geral possa ter uma visão maia acurada da globalização. A internacionalização da economia é um fenômeno constitutivo do capitalismo, o que não significa que haja uma única maneira de lidarmos com os processos que a constituem. É fácil, hoje, confundir as limitações crescentes impostas ao Estado nação com a construção de um espaço de livre circulação dos indivíduos, promovido pelo movimento desembaraçado de mercadorias e capitais. Os entusiastas da globalização asseguram que a liberdade humana decorre do impulso natural do homem à troca, ao intercâmbio, à aproximação por meio do comércio etc. Adam Smith corretamente chamou a atenção para o caráter libertador da economia mercantil capitalista e para as suas potencialidades. Marx, herdeiro e defensor das postulações do iluminismo e da Revolução Francesa, indagou se as relações de produção e as forças produtivas do capitalismo permitiriam, de fato, a realização da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade.
O capitalismo pode se definido como a coexistência entre a enorme capacidade de criar, transformar e dominar a natureza, suscitando desejos, ambições e esperanças, e as limitações intrínsecas à sua capacidade de entregar o que prometeu. Não se trata de uma perversidade, mas do seu modo de funcionamento. As novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das grandes corporações. As fusões e aquisições suscitaram um maior controle dos mercados e promoveram campanhas contra os direitos sociais e econômicos, considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência. A abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistem com a tendência ao monopólio e, assim, restringem a soberania estatal e impedem que os cidadãos, no exercício da política democrática, tenham capacidade de decidir sobre a própria vida.
Na visão da psicanalista e historiadora francesa Elizabeth Roudinesco, o sujeito moderno, aquele “constante de sua liberdade, mas atormentado pelo sexo, pela morte, pela proibição”, é substituído pela concepção “mais psicológica de um indivíduo depressivo que foge de seu inconsciente e está preocupado em retirar de si a essência de todo o conflito”.
Os trabalhos de destruição da subjetividade moderna são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. As ciências humanas e sociais contemporâneas exprimem essas necessidades da sociedade capitalista, ou seja, desse sujeito abstrato, mediante duas visões: a universalidade naturalista, deduzida de disciplinas sérias como as neurociências ou a genética, e a diversidade do culturalismo empírico.
Para os primeiros, os males do mundo podem ser solucionados com doses maciças de Prozac ou de qualquer substância química capaz de aliviar o sofrimento dos “aparelhos biológicos”. Para os outros, os do culturalismo, o melhor é abandonar as dores que acompanham a constituição de um saber universal e eternamente inacabado, refugiando-se na completude do mundo mítico e mágico das verdades particulares e supostamente originárias. As duas visões do sujeito, aparentemente antitéticas, têm em comum o horror à diversidade concreta e irredutível do mundo da vida. Esse horror não pode ser aplacado pela sociabilidade do mercado que transforma o Outro num inimigo competidor.
Apoiados em convenções e constrangidos pela concorrência, essas subjetividades, os detentores da riqueza não podem escapar dos estados de euforia e apetite pelo risco que culminam na decepção, na crise e na desvalorização da riqueza. Os indivíduos racionais e calculadores são atropelados pela “busca desesperada da riqueza líquida”, a volúpia coletiva pela forma geral da riqueza que, em seu movimento maníaco, termina por destruir não só as suas formas particulares como também os particularismos dos indivíduos tomados pelo instinto de manada. Em todas as crises, o descontrole da manada só é aplacado com intervenções de suporte de liquidez que visavam e visam impedir que a busca da riqueza geral produza e generalização do empobrecimento causado pela “sagrada fome do ouro”. Auri Sacra Fames.
A intervenção salvadora dos bancos centrais, sem dúvida, corre o risco de fortalecer a crença de que os desatinos dos investidores estarão sempre a salvo de perdas pronunciadas e definitivas. As eventuais crises seriam momentâneas, apenas oportunidades em que se apresentariam pontos de compra convidativos para o início de uma nova temporada de alta generalizada.
Ainda assim, a experiência dos últimos anos, estimulada, entre outras causas, pela imprevidência do ex-presidente do banco central dos Estados Unidos, Alan Greenspan, não é suficiente para assegurar que a sucessão de episódios de euforia e depressão vá terminar sempre com a salvação dos protagonistas mais alavancados. Os ataques frenéticos mais explicitamente homicidas do capitalismo “financeirizado”. Nele, a pretensão dos bem sucedidos de acumular “tempo livre” sob a forma de capital fictício é, ao mesmo tempo, a “liberação” dos dependentes para as agruras do desemprego, da crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, da queda dos salários reais, da exclusão social.
Nesse ambiente darwinista são cada vez mais frequentes as arengas dos economistas, sacerdotes da religião dos mercados, contra as tentativas dos simples cidadãos e cidadãs de barrar a marcha do Moloch insaciável e ávido por expandir o seu poder. A grita dos sábios da finança é desferida conta os “desvios” da política, os surtos de “populismo”. Com esses slogans os ideólogos pretendem enquadrar a sociedade na camisa de força de uma suposta racionalidade econômica. Os mercados e seus agentes, diga-se, não estão certos nem errados. Estão simplesmente obrigados a tomar decisões que, em seu imaginário peculiar, são as apropriadas para proteger ou acrescentar o valor de sua riqueza. Na verdade eles são “pensados” por uma lógica que não controlam.
[1] Artigo publicado originalmente em Carta Capital 518, 22/10/2008, in SISTER, Sérgio (org.). O abc da crise. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. Na tradição bíblica, Moloch, é o nome de um deus dos amonitas, uma etnia de Canaã, ao qual se ofereciam recém-nascidos em sacrifício, jogando-os em uma fogueira.
[2] Ronald Reagan, presidente dos EUA de 1981 a 1989. Margaret Thatcher foi primeira-ministra da Grã-Bretanha de 1979 a 1990.
* Luiz Gonzaga Belluzzo é professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário nacional de política econômica (1985-1987) e secretário estadual de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990).
* Luiz Gonzaga Belluzzo é professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário nacional de política econômica (1985-1987) e secretário estadual de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990).
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