Criar cinco Embraer por ano*
Carta Maior – A crise financeira atual repõe a centralidade do trabalho, ou seja, devolve à esquerda o sujeito histórico que ela acreditava ter se esfarelado na história?
Chico de Oliveira – Na verdade, não concordo que essa seja uma crise financeira; tampouco acho que a sua origem esteja nos mercados financeiros centrais. A meu ver estamos diante de uma crise da globalização do capital. Todas as outras também foram crises globais, claro, devido à centralidade do capitalismo norte-americano. Mas essa crise não floresce exatamente num ponto geográfico. A rigor, se formos localizá-la, isso se daria na incorporação de mais-valia gerada na China e na Índia nos últimos vinte anos – novidade esta que influenciou o conjunto da globalização capitalista e redundou no atual colapso. Uma crise de realização do valor. O sintoma financeiro é sua manifestação mais evidente, mas não a sua essência.
CM – A essência seria o barateamento da mão-de-obra mundial?
Chico – A essência é a impossibilidade de realizar o valor gerado por ela. Ou seja, a mais-valia extraída da incorporação adicional de 800 milhões de novos operários baratos ao mercado de trabalho mundial. Isso produziu uma revolução na medida em que dobrou ou triplicou a oferta de mão-de-obra oferecida ao capitalismo, dilatando a fronteira da mais-valia, sem contudo propiciar uma expansão equivalente da capacidade de realizá-la.
CM – Por quê?
Chico – Porque o custo de reprodução de mão-de-obra nas sociedades onde se expande a nova fronteira da mais-valia, casos da China e Índia, principalmente, é muito baixo, ainda que a exploração esteja aliada à tecnologia de ponta. Estamos diante de uma crise clássica de realização do valor, amplificada; uma crise da globalização capitalista. O colapso das hipotecas nos Estados Unidos é a manifestação disso. De um lado, a produção na China e na Índia barateou o consumo norte-americano; propiciou também sobras de capital na periferia para financiar o Tesouro dos Estados Unidos. A China sozinha tem mais de 1 trilhão de dólares aplicados em papéis do governo Bush. De onde saiu esse dinheiro? Certamente não foi geração espontânea. É mais-valia extraída do operário chinês que não se realiza lá porque o custo de reprodução da mão-de-obra local é baixíssimo.
CM – A crise marca o esgotamento desse casamento China/Estados Unidos?
Chico – Ele funcionou bem durante algum tempo e continuará a girar porque é proveitoso aos dois lados. Ao mesmo tempo a engrenagem esfarela o mundo do trabalho por todos os lados do globo. Os assalariados norte-americanos simplesmente não tem fonte de renda para o padrão de consumo que ainda desfrutam; estão devolvendo casas e vão morar em garagens coletivas, dentro dos seus carros. O novo presidente Barack Obama teria de elevar brutalmente o poder aquisitivo dessa gente para contornar a crise. Fará isso? Honestamente, não sei dizer. O fato é que as implicações desse processo devem ser estudadas cuidadosamente: estamos diante de algo maior que a própria manifestação financeira da crise; Algo que persistirá para além dela e condicionará todos os passos da história neste século [2].
CM – O que o senhor está dizendo é que a tentativa de equacionar a crise a partir de sua manifestação financeira não basta?
Chico – É isso. A contribuição do economista francês François Chesnais à compreensão da dinâmica capitalista foi importante em um outro momento porque os marxistas sempre tiveram dificuldade em lidar com a questão financeira. Mas a interpretação chesniana não dá conta da crise atual. É uma crise de realização do valor.
CM – 1930 também foi uma crise de realização do valor e se resolveu...
Chico – Foi uma crise de realização do valor circunscrita ao território das economias centrais. Ainda assim exigiu um Roosevelt[3]; e uma guerra mundial para ser contornada. Esse paralelo apenas reafirma a gravidade do que temos diante de nós; e o que temos é uma crise da globalização à la 1929; o ferramental dos anos 1930 não dá conta disso.
Chico – As opções keynesianas valiam para uma economia fechada que podia conter a livre movimentação de capitais; hoje você precisaria de um dinheiro mundial para regular a parafernália financeira; socorrer déficits em conta corrente[5] e harmonizar desequilíbrios comerciais etc. O dólar não é isso; o dólar é uma moeda hegemônica, não é o dinheiro único que o instrumental keynesiano necessitaria para ter eficácia atualmente.
CM – Estamos diante de um longo processo de solavancos e limbo sem redenção...
Chico – Uma crise longa, dura, que exigirá reacomodação brutal de forças e vai impor mudanças em todo o mundo e no Brasil também. Mas não tenhamos ilusão: o capitalismo não chegou ao limite. Tampouco é o fim da associação China/Estados Unidos; de algum modo ela prosseguirá porque é proveitosa aos dois lados. Ademais, o capitalismo não se destrói, ele é superado, como o leitor atento de Marx bem sabe.
CM – Que espaço sobra para a periferia do sistema, como o Brasil, entre outros?
Chico – Estamos emparedados entre a concorrência chinesa e a desordem financeira no coração do capitalismo. A crise nos pega no meio do caminho e, naturalmente, não podemos regredir e adotar um padrão chinês de salários de miséria. Alguns até gostariam, mas não dá, felizmente não dá mais, e tentar seria uma calamidade social de proporções incalculáveis.
CM – Qual a opção à paralisia?
Chico – Não existiu Getúlio Vargas em 1930? A opção é uma soma de coragem política e investimento público pesado. Criar algo como cinco Embraer por ano em diferentes setores; promover uma superação do modelo ancorando-o agora em forças sociais da base da sociedade. Carlos Lessa sugeria isso no BNDES, no começo do governo Lula; não deixaram...
CM – Mas o Brasil de Vargas não existe mais...
Chico – Para Getúlio também não foi fácil, mas ele fez. E fez à revelia da plutocracia mais poderosa do país. Enfiou seu projeto goela abaixo da burguesia paulista e se firmou como estadista da nossa história. A elite paulista jamais admitirá, mas ele foi o grande estadista do desenvolvimento nacional.
CM – Haveria espaço para esse salto nas condições do capitalismo do século XXI?
Chico – A crise é tão grave que abre um período de suspensão do hegemon [6]; não sua derrocada, mas um hiato para lamber as próprias feridas. Isso tomará boa parte do tempo e das energias desse Obama, em relação ao qual, diga-se, não compartilho do otimismo de muita gente de esquerda. Mas o fato é que ele estará ocupado e com uma quantidade apreciável de problemas. Abre-se um espaço, portanto. Talvez até mais que isso: haveria uma potencial complementaridade de interesses se tivéssemos aqui um arranque de investimento público pesado. Isso de certa forma repercutiria positivamente no coração da economia norte-americana. Estamos diante de uma fresta histórica: uma suspensão do hegemon e um espaço de complementaridade para remar na mesma direção, o que poderá favorecer os dois lados a sair do buraco.
CM – Internamente a elite talvez não veja as coisas assim, como propriamente complementares, quando se associa crescimento a um arranque pesado de investimento público.
Chico – Nossa burguesia se transformou em gangue. Expoentes nativos são figura do calibre de um Daniel Dantas ou esse Eike Batista, que opera dos dois lados da fronteira boliviana; não se pode contar com protagonistas dessa qualidade para qualquer coisa, menos ainda para uma agenda de desenvolvimento. Não há saída por aí. Mas o Brasil também não teria saído da crise de 1930 se Vargas fosse esperar a mão estendida da plutocracia de São Paulo, por exemplo. Ele ocupou o espaço e fez.
CM – Logo...
Chico – Logo precisaria reinventar o PT; um PT com a ousadia de um Juscelino Kubitschek e de um Vargas; para fazer por baixo o que eles tentaram e fizeram por cima; um arranque do desenvolvimento induzido pela base social para mudar a economia e a sociedade. Cinco Embraer por ano e ponto final.
CM – E o PT faria isso?
Chico – Se depender de torcida para que aconteça, tem a minha. A lógica de acomodação de forças que a crise mundial impõe é de dimensões tão brutais, tão inauditas que exige da esquerda brasileira um desassombro igualmente inusitado.
CM – E os recursos pra esse ciclo de investimentos pesados?
Chico – O PT tem a base sindical e a base sindical tem o controle de todos os fundos de pensão.
CM – Os fundos de pensão aplicam apenas na dívida pública federal recursos da ordem de 155 bilhões de reais.
Chico – Então tem recursos para serem remanejados e repactuados com a base trabalhadora; dentro dela o PT desfruta igualmente de massa e representatividade.
CM – Essa é uma agenda para 2010?
Chico – É uma questão delicada para ser tratada num debate aberto; sem oficialismos de uns nem preconceitos de outros. A história brasileira repete um impasse do desenvolvimento que não pode ser respondido com uma farsa porque seu resultado seria uma tragédia. Dessa vez o que se vislumbra como possível, repito, é fazer por baixo, com bases sociais existentes, e organizações disponíveis, aquilo que nos anos 1930 e nos anos 1950 se fez por cima; destravar o desenvolvimento e expandir o mercado interno. É preciso tratar isso com cuidado, insisto, sem oficialismos do PT, nem o sectarismo do PSOL e do PSTU.
CM – A candidatura de Dilma Roussef pode oferecer a amarração a esse esforço?
Chico – Honestamente não conheço a ministra Dilma, exceto pelo que leio da má-vontade explícita da mídia em relação a ela. Torço para que seja aquilo que amigos petistas dizem que ela é. Ou então, que seja alguém como o José Sérgio Gabrielli, o Presidente da Petrobrás, que certamente também sabe o que está em jogo e quais são as variáveis para sair da crise. Trata-se de articular uma coalizão de forças dentro da qual o PT seria o operador, porque é quem tem massa e liderança eleitoral; os grupos à esquerda teriam seu papel de ponta-de-lança. O fundamental é ter um debate com muita abertura e sem preconceitos.
CM – Se a crise se agravar há risco de a oposição ganhar terreno e viabilizar uma vitória de Serra?
Chico – Serra, antes que um personagem político, é um caso psiquiátrico. Qual é o seu projeto afinal? É a obsessão pessoal e doentia pelo poder. Diante de uma crise da proporção que temos pela frente, porém, se você não avançar será soterrado por manifestações mórbidas. A pá de cal viria na forma de uma vitória tucana em 2010; aí, sim, estaríamos todos fritos. Eles ficariam aí por mais dez anos.
*Extraído do livro O abc da crise, organizado por Sérgio Sister, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2009.
[1] Francisco de Oliveira é sociólogo e fundador do Partido de Trabalhadores (PT) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), e coordenador-executivo do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP. Esta entrevista foi publicada no site Carta Maior no dia 6 de janeiro de 2009 com a chamada “Vargas redefiniu o país na crise de 30; a chance é que o PT faça o mesmo na primeira grande crise da globalização”.
[2] Carta Maior levantou alguns dados que reforçam as preocupações de Chico de Oliveira: a incorporação ao mercado capitalista a produção chinesa, indiana e de países da antiga União Soviética colocou trabalhadores de todo mundo em concorrência internacional direta pela primeira vez na história; trabalhadores ocidentais tornaram-se minoria num mercado mundial que ganhou 1,2 bilhão de operários adicionais nos últimos 30 anos; 350 milhões de trabalhadores treinados, e mais caros, do Ocidente, responsáveis pela maior parcela da população global até recentemente, estão sendo desalojados de empregos e salários; das 3 bilhões de pessoas ativas no mercado global hoje, metade ganha menos de US$ 3 por dia. A China, a nova oficina do mundo, tem um custo/hora do trabalho de US$ 0,60 contra média de US$ 30/h na Alemanha, US$ 21/h nos Estados Unidos e cerca de US$ 4,50/h no Brasil. Resultado: dados compilados pela Comissão Européia revelam que a parcela de riqueza destinada atualmente aos salários é a mais baixa desde 1960 (o primeiro ano com dados conhecidos). Em contrapartida, a riqueza abocanhada pelos detentores do capital financeiro vinha batendo recordes seguidos até o colapso atual. A produtividade ao mesmo tempo não para de crescer – desde 2001, cresceu 15% nos Estados Unidos e saltou em média 8% a 10% ao ano na China. Entre 1990 e 2004, a participação dos produtos chineses no total de bens importados pela América Latina cresceu de 0,7% para 7,8%. No mesmo período, a fatia dos produtos brasileiros na região subiu de 5,3% para 6,5%.
[3] Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos entre 1933 e 1945.
[4] John Maynard Keynes (1883-1946), economista britânico, defendeu o papel regulatório do Estado na economia, por meio de medidas de políticas monetária e fiscal, a fim de mitigar os efeitos das crises econômicas.
[5] Conta corrente é o balanço total de moedas fortes (como o dólar e euro) que entram e saem de um país.
[6] Hegemonia de uma potência que pode ditar as políticas de todas as outras potências, com certo grau de consenso, capaz de derrotar qualquer outro poder.
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