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segunda-feira, fevereiro 14, 2011

a matriz tecnológica não foi pensada para se relacionar com a natureza

‘Em nome da proteção à Amazônia, se ofereceu o Cerrado à devastação’*

Após a aprovação de modificações no Código Florestal, biomas como o Cerrado e a Caatinga, além da Amazônia, ficaram ainda mais ameaçados. Nesta entrevista, o geógrafo e professor da Universidade Federal Fluminense Carlos Walter Porto-Gonçalves explica que o agronegócio não é o único modelo possível para a agricultura. Para Porto-Gonçalves, muito mais importante do que discutir um código de florestas é pensar em um código de biodiversidade, que proponha a convivência fraterna os brasileiros e a rica natureza do país.
Para começarmos, quero te pedir uma análise sobre a política que o Brasil tem para o meio ambiente e o modelo de produção que vigora atualmente. Estes dois modelos são compatíveis?
Eu costumo chamar atenção que, se tomarmos como referência os últimos 30 ou 40 anos, é exatamente neste período que nós temos o debate sobre a problemática ambiental. E no mesmo período temos, paradoxalmente, o processo mais intenso de devastação que a humanidade já presenciou. Nunca se devastou tanto o meio ambiente, quanto mais se falou em salvá-lo. O Brasil neste caso é emblemático. Por exemplo, no início da década de 60, temos o início da construção de Brasília e aí se abre um conjunto de estradas a partir do Planalto central para ligar todo o país a Brasília, então, há a abertura dos cerrados à exploração. E ao mesmo tempo, com a rodovia Belém-Brasília, que é de 1962, há o avanço, sobretudo, da pecuária sobre a Amazônia. Então, se tomarmos como referência o que significaram para a Amazônia e o Cerrado estes últimos 30 ou 40 anos, já temos uma ideia do profundo processo devastador pelo qual o país passou neste período. E isso exige fatalmente que todos aqueles que estão preocupados com a questão ambiental revejam suas ações, porque a consciência ecológica não tem significado um passo em direção ao compromisso com a superação do problema ecológico. É como se a consciência fosse insuficiente, porque não está se traduzindo em práticas que apontem para uma sociedade mais sustentável, embora o que mais se fale hoje em dia seja exatamente sobre sustentabilidade, mas sem que se discuta quais são as razões para a insustentabilidade. Nos últimos 40 anos nós tivemos um avanço tecnológico no mundo que permitiu o aumento geral da produtividade em 30% em relação ao que se tinha antes, mas na verdade há o aumento do consumo de recursos naturais em 50%. Hoje há informações de que já temos um consumo anual de recursos naturais numa proporção que ultrapassa 30% da capacidade natural que o planeta tem de produzir biomassa anualmente. Estamos sacando em uma conta que não tem fundo. A questão do aquecimento global, do efeito estufa, é fruto do êxito do sistema e não de uma falha do sistema. A própria matriz tecnológica na qual vivemos não foi pensada para se relacionar com o planeta e com a natureza e isso é grave, porque se fosse a falha do sistema, consertaríamos o sistema, mas é o êxito, e precisamos avançar para além dele.
E como o senhor analisa a conjuntura atual para este avanço?
Estamos vivendo um momento extremamente difícil, sobretudo nestes últimos 40 anos. Eu me lembro do Lula em São Bernardo do Campo convocando aquelas assembléias em Vila Euclides com 80 mil operários. Hoje em dia, se você convocar todos os operários daquelas fábricas são muito menos que 80 mil. Além disso, houve o deslocamento de fábricas para outras regiões e com isso tirou-se muito do poder que a própria classe trabalhadora tinha de contestar o capital, até pela sua concentração espacial. Essa reorganização do espaço geográfico mudou a correlação de forças políticas entre o capital e o trabalho a favor do primeiro. E, ao mesmo tempo, há meios poderosíssimos de comunicação conformando as subjetividades. Hoje vemos a crise dos partidos políticos em geral que, de certa forma, estão sendo substituídos pela mídia, que praticamente hoje são os partidos políticos de fato. Na Venezuela, na Bolívia, no Equador, países que de certa forma tem governos que se colocam de alguma maneira, mesmo que com ambigüidades, contra o neoliberalismo, quando se liga a televisão você vê com muita clareza aquilo que no Brasil não aparece de forma tão clara, embora se faça exatamente a mesma coisa. Um autor chamado Félix Guattari costumava dizer que são máquinas de fabricação da subjetividade e têm um poder fantástico. Obviamente que não são unidirecionais, as pessoas não são passivas diante da mídia, mas a mídia tem um poder de pautar a vida cotidiana, de ocupar as casas das pessoas. E estamos vivendo esse momento inclusive de falta de alternativa e de um sistema que ao mesmo tempo está moribundo.
No modelo de produção agrícola hoje existem dois modelos em disputa, o do agronegócio e o da agricultura familiar. O senhor pode caracterizar estes modelos e  dizer que implicações têm a utilização de cada um?
O modelo do agronegócio é o dos grandes latifúndios empresariais, de monocultivos de exportação, altamente energívoros, aquívoros, com perdas de solo, contaminação das águas, além de uma poluição invisível, que é uma poluição genética. Tudo isso tem a ver com o mundo do agronegócio, que sabemos que no fundo é capaz de produzir muitos grãos, mas o faz com tamanha concentração de poder, sobretudo poder sobre a terra, que ao mesmo tempo em que produz muitos grãos também produz muitos trabalhadores sem terra. Os trabalhadores sem terra são um produto natural do agronegócio. E o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é uma tentativa de organização de um movimento social que politicamente procura se reapropriar da terra, e no escopo desses movimentos de resistência contra esse modelo tem surgido todo um modelo de agricultura familiar de base camponesa. Esse modelo tem na agroecologia e nas experiências da cultura tradicional camponesa os seus dois grandes pilares. E tende para a policultura, a diversidade de produção, voltado muito mais para o mercado local e regional, ao passo que o outro modelo está operando sempre em termos de mercados globais. Isso configura um debate interessante que está sendo colocado no Brasil, e de que infelizmente a sociedade brasileira tem ficado privada pela mídia do acesso ao contraditório. Até porque quem geralmente financia os jornais nacionais no horário nobre da televisão não é a agricultura familiar nem camponesa, geralmente são as grandes corporações aliadas do agronegócio. Aliás, no site da ABAG – Associação Brasileira do Agribusiness – constam como parceiros dos agronegociantes o Grupo O Estado de São Paulo e Globo de Comunicação, dois dos mais poderosos grupos empresariais ligados aos negócios de mídia. Só isso explica por que num caso como o que envolveu a empresa Cutrale o invasor de terras apareça como vítima e o movimento social que derrubava os monocultivos de laranja para exportação para plantar alimentos e denunciava a invasão de terras aparecesse na televisão como criminoso.
Como é que o senhor avalia a aprovação deste projeto de lei que modifica o Código Florestal?
Falar em código florestal hoje é um retrocesso. Por que não um código de biodiversidade? As oligarquias latifundiárias ligadas ao Cerrado estão muito preocupadas em tirar o Mato Grosso e o Tocantins da Amazônia. Com esses estados não sendo mais compreendidos como áreas de floresta, eles ficariam livres para explorar o Cerrado. É preciso ver o que está por trás da discussão deste código florestal. É interessantíssimo no Brasil como o velho consegue aparecer como novo. No século XVI, o que mais se exportava no mundo era o açúcar. E, ao contrário do que nos ensinaram nas escolas, o açúcar não é matéria prima. A cana de açúcar, sim, é matéria prima, mas o Brasil não exportava cana de açúcar, exportava o açúcar. À época o Brasil, Cuba e o Haiti eram os maiores produtores mundiais de produtos manufaturados com grandes latifúndios modernos empresariais de exportação – plantation. E continuamos a ter rigorosamente a mesma coisa hoje, com a tecnologia de ponta de nossa época, ou seja, com tratores e com computadores que são tão modernos hoje como o eram os engenhos de açúcar àquela época. Então, temos hoje uma pressão para alterar o código de floresta, que eu insisto: é um retrocesso. Porque o Cerrado é uma região extremamente importante, se você olhar o mapa do Brasil você vai ver que as grandes bacias hidrográficas brasileiras têm as suas grandes fontes no Cerrado brasileiro. Quem melhor entendeu isso foi talvez o maior escritor brasileiro de todos os tempos, Guimarães Rosa. Ele dizia que as chapadas são verdadeiras caixas d’água, onde nascem vários rios. Ele era um homem inteligente, deu à sua mais brilhante obra o título Grande Sertão: Veredas – o grande sertão são aquelas chapadas enormes, e as veredas são os fundos dos vales onde vivem os camponeses. Ele conseguiu mergulhar naquela cultura com uma profundidade tal que conseguiu fazer com que ela fosse compreendida em todos os lugares do mundo.
O Código florestal, por ter inclusive essa denominação, acaba escondendo essa falta de atenção com os outros biomas, é isso?
Na verdade acaba sendo uma maneira indireta de você dizer lá fora que você está cuidando das florestas no Brasil. A questão da floresta, em certo sentido, é um dos pontos importantes do debate ambiental global. Mas esse é um dos lados do problema, o outro lado é a erosão genética da biodiversidade que se dá a partir do monocultivo. Esse lado eles não querem falar. Por isso que eles querem discutir o código de floresta e não o código de biodiversidade. De certa forma, em nome da proteção à Amazônia, se ofereceu o Cerrado à devastação e, com isso, nós estamos tendo problemas gravíssimos.
A partir da discussão desse projeto de lei os movimentos têm defendido a manutenção do código florestal de 1965. Qual a sua avaliação sobre essa defesa?
Tem que discutir, mas não é essa a transformação que se quer. Obviamente, se temos um código florestal de 1965, significa dizer que ele não foi pensado nesse novo quadro de debates contemporâneos, então, obviamente, deveria estar sendo discutido. Mas como incorporar a biodiversidade como um valor efetivo para a sociedade? Como fazer uma sociedade se desenvolvendo com a natureza e não contra a natureza? O código está sendo modificado para se ampliar as áreas de devastação, então, lamentavelmente, a defesa do código já mostra a posição que os movimentos sociais estão hoje no Brasil – numa posição defensiva. Eles [os movimentos] não estão sendo capazes de ser propositivos, porque a hegemonia dos setores que ganham dinheiro e acham que o crescimento ilimitado é a verdadeira solução da humanidade, está tão poderosa que consegue propor nessa altura do campeonato essa mudança do código florestal. O Equador é o primeiro país do mundo onde a natureza entra na Constituição como portadora de direitos, porque lá a força dos movimentos sociais conseguiu pautar isso. Em abril, tivemos em Cochabamba, na Bolívia, 35 mil pessoas de 142 países na Primeira Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas para discutir não o efeito estufa, o aquecimento global, mas quais são as causas disso. Mas quem ouviu falar pela mídia brasileira que 35 mil pessoas, entre 19 e 22 de abril, se reuniram em Cochabamba para se discutir uma alternativa ao que havia sido discutido lá em Copenhagen? A mídia brasileira não divulgou. Eu estive lá e fiquei maravilhado com a qualidade do debate e com as questões que foram levantadas, inclusive, a proposta de uma Declaração Universal dos Direitos da Madre Terra que deverá abrir espaço para criação de um Tribunal Mundial de Justiça Ambiental que puna os crimes contra a natureza. Está sendo encaminhado um Referendum Mundial sobre o aquecimento global e creio que essa questão se torna um tema comum a todos os movimentos sociais que lutam pela reapropriação social da natureza. Essa é a questão de fundo: afinal, o capitalismo expulsa os camponeses e os povos originários da terra e os transforma em dependentes do salário e do dinheiro para viver, assim como usa a terra para fazer negócio. Trata-se de nos reapropriarmos socialmente da natureza e tecermos novos horizontes de sentido para a vida. Eis o espírito de Cochabamba.
(*) Entrevista com Carlos Walter Porto-Gonçalves realizada por Raquel Júnia
Entrevista da Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), publicada pelo EcoDebate, 14/02/2011

sábado, janeiro 29, 2011

“tragédia dos bens comuns”

O cuidado com os bens comuns
Assistimos, dia após dia, com uma velocidade e uma intensidade inimagináveis há uma década, à “tragédia dos bens comuns”: um empobrecimento contínuo e irremediável de recursos naturais, de bens e valores que compõem a biodiversidade natural, social e cultural do planeta. Essa é também uma das manifestações da crise da qual não conseguimos ver o fim, não tanto pelas tendências flutuantes das bolsas de valores ou pela lentidão da “reativação econômica”, mas sim porque não há sinais tangíveis de uma inversão de orientação na governabilidade mundial da economia. O artigo é o documento do encontro Terra Futura, uma importante iniciativa da sociedade civil italiana.
Terra Futura é uma importante iniciativa da sociedade civil italiana dedicada a debater questões globais. Todos os anos, mais de 70 mil pessoas visitam suas exposições e participam de seus debates. Este ano, o encontro que será realizado em Florença no mês de maio, terá como tema central os bens comuns. Apresentamos a seguir o documento conceitual do encontro que ainda está recebendo sugestões e sendo debatido.
“O que é comum à maioria dos indivíduos recebe o mínimo cuidado. Cada um pensa especialmente em si mesmo e quase nada no interesse comum”. 
Aristóteles, Política
Assistimos, dia após dia, com uma velocidade e uma intensidade inimagináveis há uma década, à “tragédia dos bens comuns” como a definiu Garret Hardin, no distante 1968: um empobrecimento contínuo e irremediável de recursos naturais, de bens e valores que compõem a inestimável biodiversidade natural, social e cultural do planeta; o aprofundamento de uma tendência ao consumo ilimitado destes bens que por sua natureza constituem um patrimônio inalcançável para alguns.
Essa é também uma das manifestações da crise da qual não conseguimos ver o fim, não tanto pelas tendências flutuantes da bolsa ou pela lentidão da “reativação econômica”, mas sim porque não há sinais tangíveis de uma inversão de orientação na governabilidade mundial da economia. Esta difícil atingir a percepção do limite dos recursos naturais e dos bens comuns que impulsione a construção de um terceiro e mais sustentável caminho, um caminho alternativo á privatização ou ao consumo irresponsável. Por isso, em meio à crise, os governos dos países que integram o G20 introduziram no sistema financeiro 13,6 bilhões de dólares sem condicionar a liberação desses recursos a mudanças estruturais nem destiná-los a investimentos para o desenvolvimento ou a redução dos desequilíbrios sociais. Foram recursos mobilizados rapidamente, apesar de ter sido declarado impossível, algum tempo antes, mobilizar um montante 20 a 30 vezes inferior, necessário para alcançar os Objetivos do Milênio.
O desenvolvimento insustentável
É a demonstração de um modelo de desenvolvimento que é insustentável não só porque não leva em conta que os recursos naturais são limitados, mas porque, acima de tudo, é desigual, fraco com os fortes e injusto com os fracos, insustentável de um ponto de vista social. O informe da Caritas, que a cada ano chama a atenção para a questão da exclusão social, destaca a relação direta da crise com o aumento da pobreza na Itália: 560 mil pessoais a mais, em relação a 2009, cruzaram a linha da pobreza em 2010. Incluem-se aí tanto desempregados como empregados, pessoas economicamente frágeis, que vivem em famílias numerosas com baixos níveis de educação, empobrecidas até se tornarem “sem teto”. Ao todo, são mais de 8 milhões de italianos.
O coração palpitante da crise que nos afeta há alguns anos é ao mesmo tempo social e político: constitui a demonstração do fracasso de um modelo de distribuição da riqueza em benefício dos ricos do planeta e de uma política que elevou à condição de paradigma a ideia de que a intervenção do Estado é sempre negativa para o bem estar das pessoas, que o gasto público é um desperdício e que não existem responsabilidades coletivas porque a “sociedade não existe”, como dizia Margaret Thatcher. E é uma crise que, justamente por seu caráter social e político, afeta em particular a Europa. De fato, o modelo social e político de bem estar renano ou europeu é o que sofreu as maiores deslegitimações pela financeiração da economia e pelas chamadas “reaganomics”, as políticas econômicas dos EUA durante a presidência de Ronald Reagan. Mas, ao mesmo tempo, a transformação da crise financeira em crise das finanças públicas, o crescimento da dívida dos Estados e o aumento do desemprego demonstram que o atual modelo europeu não assegurou estabilidade a vários países de seu entorno.
A crise da Europa Social
Tudo isso contribuiu para enfraquecer, até sua desaparição, o projeto político europeu, evidenciando a crise que a Europa está atravessando, uma crise de ideia de civilização, de modelo de desenvolvimento, de projeto de futuro. Por isso, hoje em dia vemos como única saída da crise a reconversão ecológica e social do desenvolvimento, como novo paradigma: um projeto político que tenha seu fundamento em uma nova centralidade dos bens comuns, retomando a ideia de um possível projeto comum da Europa, sobre novos fundamentos culturais. Apesar de as instituições e os governos europeus parecerem incapazes ou desinteressados em empreender este desafio, existe também outra Europa, dos cidadãos e das organizações sociais, que resistem à banalidade da tragédia dos bens comuns, que constroem propostas concretas e projetos para um desenvolvimento sustentável e justo e que não se resignam a aceitar as leis de um modelo de desenvolvimento fracassado que destrói o futuro de todos. 
O descuido e a indiferença em relação a tudo que é de interesse geral e de necessidade comum e, ao mesmo tempo, a obsessão para a exploração econômica destes bens, está mostrando suas contradições internas e demonstrando não ser confiável.
Uma mudança radical de direção
Em 2010, assistimos a um número impressionante de eventos extremos relacionados com um modelo de desenvolvimento destruidor dos bens comuns e com seu uso desequilibrado e irresponsável. Estes eventos nos sugerem que é urgente ter outro olhar, uma mudança radical de rota na forma de utilizar esses recursos. O desastre ecológico causado pelo acidente petrolífero da BP no Golfo do México mostrou a impotência inclusive dos EUA para prevenir o desastre e avaliar suas reais consequências. Os incêndios dos bosques russos; as mudanças climáticas produzidas pelo deslocamento de 260 quilômetros quadrados do maior iceberg do mundo na Groenlândia; temperaturas inéditas como os 37,2° na Finlândia ou os 54° no Paquistão. 

Mas 2010 também foi o ano em que, segundo avaliação da Global Footprint Network, cruzamos a fronteira crítica para além da qual o consumo global dos recursos naturais superou a taxa de regeneração dos mesmos por parte da natureza. Apesar de que há décadas a comunidade científica e o movimento ecológico venham assinalando o risco de superação desse ponto, não soubemos parar, moderar nosso consumo, estabelecer um limite, e fizemos a coisa mais irresponsável que poderíamos fazer: decidimos gastar as reservas de recursos de nossos netos, nos demos o direito de comer o futuro.
Para além do binômio público/privado
Portanto, os bens comuns são o centro de um conflito em torno do conceito de desenvolvimento, em torno do conceito de futuro do planeta, conflito que não pode ser resolvido em um debate entre propriedade pública e propriedade privada. É preciso empreender uma profunda reflexão política e cultural, uma coerente e contínua ação política para sua proteção, um consenso generalizado sobre a transformação da “tragédia” em “possibilidade”.
E não estamos falando só de recursos naturais que permitem a vida neste planeta – água, ar, solo, plantas, espécies animais – e que sofrem um manejo irresponsável diário, condenados a garantir níveis de vida insustentáveis para o ecossistema e injustos em escala global. Estamos nos referindo também a bens imateriais que, como os recursos naturais, são necessários para certa qualidade de vida e que, por serem de uso coletivo, têm um alto valor. Esses bens imateriais estão na base desses valores que constituem a essência da felicidade individual e coletiva das comunidades: a equidade social, o trabalho, a saúde, o pluralismo cultural, a segurança, a informação, o conhecimento, o espaço público para as religiões, o laicismo, o reconhecimento ativo dos direitos civis e sociais e a própria democracia.
A democracia dos bens comuns
O tema dos bens comuns renova uma questão fundamental da democracia, porque trata da igualdade de acesso aos bens primários. Igualdade entendida não só como direito universal a dispor dos bens comuns em quantidade suficiente para sobreviver, mas também como superação de lacunas – cada vez mais amplas e insustentáveis – causadas pelas diferentes disponibilidades econômicas, as quais afetam o acesso aos alimentos, ao conhecimento, aos serviços de saúde, a um trabalho digno.
Como a nossa (italiana) Constituição já estabeleceu de maneira iluminada (art. 3), igualdade, liberdade e dignidade constituem em sua unidade o novo núcleo da democracia, à luz dos problemas que a questão dos bens comuns propõe na era da globalização. A própria organização da produção, encabeçada pelas grandes empresas transnacionais, nos coloca diante de novos problemas relacionados com a democracia: essas empresas decidem como utilizar os recursos da terra, decidem onde, como e o quê produzir, determinando o destino de trabalhadores e consumidores, sem alguma forma real de controle ou regulação por parte das instituições estatais nem de democracia interna, e com disponibilidade de um volume de negócios superior aos PIBS de muitos países. Neste contexto só vale a liberdade absoluta das empresas, que aniquila totalmente as tentativas feitas por parte da Constituição para limitá-la com o fim de garantir a utilidade social (art. 41). Hoje em dia, as empresas se ocupam mais do setor financeiro que da produção, seus deslocamentos determinam o bem estar dos trabalhadores e decidem quem produz e quem consome no mundo. É preciso repensar a governabilidade dessas empresas e o papel desempenhado pelos diferentes setores sociais nas decisões sobre o destino dos bens comuns.
Para uma titularidade generalizada
Os bens comuns, tanto os naturais como os que se referem às relações entre os indivíduos têm que ser isentos da lógica do lucro. O lucro produz, em curto tempo, uma injusta distribuição de renda (ou seja, uma discriminação entre iguais) e também uma exploração intensiva e potencialmente ilimitada dos bens. Isso é incompatível com a própria natureza dos bens comuns, caracterizados por ter a “titularidade generalizada”: todos podem ter acesso a eles, mas ninguém pode possuí-los de forma exclusiva. No entanto, o direito de acesso tem que ser regulado para garantir o acesso das gerações futuras também. Deste modo o enfoque intergeneracional se enlaça com o tema político dos direitos de cidadania. Neste sentido, a ONU aprovou, na sessão n° 108 (julho de 2010), a resolução sobre o direito humano à água e à saúde.
Nela se recorda que 884 milhões de pessoas não têm acesso à água potável e 1,5 milhão de crianças menores de 5 anos morrem a cada ano por causa de doenças provocadas pela carência de água potável. Trata-se de uma resolução muito importante, que retoma o trabalho do Conselho para os Direitos Humanos (UNHRC), o qual pede às organizações internacionais a destinação de recursos financeiros para os países em desenvolvimento com o objetivo de assegurar a todos o acesso à água limpa e potável.
Os bens comuns colocam, portanto, de maneira concreta, a questão da democracia – igualmente frágil, escassa e ameaçada – e dos direitos de todos: esses bens comuns devem ser acessíveis a todos – por serem direitos individuais de cada pessoa do planeta – e sua utilização tem que ser regulada e limitada para que não se esgotem.
É o sinal forte e claro de que já não é possível unir cada aspecto de nossa vida (até a própria fonte da vida) com a dimensão econômica das leis do mercado. Estamos assistindo à decadência do paradigma do mercado como mecanismo eficiente, justo e capaz de autoregulação. Ao contrário, levou à aceleração dos processos de globalização nos últimos cinquenta anos. 
Primeiro: defender o interesse público
É exatamente este o dilema dos bens comuns: como estabelecer e tornar efetivas as normas para seu uso, normas que tenham seu fundamento em novas formas de racionalidade, regras sociais e de reciprocidade. A mentalidade dominante mostra escassa eficácia frente à “tragédia dos bens comuns”, como demonstrou claramente o desastre do poço petrolífero da BP no Golfo do México que causou graves danos ao ecossistema e à saúde. Neste caso, o presidente Obama, sob muita pressão, conseguiu que a BP criasse um fundo de 20 bilhões de dólares para compensar os danos causados. Uma solução extrajudicial que, talvez, pode mostrar o caminho para a atuação do princípio (já obsoleto no debate público) de “quem contamina paga” em outros casos igualmente significativos: Bhopal e os 2.300 mortos causados pelo acidente químico da Union Carbide (1984); o lixo cheio de resíduos petrolíferos da Texaco na selva do Equador (1964-1990); os danos ambientais causados pelas extrações petrolíferas da Shell, da Exxon, e da Eni no delta do Niger. Que direito internacional pode ser usado para defender efetivamente os bens comuns dos interesses privados? O problema consiste em que a típica sanção reparadora por danos causados não vale no caso dos bens comuns porque os recursos naturais destruídos levam um longo tempo para se recuperar, período no qual a população sofre uma drástica limitação em sua utilização. 
Por estas razões, após 20 anos de referendum, continua-se lutando ativamente na Itália contra a energia nuclear para a produção de eletricidade: o custo em termos de recursos naturais limitados (água, território e materiais fósseis), o risco em caso de acidentes com danos de longo prazo à saúde e ao meio ambiente, a impossibilidade de gerir de forma segura os dejetos no médio e longo prazo, um verdadeiro custo imediato contra um longínquo e incerto benefício, o uso de recursos econômicos que poderiam ser investidos em energias renováveis. A direção para o futuro deve ser, diferentemente do que ocorreu no passado, a democratização e descentralização da produção de energia, com uma maior responsabilidade das comunidades e dos indivíduos.
A inanidade do mundo político
Os estudiosos mais perspicazes têm abordado esses temas já há algum tempo. Entre eles, o prêmio Nobel Elinor Ostrom, que sugeriu ideias e soluções importantes para um mundo político que, no entanto, parece surdo, cego e, sobretudo, inerte, ou seja, incapaz de realizar seus deveres e tomar as decisões necessárias. Tudo isso já foi demonstrado nas últimas reuniões de cúpula internacionais, tanto as gerais (como o G20 de Toronto), como as temáticas (a cúpula mundial sobre o clima em Copenhague ou a cúpula sobre os Objetivos do Milênio, na ONU).
Para chegar a um manejo responsável dos bens comuns são necessárias soluções inovadoras, que se afastem dos dogmatismos opostos: tanto de quem pretende que só o Estado tenha o direito de desempenhar o papel de comando e controle dos bens coletivos, como de quem sustenta que só a privatização dos recursos resolverá o problema. Estes dois enfoques se demonstraram dramaticamente ineficientes: nem o Estado nem o mercado, sozinhos, podem garantir o manejo equilibrado e responsável destes bens.
De Estado-Mercado a Comunidade-Redes
Apesar desse dilema permanecer aberto em nível global (onde as instituições supranacionais públicas se demonstram ineficazes e as privadas portadoras de interesses particulares), é preciso assinalar – e Terra Futura está fazendo isso há oito anos – que existem realidades e instituições externas ao sistema Estado-Mercado que vem gerindo, em nível local, sistemas sociais e de recursos naturais com resultados eficazes e sustentáveis no tempo. Há muitos exemplos concretos de comunidades de indivíduos e de redes de grupos que vem desenvolvendo várias e diferentes maneiras de gerir os bens coletivos, alternativas aos modelos públicos ou privatistas. Trata-se de experiências que se baseiam no modelo cooperativo (oposto às iniciativas unilaterais), em ações coletivas e na reciprocidade. Esyas escolhas implicam a capacidade de avaliar e levar em conta as razões dos outros indivíduos envolvidos, a decisão de cooperar a partir de relações de confiança, a consideração da escassez dos recursos e o estabelecimento de regras compartilhadas que aplicam incentivos ou sanções, segundo o caso. Estamos diante de novas formas de contrato social (que Elinor Olstrom analisou em seu “Governing the Commons”) que demonstram a viabilidade de alternativas em relação ao “Leviatã” burocrático (um Estado tanto intrometido quanto ineficiente) e à privatização como “única” via.
Governar os bens comuns
Muitas das linhas temáticas que caracterizaram as edições anteriores de Terra Futura convergem para o conceito de governo dos bens comuns: do tema da responsabilidade e da sustentabilidade para aquele do papel das alianças entre sujeitos da sociedade civil, dos temas sobre as mudanças climáticas, sobre a crise financeira, a legalidade e a crise social. Os bens comuns são a síntese de todas as contradições do modelo de desenvolvimento dominante até agora e que hoje vemos cair miseravelmente sob seu próprio peso. Tudo isso chega agora ao “nó górdio” que finalmente é preciso cortar: a exploração ilimitada e injusta dos recursos naturais gera desigualdade e enfraquece o impulso democrático em qualquer parte do mundo (como nos demonstrou o caso Eni-Nigéria). 
Os interesses individuais e particulares da política pisoteiam os direitos humanos fundamentais (um exemplo evidente é a discriminação contra a população romena, que foi enviada à fronteira pelo presidente francês Sarkozy, o qual, poucos dias depois, invocou a ajuda da ONU para combater a pobreza por meio da aplicação da Taxa Tobin). Ignora-se o direito de cada um ter um espaço público para praticar sua religião, com a ilusão de velar pela própria identidade (ameaçando lançar textos sagrados na fogueira e impedindo a construção de mesquitas). A exploração intensiva das terras e das produções agrícolas empobrece os recursos naturais, cria injustiças e conflitos sociais e impulsiona comportamentos irresponsáveis na política (o exemplo são as quotas de leite europeias na Itália ou o estímulo ao uso de organismos geneticamente modificados).
Por um novo contrato social de responsabilidade coletiva
Se é evidente que as contradições do modelo de desenvolvimento explodem em torno dos bens comuns, é certo também que tais bens têm oferecido a muitas comunidades no mundo e na Itália a oportunidade de encontrar soluções para diversos problemas, de elaborar projetos de desenvolvimento, sistemas sociais abertos e responsáveis, inovadores e sustentáveis, democráticos e participativos. Estas realidades demonstram uma verdadeira unidade, entendida não como simples fato formal, mas sim como uma autêntica unificação de destino entre biosfera e “sociosfera”, uma alternativa à degradação dos bens materiais e das relações.
Enquanto se realizam uma após outra as cúpulas entre governos que mostram sua submissão às lógicas do liberalismo econômico; enquanto as Nações Unidas parecem seguir atuando com métodos que não levam a lugar nenhum (a cúpula sobre a biodiversidade no Japão, em outubro de 2010, foi a última de uma longa cadeia de encontros – desde o do Rio em 1992 até Johannesburgo em 2002 – cujos resultados foram inversamente proporcionais às expectativas despertadas), nossa tenaz esperança se situa no que estão fazendo concretamente no mundo os cidadãos, indivíduos da sociedade civil organizada, empresas e governos locais. 
Todos estes sujeitos estão buscando a forma de construir uma sociedade mais justa e sustentável, na base dos valores e das relações no lugar da monetarização e da exploração cega do futuro.
Assistimos, dia após dia, com uma velocidade e uma intensidade inimagináveis há uma década, à “tragédia dos bens comuns” como a definiu Garret Hardin, no distante 1968: um empobrecimento contínuo e irremediável de recursos naturais, de bens e valores que compõem a inestimável biodiversidade natural, social e cultural do planeta; o aprofundamento de uma tendência ao consumo ilimitado destes bens que por sua natureza constituem um patrimônio inalcançável para alguns.
Milhares de arroios, um rio, Terra Futura
Finalmente, hoje, após anos em que só uns poucos iluminados pioneiros se atreviam a falar, começa a se construir o vasto e concreto projeto de reconversão econômica, ecológica e social do modelo de desenvolvimento e de redistribuição das riquezas entre as possíveis e necessárias soluções. Mas esse rio só conseguirá chegar ao mar se reunirmos todos os afluentes, todos os riachos em um grande estuário. É um compromisso importante e complexo porque não é suficiente somar fluxos. É preciso também equilibrar os muitos e diferentes projetos para ter um olhar global e, ao mesmo tempo, cuidar cada um de seus cursos d’água. É um grande trabalho que só poderá ser realizado unindo competências, experiências e sensibilidades diferentes (como ocorre há 8 anos entre os sócios de Terra Futura) e tornando as próprias comunidades protagonistas dessa mudança: só esse sujeitos têm as ferramentas e o interesse (e, portanto, a responsabilidade) para unir a multiplicidade de arroios e dar assim um novo nome ao mar do desenvolvimento, convertendo-o no mar da igualdade, da sustentabilidade e da justiça.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior, 28/01/2011

sexta-feira, janeiro 28, 2011

um verdadeiro atentado à legislação brasileira

‘Licença Específica’: Governo atropela legislação e tenta impor Belo Monte ‘goela abaixo’
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) vem a público manifestar repúdio e indignação diante da emissão da "Licença de Instalação Específica” relativa à Usina Hidrelétrica Belo Monte.
Fruto de inequívoco e sistemático processo de pressão política, do governo e de grupos econômicos envolvidos na construção da usina, sobre setores técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), este ato administrativo constitui-se num verdadeiro atentado à legislação brasileira.
A figura da "Licença Específica” simplesmente inexiste no aparato jurídico brasileiro. No entanto, a mesma vem sendo consumada "de fato” como uma prática recorrente do governo federal nestes últimos anos.
O Cimi entende que o Poder Judiciário não deve manter-se alheio frente a essa prática do Executivo. Com a emissão dessa "Licença” sem amparo legal, aprofunda-se a necessidade e a urgência do julgamento de todas as ações judiciais que questionam a legalidade do procedimento administrativo estabelecido para "liberar” a construção daUHE Belo Monte.
Reafirmamos nossa confiança no Poder Judiciário brasileiro e entendemos que é urgente a sua manifestação e tomada de decisões no presente caso, considerando as arbitrariedades e ilegalidades perpetradas e implementadas pelo Poder Executivo do nosso país.
Depois de mais de duas décadas em que o governo militar impôs a absurda construção da hidrelétrica de Balbina, reconhecidamente um "monumento à insanidade”, o atual governo utiliza-se da mesma lógica destruidora e assassina no caso da UHE Belo Monte.
Manifestamos solidariedade a todos os povos e comunidades que se contrapõe historicamente à construção de Belo Monte e reiteramos o compromisso e o apoio às suas lutas na defesa de seus direitos.
Conselho Indigenista Missionário
Brasília, 27 de janeiro de 2011
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Fonte: IHU, 28/01/2011

quinta-feira, janeiro 27, 2011

teme-se que Caetité se torne uma nova Poços de Caldas

Mina de urânio pode transformar Caetité em cidade fantasma

Nos primeiros dias do governo Dilma, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, anunciou que pretende aprovar ainda neste ano o projeto para a construção de quatro novas usinas nucleares. Atualmente, o país possui duas usinas, ambas localizadas em Angra dos Reis (RJ).
Essa retomada do programa nuclear vai aumentar a demanda por urânio.  No município de Caetité (BA) está localizada a única mina em operação no Brasil. No final de 2010 a Plataforma Dhesca denunciou que a população do município convive com níveis de radiação 100 vezes maiores que a média mundial. A INB (Indústrias Nucleares Brasileiras) negou a contaminação, baseada num estudo encomendado da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
Em entrevista à Radioagência NP, Cecília Mello, integrante da Plataforma Dhesca, revela as violações de direitos identificadas durante a visita que fez a Caetité. Ela relata o caso de Poços de Caldas, em Minas Gerais, que passou de pólo turístico a cidade fantasma depois da exploração do urânio. Por fim, demonstra preocupação com a futura mina, em Santa Quitéria (CE), que já apresenta irregularidades no licenciamento ambiental.
Radioagência NP: Cecília, o que você constatou na visita a Caetité?
Cecília Mello: O quadro é de temor, angústia, incerteza por parte da população. O relato dos moradores é que está havendo uma incidência de câncer desproporcional. Conversamos com um médico de um hospital da região que se mostrou preocupado com a quantidade de diagnósticos que ele tem feito de neoplasias, de cânceres em pessoas entre 30 e 40 anos.
RNP: Como você analisa o estudo de um pesquisador da Fiocruz que nega qualquer relação entre a exploração de urânio e os casos de câncer?
CM: Como você vai tirar qualquer conclusão, se tem uma base de dados com 1/3 dos óbitos, no mínimo, que você não sabe qual é a causa. O quadro de desinformação é grave. O fato de as pessoas saírem do município para buscar tratamento em Vitória da Conquista, em Salvador ou em São Paulo faz com que a gente não consiga rastrear o que está acontecendo com a saúde da população. Se você tem algum problema e vai para São Paulo, você diz que é morador local para ter atendimento. É preciso ser feito um estudo epidemiológico consistente para acompanhar os riscos que a população está submetida.
RNP: Que medidas devem ser adotadas para amenizar os impactos sofridos pelos moradores que vivem no entorno da mina?
CM: Essa população tem que ser indenizada porque eles sofrem os impactos não só na saúde. A gente viu casas completamente rachadas. Caetité faz parte do semiárido, mas como todos sabem, o semiárido brasileiro é um dos mais chuvosos do mundo. Eles têm técnicas de construir cisternas e guardar essa água. Ali se produzia arroz, que é uma cultura que demanda muita água. Hoje, a produção está muito reduzida, estigmatizada, ninguém quer comprar mandioca, gado, leite e queijo da região.
RNP: Atualmente, que tratamento é dado ao lixo nuclear no Brasil?
CM: Essas minas duram de dez a 20 anos. Em Caetité a previsão é de 16 anos. Ou seja, depois que a exploração termina a população fica com o passivo. E Poços de Caldas [MG] tem um agravante porque depois do esgotamento do urânio a região se tornou uma espécie de “bota-fora” do nuclear brasileiro. O lixo radioativo é um problema não resolvido pela indústria nuclear. Não existem depósitos permanentes no Brasil, todos são temporários, mas acabam se mantendo ad infinitum.
RNP: Que impactos a extração de urânio provocou em Poços de Caldas?
CM: O caso de Poços de Caldas, que era uma região turística conhecidíssima, muito valorizada no Sudeste, um lugar onde os noivos iam passar a lua-de-mel hoje em dia está totalmente abandonada. Eu tive a oportunidade de passar por lá e parece uma cidade fantasma. Hoje o que se vê é um legado, um impacto sobre a saúde da população grave a ponto de duas vereadoras da região denunciarem a incidência de câncer desproporcional em relação ao resto do estado de Minas Gerais.
RNP: Caetité pode ter o mesmo destino?
CM: Teme-se que Caetité se torne uma nova Poços de Caldas. Por isso a nossa atenção especial a esse caso. Não é possível que o Brasil, que tem uma legislação ambiental supostamente avançada, continue investindo ou estimulando atividades que expõem o meio ambiente e a saúde da população a riscos que já deveriam ter sido superados.
RNP: As construções das novas usinas nucleares anunciada pelo governo federal podem agravar o problema?
CM: Com a retomada do programa nuclear brasileiro se configurou a intensificação das atividades de mineração, não só lá em Caetité, mas em Santa Quitéria (CE), que promete ser a próxima mina de urânio. Estamos muito preocupados e atentos ao licenciamento dessa mina de urânio, que foi feito pelo órgão estadual de maio ambiente, o que é ilegal porque todas as atividades que têm a ver com o ciclo nuclear devem passar obrigatoriamente pela esfera federal, pelo Ibama.
Matéria da Radioagência NP, por Jorge Américo, publicada pelo EcoDebate, 13/01/2011.

segunda-feira, janeiro 24, 2011

responsabilidade sócio-ambiental

Uma lei de responsabilidade sócio-ambiental?

por Leonardo Boff
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Já existe a lei de responsabilidade fiscal. Um governante não pode gastar mais do que lhe permite o montante dos impostos recolhidos. Isso melhorou significativamente a gestão pública.
O acúmulo de desastres sócio-ambientais ocorridos nos últimos tempos, com desabamentos de encostas, enchentes avassaladoras e centenas de vítimas fatais junto com a destruição de inteiras paisagens, nos obrigam a pensar na instauração de uma lei nacional de responsabilidade sócio-ambiental, com pesadas penas para os que não a respeitarem.
Já se deu um passo com a consciência da responsabilidade social das empresas. Elas não podem pensar somente em si mesmas e nos lucros de seus acionistas. Devem assumir uma clara responsabilidade social. Pois não vivem num mundo a parte: são inseridas numa determinada sociedade, com um Estado que dita leis, se situam num determinado ecossistema e são pressionadas por uma consciência cidadã que cada vez mais cobra o direito à uma boa qualidade de vida.
Mas fique claro: responsabilidade social não é a mesma coisa que obrigação social prevista em lei quanto ao pagamento de impostos, encargos e salários; nem pode ser confundida com a resposta social que é a capacidade das empresas de se adequarem às mudanças no campo social, econômico e técnico. A responsabilidade social é a obrigação que as empresas assumem de buscar metas que, a meio e longo prazo, sejam boas para elas e também para o conjunto da sociedade na qual estão inseridas.
Não se trata de fazer para a sociedade o que seria filantropia, mas com a sociedade, se envolvendo nos projetos elaborados em comum com os municípios, ONGs e outras entidades.
Mas sejamos realistas: num regime neoliberal como o nosso, sempre que os negócios não são tão rentáveis, diminui ou até desaparece a responsabilidade social. O maior inimigo da responsabilidade social é o capital especulativo. Seu objetivo é maximizar os lucros das carteiras e portfólios que controlam. Não vêem outra responsabilidade, senão a de garantir ganhos.
Mas a responsabilidade social é insuficiente, pois ela não inclui o ambiental. São poucos os que perceberam a relação do social com o ambiental. Ela é intrínseca. Todas empresas e cada um de nós vivemos no chão, não nas nuvens: respiramos, comemos, bebemos, pisamos os solos, estamos expostos à mudanças dos climas, mergulhados na natureza com sua biodiversidade, somos habitados por bilhões de bactérias e outros microorganismos. Quer dizer, estamos dentro da natureza e somos parte dela. Ela pode viver sem nós como o fez por bilhões de anos. Nós não podemos viver sem ela. Portanto, o social sem o ambiental é irreal. Ambos vêm sempre juntos.
Isso que parece óbvio, não o é para a grande parte das pessoas. Por que excluimos a natureza? Porque somos todos antropocêntricos, quer dizer, pensamos apenas em nós próprios. A natureza é exterior, posta ao nosso bel-prazer.
Somos irresponsáveis face à natureza quando desmatamos, jogamos bilhões e litros de agrotóxicos no solo, lançamos na atmosfera, anualmente, cerca de 21 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa, contaminamos as águas, destruímos a mata ciliar, não respeitamos o declive das montanhas que podem desmoronar e matar pessoas nem observamos o curso dos rios que nas enchentes podem levar tudo de roldão.
Não interiorizamos os dados que biólogos e astrofísicos nos asseguram: Todos possuímos o mesmo alfabeto genético de base, por isso somos todos primos e irmãos e irmãs e formamos assim a comunidade de vida. Cada ser possui valor intrínseco e por isso tem direitos. Nossa democracia não pode incluir apenas os seres humanos. Sem os outros membros da comunidade de vida, não somos nada. Eles valem como novos cidadãos que devem ser incorporados na nossa compreensão de democracia que então passa a ser uma democracia sócio-ambiental. A natureza e as coisas dão-nos sinais. Elas nos chamam atenção para os eventuais riscos que podemos evitar.
Não basta a responsabilidade social, ela deve ser sócio-ambiental. É urgente que o Parlamento vote uma lei de responsabilidade sócio-ambiental imposta a todos os gestores da coisa pública. Só assim evitaremos tragédias e mortes.
Leonardo Boff é Filósofo e Teólogo
Fonte: EcoDebate, 24/01/2011

segunda-feira, janeiro 17, 2011

como costumamos tratar-nos e a natureza

O preço de não escutar a natureza

por Leonardo Boff

O cataclisma ambiental, social e humano que se abateu sobre as três cidades serranas do Estado do Rio de Janeiro – Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo -, na segunda semana de janeiro de 2011, com centenas de mortos, destruição de regiões inteiras e um incomensurável sofrimento dos que perderam familiares, casas e todos os haveres tem como causa mais imediata as chuvas torrenciais, próprias do verão, a configuração geofísica das montanhas, com pouca capa de solo sobre o qual cresce exuberante floresta subtropical, assentada sobre imensas rochas lisas que por causa da infiltração das águas e o peso da vegetação provocam frequentemente deslizamentos fatais.
Culpam-se pessoas que ocuparam áreas de risco, incriminam-se políticos corruptos que distribuíram terrenos perigosos a pobres, critica-se o poder público que se mostrou leniente e não fez obras de prevenção, por não serem visíveis e não angariarem votos. Nisso tudo há muita verdade. Mas nisso não reside a causa principal desta tragédia avassaladora.
A causa principal deriva do modo como costumamos tratar a natureza. Ela é generosa para conosco, pois nos oferece tudo o que precisamos para viver. Mas nós, em contrapartida, a consideramos como um objeto qualquer, entregue ao nosso bel-prazer, sem nenhum sentido de responsabilidade pela sua preservação nem lhe damos alguma retribuição. Ao contrário, tratamo-la com violência, depredamo-la, arrancando tudo o que podemos dela para nosso benefício. E ainda a transformamos numa imensa lixeira de nossos dejetos.
Pior ainda: nós não conhecemos sua natureza e sua história. Somos analfabetos e ignorantes da história que se realizou nos nossos lugares no percurso de milhares e milhares de anos. Não nos preocupamos em conhecer a flora e a fauna, as montanhas, os rios, as paisagens, as pessoas significativas que aí viveram, artistas, poetas, governantes, sábios e construtores.
Somos, em grande parte, ainda devedores do espírito científico moderno que identifica a realidade com seus aspectos meramente materiais e mecanicistas sem incluir nela, a vida, a consciência e a comunhão íntima com as coisas que os poetas, músicos e artistas nos evocam em suas magníficas obras. O universo e a natureza possuem história. Ela está sendo contada pelas estrelas, pela Terra, pelo afloramento e elevação das montanhas, pelos animais, pelas florestas e pelos rios. Nossa tarefa é saber escutar e interpretar as mensagens que eles nos mandam. Os povos originários sabiam captar cada movimento das nuvens, o sentido dos ventos e sabiam quando vinham ou não trombas d’água.  Chico Mendes com quem participei de longas penetrações na floresta amazônica do Acre sabia interpretar cada ruído da selva, ler sinais da passagem de onças nas folhas do chão e, com o ouvido colado ao chão, sabia a direção em que ia a manada de perigosos porcos selvagens. Nós desaprendemos tudo isso. Com o recurso das ciências lemos a história inscrita nas camadas de cada ser. Mas esse conhecimento não entrou nos currículos escolares nem se transformou em cultura geral. Antes, virou técnica para dominar a natureza e acumular.
No caso das cidades serranas: é natural que haja chuvas torrenciais no verão. Sempre podem ocorrer desmoronamentos de encostas.  Sabemos que já se instalou o aquecimento global que torna os eventos extremos mais frequentes e mais densos. Conhecemos os vales profundos e os riachos que correm neles. Mas não escutamos a mensagem que eles nos enviam que é: não construir casas nas encostas; não morar perto do rio e preservar zelosamente a mata ciliar. O rio possui dois leitos: um normal, menor, pelo qual fluem as águas correntes e outro maior que dá vazão às grandes águas das chuvas torrenciais. Nesta parte não se pode construir e morar.
Estamos pagando alto preço pelo nosso descaso e pela dizimação da mata atlântica que equilibrava o regime das chuvas. O que se impõe agora é escutar a natureza e fazer obras preventivas que respeitem o modo de ser de cada encosta, de cada vale e de cada rio.
Só controlamos a natureza na medida em que lhe obedecemos e soubermos escutar suas mensagens e ler seus sinais. Caso contrário teremos que contar com tragédias fatais evitáveis.
Leonardo Boff é filósofo e teólogo.
Colaboração de Gilvander Moreira, frei Carmelita,para o EcoDebate, 17/01/2011
Fonte: EcoDebate, 17/01/2011

quinta-feira, dezembro 16, 2010

a tutela sobre o encontro das águas

A destruição dos rios

por Lucio Flávio Pinto

Desde as primeiras letras aprendemos que a bacia do rio Amazonas é a maior do mundo. Ninguém nunca duvidou que ele era o mais caudaloso do planeta, mas se questionava essa primazia quanto ao seu comprimento. Hoje a controvérsia está esclarecida: com 6.937 quilômetros de extensão, o Amazonas supera em 140 quilômetros o Nilo, que perdeu essa liderança multissecular.
Qualquer número em relação ao “rio-mar” (ou o “mar doce” dos espanhóis, os primeiros europeus a navegá-lo) é grandioso. Ele lança, em média, 170 milhões de litros de água por segundo no Oceano Atlântico. Suas águas barrentas podem avançar 100 quilômetros além da barreira de águas salgadas e projetar seus sedimentos em suspensão no rumo norte, até o litoral da Flórida, nos Estados Unidos. São milhões de toneladas de nutrientes, arrastados desde a cordilheira dos Andes, onde nasce o grande rio, e engrossados por seus afluentes, que também se posicionam entre os maiores cursos d’água que existem.
Essas grandezas têm servido de inspiração para o ufanismo nacional, mas não para tratar melhor os nossos gigantes aquáticos. Nenhum brasileiro – ou mesmo o nativo – dá ao Amazonas a importância que os egípcios conferem ao Nilo. O Egito não existiria sem a faina incansável do seu grande rio, a fertilizar suas margens, cercadas por desertos hostis, e civilizar o país. Por isso, é considerado sagrado.
Os brasileiros parecem acreditar que, por ser monumental, abrangendo 7 milhões de quilômetros quadrados do continente sul-americano (quase dois terços em território brasileiro), a bacia amazônica foi blindada pela mãe natureza contra as hostilidades do homem. Já está na hora de se pôr fim a essa ilusão, acabando com a insensibilidade geral, que se alimenta do desconhecimento e da desinformação. O Amazonas está sob ameaça. Não uma, mas várias.
Um dos capítulos mais recentes está sendo travado diante da maior cidade da Amazônia, Manaus, a capital do Amazonas, com seus 1,7 milhão de habitantes (2 milhões com as duas cidades vizinhas). No dia 5, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) decretou o tombamento do encontro das águas do Amazonas com o Negro, um dos seus principais tributários da margem esquerda.
O desavisado pode até achar que o ato é de significado museológico, para efeito acadêmico. O processo do tombamento, porém, se arrastou durante dois anos. Deveria ser simples: a área de 30 quilômetros quadrados, o polígono de terra e água onde ocorre a junção dos dois enormes rios, é cenário para o maior de todos se encontrar com o maior rio de águas negras do mundo. Na margem direita, o barrento Solimões pressiona o rio ao lado, que ganhou seu nome pela inusitada cor das suas águas, num entrevero que pode se estender por 10 quilômetros lineares nas duas direções.
É um encontro ciclópico. A vazão do Solimões nesse ponto (onde justamente muda pela última vez de nome, passando a ser Amazonas) é de 135 milhões de litros de água por segundo. A do Negro, que chega ao fim do seu percurso de 1.700 quilômetros, a partir da Venezuela, é de 50 milhões de litros. Encorpado, o Amazonas segue em frente até a foz, dois mil quilômetros abaixo. Não sem antes oferecer o espetáculo das duas cores líquidas em paralelo ou em fusão tumultuada, para a admiração ou o espanto de uma crescente legião de turistas.
O problema é que no ponto de encontro dos rios está Manaus, com 60% da população e 90% da riqueza de todo estado do Amazonas, o maior do Brasil, com 20% do território nacional. Desde quase meio século atrás, Manaus deixou de ser o produto do Amazonas para ser o efeito da Zona Franca, um entreposto comercial e um núcleo industrial que só se tornaram possíveis pela renúncia da União a recolher o imposto sobre a importação das empresas instaladas na remota paragem.
Hoje, Manaus é a origem do maior fluxo de contêineres do país. Motocicletas, computadores, geladeiras e muitos outros produtos são mandados para o sul do país, principalmente São Paulo, e espalhados para outros destinos. O velho porto flutuante, que os ingleses construíram no início do século 20 para atender a exportação de borracha (que chegou a ser responsável por 40% do comércio exterior brasileiro), não serve para essa demanda nova.
A pressão é tão forte que alguns terminais privados, legais ou não, surgiram na orla da cidade. O maior deles, o Porto Chibatão, foi parcialmente arrastado, no mês passado, pelas águas do Negro, a apenas três quilômetros do seu encontro com o Amazonas, com mortes e a perda de diversos contêineres. Qualquer ribeirinho sabia que o local era contra-indicado para o fluxo de carga que o precário terminal movimentava.
Um novo, muito maior e mais adequado, está sendo projetado para uma área de 100 mil metros quadrados, na qual poderão ser estocados 250 mil contêineres. Antes desse mega-terminal, porém, uma subsidiária da mineradora Vale (o novo nome da Companhia Vale do Rio Doce, quando estatal) começou a construir seu próprio porto, com investimento de 220 milhões de reais. Nele deverá operar seu novo navio cargueiro, com capacidade para 1.500 contêineres, e outros cinco já encomendados, por algo como meio bilhão de reais, multiplicando sua capacidade de transporte.
Esses números pareciam muito mais importantes do que a localização do porto, na província paleontológica das Lages, próximo de uma tomada de água para 300 mil habitantes da cidade e de um lago, o último do rio Negro, importante para milhares de moradores de um bairro que se formou em torno dele.
O processo que levou ao desmoronamento do Porto Chibatão seguiria sua lógica malsã se não tivesse surgido a iniciativa de tombar o encontro das águas. Ninguém se aventura a dizer-se contra o tombamento, mas ele provocou uma batalha judicial que chegou a Brasília, com vitórias e derrotas, protelações e pressões, até que, no dia 5, finalmente o Iphan assumiu a tutela sobre o encontro das águas.
Qualquer novo projeto que a partir de agora se fixe na área do polígono terá de ser submetido ao instituto, além de obter a licença ambiental. Certamente haverá quem se indigne com o fato: o raciocínio automático é de que a razão (ou anti-razão) econômica prevaleça sobre qualquer outro tipo de consideração – e sempre com vantagens para o investidor.
A decisão do Iphan, que ainda vai sofrer questionamento judicial, não bloqueia a evolução dos empreendimentos produtivos na região, mas talvez ajude o país a se dar conta de que destruindo os recursos naturais, em especial aqueles que representam uma grandeza única, é a Amazônia que estão destruindo. Substituem a galinha dos ovos de ouro por um cavalo de Tróia. Na mitologia ou na realidade, sabemos qual será o desfecho.
Fonte: Fonte: Yahoo! Notícias | Opinião | Meio Ambiente, 17/11/2010

terça-feira, dezembro 14, 2010

a paisagem deixando de ser amazônica

Água no coração

por Lúcio Flávio Pinto

De uma coisa não tenho dúvida: sou um homem das águas, um ser anfíbio. Nasci no lugar do Pará em que o rio Tapajós, o mais bonito do mundo, encerra sua jornada de mil quilômetros, incluindo um dos seus formadores, o Teles Pires, onde o governo federal quer construir cinco hidrelétricas de grande porte. Na foz, que tem quilômetros de largura entre labirintos de ilhas, o Tapajós lança suas águas verdes contra o barrento Amazonas, em frente a Santarém, que era a segunda e hoje é a terceira maior cidade do Estado.
Em 1949, quando vim ao mundo, Santarém não tinha 15 mil habitantes (hoje está com quase 180 mil, mais 90 mil na zona rural do município). Com meses, eu era levado para tomar banho no rio. Aprendi a nadar antes de ter consciência de mim. Sofri os pavores de um método que só muito depois ganharia ares de cientificidade: era largado na água e só resgatado quando começava a me afogar. Logo passei a flutuar. Daí a deslizar foi questão de braçadas.
Nossa vida era demarcada pelo ciclo das águas: seis meses subindo, seis meses descendo, com todos os efeitos do avanço ou do recuo da massa aquática sobre terras que caíam pela erosão ou cresciam pela sedimentação. Em Santarém, tudo era função do encontro de rios de coloração tão contrastante, com uma peculiaridade: quando chegávamos à alva e extensa praia na orla da cidade (hoje poluída e deteriorada) e o Amazonas vencera seu constante cabo-de-guerra com o Tapajós, ninguém se atrevia a mergulhar. Acostumados à cristalinidade do Tapajós, que permitia até pesca submarina só com óculos, vendo-se o fundo lá embaixo, sentíamos nojo da cor de sujeira do “rio-mar”. Ficávamos na praia jogando futebol ou fazendo qualquer coisa. Não era dia de banho.
Eu ainda não havia completado quatro anos quando, em 1953, houve a maior das cheias do século 20. Lembro-me dela por imagens desfocadas na memória engatinhante, pelos testemunhos dos mais velhos e por álbuns de fotografias. A mais impressionante delas exibia a rua principal do comércio tomada por tábuas de madeira, que substituíam o calçamento, todo submerso, para permitir a passagem dos moradores.
Outra grande cheia, talvez mesmo a maior de todas, foi em 1976. Já como repórter, aos 26 anos, esta eu fui verificar pessoalmente os acontecimentos. Naveguei durante 13 dias pelo Amazonas, conferindo os lugares mais atingidos pelas águas.
Mais impressionado ainda fiquei em 1984, ao chegar a Tucuruí, onde foi construída a quarta maior hidrelétrica do mundo. Vi o rio Tocantins, ainda maior que o Tapajós, completamente barrado, pela primeira vez na sua história de milhões de anos, por uma monumental parede de concreto, com quase 80 metros de altura.
De uma parte alta do terreno próximo, vendo aquele espetáculo, ao mesmo tempo da espantosa engenharia humana e de sua presença inoportuna nos domínios da natureza, o moleque aquático emergiu dentro de mim sem controle. Chorei convulsivamente, antes de poder me controlar e tentar cumprir meu ofício de jornalista, objetivo por dever de ofício. A partir de então, o homem das águas passou a predominar sobre o profissional da escrita. A indignação diante da destruição cresceu mais do que a constatação da realidade.
Pensei que não teria mais impacto igual em matéria de água. Mas em 2005 fiquei ainda mais chocado quando vi rios, paranás e igarapés secos como nunca imaginei que um dia eles pudessem ficar. O nosso referencial mental esteve sempre voltado para a abundância das águas – estrondosas, destruidoras e ao mesmo tempo fecundadoras. Era da sua subida que a nossa vida dependia. Agora tínhamos que conviver com a sua ausência. A paisagem deixava de ser amazônica. Sugeria uma África em ameaça, o prenúncio de savanas, a cena seguinte à da passagem do homem, deus ex-machina.
Se é efeito da presença cada vez mais agressiva do homem ou de algum novo ciclo da própria natureza, não interessa inquirir neste artigo, o mais pessoal que já escrevi nesta seção. Escrevo-o depois de alguns dias de uma viagem à terra natal. Um vôo quase panorâmico sobre Santarém me deu a convicção de nunca ter visto uma seca do Tapajós como a deste ano. Nem a de 2005.
É impressão forte de quem já viu muitas vezes o rio subir e descer. Não só o Tapajós, mas também o Amazonas. O nível que ele atingiu no encontro com o Negro, defronte de Manaus, é o mais baixo desde que as medições começaram a ser feitas naquele ponto, em 1902.
Isto é fato, mesmo se sujeito a algum ajuste. Não há muitos a fazer nem eles são tão amplos, como se esperaria do uso de tantas ferramentas científicas e tecnológicas disponíveis atualmente, sobretudo os satélites. Mas é inegável: as secas se tornam mais rigorosas e frequentes. Vão se constituindo em acontecimento de presença tão marcante como eram as cheias.
O encolhimento das águas do Tapajós deixou à mostra suas longas e belas praias, como talvez não existam iguais em nenhum outro rio do Brasil (e do mundo?). Mas também mostrou as marcas da agressão humana, preocupantes mesmo em Alter-do-Chão, que foi considerada por um jornal inglês a melhor praia do mundo. É enorme e preocupante o volume de lixo, que as águas antes escondiam. Alguns começam a temer pela integridade futura de Alter-do-Chão. Sua fama talvez não seja suficiente para garantir sua perenidade. O mundo das águas está mudando. Provavelmente não para melhor.
.
* Lúcio Flávio Pinto é paraense de Santarém; tem 61 anos e é jornalista há 44. Passou por algumas das principais publicações brasileiras, e hoje é editor do Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que circula em Belém desde 1987. Já recebeu quatro prêmios Esso e dois Fenaj, além do International Press Freedom Award. Tem 15 livros publicados, a maioria sobre a Amazônia. Escreve a coluna Cartas da Amazônia quinzenalmente, às quartas-feiras.
Fonte: Yahoo! Notícias | Opinião | Meio Ambiente, 01/12/2010

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