Natal chinês e taxa de câmbio
por Paulo Kliass
Natal e
fetichismo
O período de Natal nos oferece uma oportunidade
ímpar para compreender alguns aspectos essenciais do próprio sistema
capitalista. Durante algumas semanas, um pouco antes e um pouco depois da
passagem do ano, a complexa engrenagem da economia consegue movimentar recursos
como em nenhum momento durante todo o resto do tempo.
Desde o processo da produção, passando pelas etapas
associadas à distribuição, até chegar ao momento final do consumo, o período
natalino revela com toda a sua força alguns dos aspectos daquilo que Marx
chamava de fetichismo da mercadoria. Em plenos trópicos, sob um sol escaldante
de um verão que chega a beirar os 400
C , as pessoas saem aos milhões pelos centros comerciais
em busca das promessas da satisfação e da felicidade. Elas conseguem se iludir
com as associações que lhe são impostas pela máquina de publicidade. A sedução
para o consumo é comandada por um ideário absolutamente distante e irracional
para a nossa tradição social, nossas raízes culturais. Trata-se de um velhinho
barbudo, dirigindo um trenó puxado por renas, que entra chaminé abaixo das
nossas casas, durante uma noite de neve. Uma loucura! E o que mais impressiona
é que o modelo parece funcionar.
A chamada para as compras é estimulada também pelo
sentimento de bondade e solidariedade que se busca criar no período natalino,
com as bases fornecidas também pelo espírito cristão. Ser bondoso é comprar um
presente novo para alguém. Demonstrar sua face solidária é adquirir uma
mercadoria para outrem. No fundo, quase tudo termina por se consolidar numa
mercantilização das relações sociais e pessoais. Vale sublinhar que todo esse
processo é operado com todo o fundamento da religiosidade, que atua como argumento
a reforçar as engrenagens dessa poderosa máquina de produção e reprodução do
capital.
No entanto, a particularidade desses últimos anos
tem sido a participação crescente dos produtos chineses na cesta de consumo da
grande maioria dos brasileiros. Essa realidade se apresenta para o conjunto das
faixas de renda, mas é especialmente relevante para os setores das chamadas
novas classes médias. São os grupos sociais que obtiveram uma elevação no nível
de seu rendimento familiar real ao longo dessa virada do milênio e que passaram
a contar com a possibilidade de acesso a produtos oferecidos a preços
significativamente reduzidos.
Invasão de chineses
E assim chegamos a uma das mais profundas
contradições que a sociedade brasileira atravessa no momento. O modelo que
propiciou essa melhoria das condições de vida de parcela da nossa população não
é sustentável no médio e no longo prazos. O acesso a esse tipo de consumo de
bens de baixa qualidade e vida útil reduzida é a base do fetichismo da
mercadoria nesse mundo globalizado. O agravante é que se trata de bens
produzidos fora de nossas fronteiras, em especial na China. Basta percorrer
lojas, mercados e outros locais de consumo para percebermos que os hábitos
anteriores estão sendo substituídos por novos padrões determinados fora daquilo
que poderíamos qualificar, de uma forma um tanto genérica, como nossa matriz
social e cultural.
Além da elevada obsolescência de tais produtos e
dos inquestionáveis impactos negativos em termos sociais e ambientais
associados à sua produção e comercialização, o fato é que seu consumo só
beneficia a estrutura econômica enraizada em suas origens. O consumismo
desenfreado a que assistimos por aqui praticamente só gera emprego e só eleva a
renda na China distante.
Se não fez esse exercício ainda, olhe ao seu redor,
procure as etiquetas nos produtos com os quais tem algum contato em seu
cotidiano. Confirme você mesmo com seus próprios olhos. A presença chinesa
começa a ficar insuportável. Aquele eletrodoméstico com tantas funções – a maioria
delas de utilidade duvidosa - que se revela sem a garantia prometida no momento
da primeira necessidade? Um celular maneiro, com propriedades de última geração
que ninguém na classe ainda possui? Um computador “tablet” maravilhoso, com a
tela “touch screen” que o colega trouxe de Miami? Um carro novo e barato? Uma
moto para quem andava apenas de ônibus até o ano anterior e que imagina irá
conseguir gastar talvez menos com gasolina e prestação do consórcio do que com
as passagens do transporte coletivo? O sapato de plástico meio esquisito
tentando imitar o couro? As roupas mais baratas do que as produzidas pelos
tradicionais pólos de confecção nacional espalhados pelo País afora? Os
detalhes e acabamento e os equipamentos para o interior da residência
construída ou reformada no último ano? Tudo “made in China”. [1]
Do ponto de vista da organização da sociedade e de
sua estrutura econômica, a verdade é que o Brasil não está se beneficiando da
melhoria do nível de renda real de sua população. Uma das principais razões
para tal fenômeno indesejado é a nossa taxa de câmbio sobrevalorizada. Por meio
desse indicador econômico absolutamente distorcido e irrealista, aquilo que o
“economês” chama de matriz de preços relativos apresenta valores que parecem
pertencer ao mundo da fantasia.
Os preços dos produtos importados chegam aqui com
valores artificialmente mais reduzidos. A sensação de elevação do poder de
compra dos brasileiros no exterior torna-se particularmente sedutora, com todos
os recordes de viagens ao exterior e compras lá fora sendo batidos ano após
ano. Apenas para os que se destinam aos Estados Unidos, e que retornam com as
malas entulhadas de bugigangas, o número de pedidos de vistos junto às
autoridades consulares daquele país subiu mais de 40% entre 2010 e 2011. Ou
seja, nem mesmo os humilhantes e cansativos procedimentos de natureza
burocrático-administrativo-diplomática parecem funcionar como desestímulo às
viagens para a terra de Disney e Obama.
Mais importações e
dificuldades nas exportações
A contrapartida desse movimento é o encarecimento
dos produtos que nossa economia pretende exportar, em especial os produtos
manufaturados. Com o real sobrevalorizado, os bens industrializados aqui não
conseguem atingir preços internacionais – com referência em US$ - que sejam
competitivos com os demais países. Ora, com a demanda doméstica sendo dominada
pelos produtos importados, especialmente da China, e a demanda externa não
conseguindo ser realizada também por um problema de câmbio irreal, a tendência
tem sido o avanço da desindustrialização em nosso território. As empresas
preferem não mais abrir novas unidades ou deslocam as existentes. O Brasil –
todo orgulhoso - oferece generosamente ao resto do mundo as soluções para que
os demais países saiam sem muitos prejuízos com a crise generalizada.
Asseguramos emprego e renda lá fora!
Estamos fechando o ano com o dólar norte-americano
cotado a R$ 1,85, ao passo que tal índice permaneceu na média de R$ 1,60 ao
longo dos nove primeiros meses do ano. Uma das conseqüências econômicas de tal
ilusão reside, como já afirmado acima, no barateamento artificial dos bens e
serviços oferecidos pelo resto do mundo. Portanto, é fundamental que o governo
passe a atuar de forma incisiva nessa dimensão da política econômica. Não
podemos mais aceitar passivamente esse quadro dramático, em nome de uma
enganosa conduta de respeito ao postulado do suposto equilíbrio das livres
forças de mercado. O mercado de câmbio não é o mercado da batatinha!
Desvalorizar a taxa de
câmbio
Apesar de não ser possível determinar de forma
“científica” o valor exato da taxa de câmbio de equilíbrio, o fato é que boa
parte dos especialistas e estudiosos - não dominados pelos interesses do
capital financeiro – apontam para uma taxa mais adequada como estando situada
em um intervalo entre R$2,50 e R$ 3,00. Mais do que nunca, trata-se de
recuperar com urgência urgentíssima o perverso atraso da última década. Foi um
período em que os governos sentaram na falsa comodidade oferecida pelos
sucessivos recordes nos valores totais de nossas exportações. O ingresso nesse
mundo de fantasia só ocorria por conta dos preços internacionais também altos
das “commodities”, como petróleo, minério de ferro, soja, açúcar, boi, frango,
suco de laranja e por aí vai. Ou seja, uma acomodação perversa na continuidade
da reprimarização de nossa economia, ao ponto dos usineiros serem elevados ao
panteão dos “heróis nacionais” na infeliz declaração do ex Presidente Lula em
2007. [2]
Como chegamos a esse atraso na calibragem da taxa
de câmbio, o governo terá que lidar na sintonia fina com os efeitos de alta de
preços, pois o País foi se acostumando com essa matriz de preços relativos de
bens importados. Com a mudança necessária na taxa de câmbio, haverá uma
elevação inicial da inflação, pois os preços em reais das mercadorias
importadas ficarão mais altos. Paciência! É o preço a pagar pela passividade
irresponsável que imperou até o momento no trato da questão cambial. Mas isso
não significa que haverá uma retomada do processo inflacionário, como no
passado. Apenas aquilo que o “economês” chama de choque de ajuste de preços: do
inglês “once and for all” para transmitir a imagem de uma
elevação de preços: uma subida única definida no tempo.
Para dar início a esse importante ajuste, temos a
sorte de que a própria crise financeira internacional seja, por mais uma dessas
ironias proporcionadas pela História, nossa aliada. Basta o governo se
convencer da necessidade de reduzir de forma efetiva a taxa de juros SELIC (sem
se esquecer, é claro, das demais medidas necessárias para abaixar os juros na
ponta para o consumidor n balcão dos bancos). Com a redução do ganho financeiro
fácil, o capital especulativo internacional deverá procurar outras praças e a
redução da pressão sobre o mercado de divisas no Brasil fará com que nossa
moeda - o real - deixe de ficar tão artificialmente valorizado. A taxa de
câmbio deverá mudar de patamar. Assim, ganha-se dos dois lados. Os juros ficam
mais baixos. A taxa de câmbio retorna a níveis menos ilusórios.
E aí, sim, talvez então caiba para dezembro de 2012
o verdadeiro conteúdo dos desejos de Feliz Natal e Bom Ano Novo. Menos chinês e
mais brasileiro.
NOTAS
[1] Fico aqui apenas nos bens de consumo básicos, sem
mencionar os equipamentos mais pesados. È o caso, por exemplo, do super
cargueiro encomendado pela Vale aos estaleiros chineses e que está de volta à
costa com o casco rachado e impossibilitado de transportar o minério de ferro
exportado.
Paulo Kliass é Especialista
em Políticas
Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal
e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto,
22/12/2011
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