Código Florestal (1934-2011)
"Esta é a economia política da
revogação do NCF: um pacto
do latifúndio mais tropical com as bucólicas elites urbanas. Aliança que já
demonstrou imensa força parlamentar. Principalmente por contar com
estarrecedora adesão do PT, a reboque da esquisita titular do Meio
Ambiente", afirma José Eli da Veiga,
professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações
Internacionais da USP (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ),
em artigo publicado no jornal Valor,
20-12-2011.
Eis o artigo.
Obituário: ele faleceu na noite da terça-feira, 6/12, vítima de múltiplos atropelamentos no Congresso. O corpo passará o verão em necrotério, pois há quem proponha seu esquartejamento antes da cerimônia no Planalto. Crueldade que só poderá ser evitada se deputados e senadores forjados na luta pela redemocratização aproveitarem o recesso para meditar sobre três questões.
Obituário: ele faleceu na noite da terça-feira, 6/12, vítima de múltiplos atropelamentos no Congresso. O corpo passará o verão em necrotério, pois há quem proponha seu esquartejamento antes da cerimônia no Planalto. Crueldade que só poderá ser evitada se deputados e senadores forjados na luta pela redemocratização aproveitarem o recesso para meditar sobre três questões.
O Código que está para ser revogado
amadureceu em 15 anos de deliberações democráticas. Começou a tramitar em 2 de
janeiro de 1950, quando o "Projeto Daniel de Carvalho" foi encaminhado
ao Congresso por mensagem presidencial de Eurico Gaspar Dutra.
Resultou a lei federal do "Novo Código Florestal" (NCF), só promulgada
dia 15 de setembro de 1965, já por Castello Branco,
em conjuntura que Elio Gaspari tão bem caracterizou como "Ditadura Envergonhada"
(Companhia Das Letras, 2002). Antes do Ato Institucional nº 2 que dissolveu os partidos, tornou
indireta a escolha do presidente da República e transferiu para a Justiça
Militar o julgamento de crimes políticos.
Esse esclarecimento é crucial para
desmentir ladainha da cruzada dos grupos mais interessados em afrouxamento das
normas de conservação agroambiental. Infelizmente, também por desinformados
simpatizantes da mobilização que alerta a opinião pública para as injustiças e
retrocessos contidos nos projetos da Câmara (PLC 30) e do Senado (Substitutivo
1358). O NCF não foi
"obra dos militares". Afirmá-lo é conspurcar a memória das lutas pela
democracia.
A obra dos militares foi inversa. Por
27 anos foram promovidos desmatamentos de áreas vocacionadas à preservação
permanente, assim como sabotagens de outros dispositivos de proteção desses
"bens de interesse comum a todos os habitantes do país". Não apenas
nos dois decênios de ditadura "escancarada", "encurralada"
e "derrotada" (1965-1985), como também no tragicômico setenado de Sarney e Collor (1985-1992). As salvaguardas do artigo
225 da Constituição de 1988 só puderam surtir efeito dez anos depois, com a Lei de Crimes Ambientais, também esmiuçada pelo
Congresso entre 1992 e 1998.
A principal consequência política
dessa história institucional é a admissibilidade de se anistiar aqueles
produtores agropecuários que - até 1998 - descumpriram o NCF por terem sido oficialmente tangidos a
suprimir vegetação nativa de áreas sensíveis. O corolário é que nada tem de
anistia, mas sim de torpe indulto, qualquer perdão a desmatamento feito sem
licença a partir de 1999.
Ao não estabelecerem tal distinção, PLC e Substitutivo tratam como se fosse
farinha do mesmo saco duas realidades opostas: áreas rurais legitimamente
"consolidadas" por árduo e cuidadoso trabalho de abnegados produtores
agropecuários, versus terras travestidas de pastagens para a especulação
fundiária. A predatória aposta que alavancou 80% do déficit de áreas de
preservação permanente: 44 dos faltantes 55 milhões de hectares (Mha).
Só isso explica a ilusão de que a
bovinocultura ocupe área 3,5 vezes maior que o total das lavouras. A maior
parte dos 211 milhões de hectares tidos como pastos constitui gigantesco
estoque imobiliário voltado a rendimentos que nada têm a ver com atividades
produtivas (lucros "extraordinários" em economês). Serão os senhores
desses domínios os principais ganhadores caso o NCF seja revogado por diploma semelhante ao
PLC ou ao Substitutivo senatorial.
Além de indultar as criminosas
devastações dos últimos 13 anos, e premiar especuladores fundiários disfarçados
de pecuaristas, esses dois projetos embutem uma terceira atrocidade: dispensam
todos os imóveis rurais com área de até 4 módulos fiscais, por alegada
compaixão por empreendedores agropecuários de pequeno/médio porte. Aí se tira
proveito da reinante confusão entre duas categorias legais: imóveis e
estabelecimentos. Uma coisa é propriedade/posse fora de perímetro urbano
("imóvel rural"). Outra é empreendimento agrícola, pecuário e/ou
florestal ("estabelecimento agrícola"). Nem toda propriedade
imobiliária abriga negócio produtivo.
Atinge 56 milhões de hectares o hiato
entre a área ocupada por imóveis rurais de até 4 módulos fiscais (136 milhões
de hectares) e a dos estabelecimentos agrícolas familiares (80 milhões de
hectares). Lacuna que corresponde a 544 mil imóveis, cuja área média é,
portanto, de 103
hectares . A maior parte não entra no Censo Agropecuário pelo simples fato de se tratar de
terras nas quais inexiste atividade produtiva relevante. É a fatia da
especulação imobiliária voltada ao mercado dos sítios e chácaras de recreio,
turbinado pelas famílias urbanas emergentes. Neste caso, solidariedade aos
agricultores familiares só serve de pretexto para contentar outros ocupantes do
andar de cima com desobrigações de práticas conservacionistas.
Esta é, em suma, a economia política
da revogação do NCF: um pacto
do latifúndio mais tropical com as bucólicas elites urbanas. Aliança que já
demonstrou imensa força parlamentar. Principalmente por contar com
estarrecedora adesão do PT, a reboque da esquisita titular do Meio Ambiente.
Fonte: IHU | Notícias, 20/12/2011
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