Terceira Carta às Esquerdas
por Boaventura de Sousa Santos
Quando estão no poder, as esquerdas não têm tempo
para refletir sobre as transformações que ocorrem nas sociedades e quando o
fazem é sempre por reação a qualquer acontecimento que perturbe o exercício do poder.
A resposta é sempre defensiva. Quando não estão no poder, dividem-se
internamente para definir quem vai ser o líder nas próximas eleições, e as
reflexões e análises ficam vinculadas a esse objetivo.
Esta indisponibilidade para reflexão, se foi sempre
perniciosa, é agora suicida. Por duas razões. A direita tem à sua disposição
todos os intelectuais orgânicos do capital financeiro, das associações
empresariais, das instituições multilaterais, dos think tanks, dos lobbistas,
os quais lhe fornecem diariamente dados e interpretações que não são sempre
faltos de rigor e sempre interpretam a realidade de modo a levar a água ao seu
moinho. Pelo contrário, as esquerdas estão desprovidas de instrumentos de
reflexão abertos aos não militantes e, internamente, a reflexão segue a linha
estéril das facções.
Circula hoje no mundo uma imensidão de informações
e análises que poderiam ter uma importância decisiva para repensar e refundar
as esquerdas depois do duplo colapso da social-democracia e do socialismo real.
O desequilíbrio entre as esquerdas e a direita no que respeita ao conhecimento
estratégico do mundo é hoje maior que nunca.
A segunda razão é que as novas mobilizações e
militâncias políticas por causas historicamente pertencentes às esquerdas estão
sendo feitas sem qualquer referência a elas (salvo talvez à tradição
anarquista) e muitas vezes em oposição a elas. Isto não pode deixar de suscitar
uma profunda reflexão. Essa reflexão está sendo feita? Tenho razões para crer
que não e a prova está nas tentativas de cooptar, ensinar, minimizar, ignorar a
nova militância.
Proponho algumas linhas de reflexão. A primeira diz
respeito à polarização social que está a emergir das enormes desigualdades
sociais. Vivemos um tempo que tem algumas semelhanças com o das revoluções
democráticas que avassalaram a Europa em 1848. A polarização social
era enorme porque o operariado (então uma classe jovem) dependia do trabalho
para sobreviver, mas (ao contrário dos pais e avós) o trabalho não dependia
dele, dependia de quem o dava ou retirava a seu belprazer, o patrão; se
trabalhasse, os salários eram tão baixos e a jornada tão longa que a saúde
perigava e a família vivia sempre à beira da fome; se fosse despedido, não
tinha qualquer suporte exceto o de alguma economia solidária ou do recurso ao
crime. Não admira que, nessas revoluções, as duas bandeiras de luta tenham sido
o direito ao trabalho e o direito a uma jornada de trabalho mais curta. 150
anos depois, a situação não é totalmente a mesma, mas as bandeiras continuam a
ser atuais.
E talvez o sejam hoje mais do que o eram há 30
anos. As revoluções foram sangrentas e falharam, mas os próprios governos
conservadores que se seguiram tiveram de fazer concessões para que a questão
social não descambasse em
catástrofe. A que distância estamos nós da catástrofe? Por
enquanto, a mobilização contra a escandalosa desigualdade social (semelhante à
de 1848) é pacífica e tem um forte pendor moralista denunciador.
Não mete medo ao sistema financeiro-democrático.
Quem pode garantir que assim continue? A direita está preparada para a resposta
repressiva a qualquer alteração que se torne ameaçadora. Quais são os planos
das esquerdas? Vão voltar a dividir-se como no passado, umas tomando a posição
da repressão e outras, a da luta contra a repressão?
A segunda linha de reflexão tem igualmente muito a
ver com as revoluções de 1848 e consiste em como voltar a conectar a democracia
com as aspirações e as decisões dos cidadãos. Das palavras de ordem de 1848,
sobressaíam liberalismo e democracia. Liberalismo significava governo republicano,
separação ente estado e religião, liberdade de imprensa; democracia significava
sufrágio “universal” para os homens. Neste domínio, muito se avançou nos
últimos 150 anos. No entanto, as conquistas têm vindo a ser postas em causa nos
últimos 30 anos e nos últimos tempos a democracia mais parece uma casa fechada
ocupada por um grupo de extraterrestres que decide democraticamente pelos seus
interesses e ditatorialmente pelos interesses das grandes maiorias. Um regime
misto, uma democradura.
O movimento dos indignados e do occupy recusam a
expropriação da democracia e optam por tomar decisões por consenso nas suas
assembleias. São loucos ou são um sinal das exigências que vêm aí? As esquerdas
já terão pensado que se não se sentirem confortáveis com formas de democracia
de alta intensidade (no interior dos partidos e na república) esse será o sinal
de que devem retirar-se ou refundar-se?
Boaventura de
Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra (Portugal).
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto,
14/12/2011
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