‘Belo Monte é o símbolo do fim das instituições ambientais no Brasil’.
Apesar de o artigo 6 da Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho – OIT garantir o direito à consulta
prévia aos povos indígenas sempre que alguma medida legislativa ou
administrativa afetá-los, o acordo não está sendo cumprido pelo governo federal
brasileiro. “O erro” que interpreta o direito de consulta como um direito de
veto consiste, segundo a advogada Biviany Rojas Garzon, “precisamente em
interpretações limitadas da lei, que com o argumento de que uma minoria não
poderia vetar as decisões mais importantes do Estado são negados espaços reais
de participação obrigando aos índios a discutir fatos consumados”.
Em sua avaliação, o governo apenas ouve os
indígenas e ribeirinhos “na hora de definir o Plano Básico Ambiental – PBA”, em
vez de consultá-los durante o planejamento do projeto. “É um grave erro achar
que o licenciamento de empreendimentos é um lugar adequado para fazer consulta
sobre decisões que não são suscetíveis de mudança. Fazer isso é um ato de má
fé”. Referindo-se a Belo Monte, reitera: “Nesses últimos casos, o governo vai
consultar o que, se tudo já está decidido? É um ato de má fé chamar uma
consulta sem o intuito de consultar, somente reiterar uma decisão já adotada e
em fase de execução”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail
à IHU On-Line, Biviany Rojas Garzon enfatiza que “depois
de mais de 20 anos de redemocratização no Brasil, os direitos de uns valem mais
que os de outros, o setor energético continua blindado sem participação nenhuma
da sociedade civil, os processos de licenciamento ambiental são formais e
irrelevantes e as decisões políticas anulam a atuação do poder Judiciário
deixando povos indígenas e ribeirinhos indefensos diante do autoritarismo como
o atual governo brasileiro pretende executar seus planos de obras na Amazônia”.
Biviany Rojas Garzon é advogada e cientista
política, mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília – UnB e
assessora do Programa de Política e Direito do Instituto Socioambiental.
Confira
a entrevista.
IHU On-Line – Qual foi sua reação ao saber que
a desembargadora do Tribunal Regional Federal – TRF, Maria do Carmo, votou
contra a realização da Consulta Prévia dos povos indígenas no caso de Belo
Monte?
Biviany Rojas Garzon – Infelizmente, a
desembargadora Maria do Carmo teve pouquíssimo tempo para compreender o objeto
da ação. Ela foi convocada para participar do julgamento na última hora, no
lugar do desembargador titular João Batista Moreira, que passou mal poucos
minutos antes de seu início. A falta de conhecimento da desembargadora em
relação à matéria ficou comprovada durante a leitura de seu voto, superficial e
incoerente que tomou apenas 15 minutos.
A verdade é que Maria do Carmo proferiu tal
voto sem sequer ter lido a legislação específica aplicável ao tema, o que é, no
mínimo, temerário. A falta de compreensão acerca do projeto de engenharia da
usina e do objetivo do parágrafo 3º, artigo 231 da Constituição, e da própria
Convenção 169 levou a desembargadora a proferir um voto imprudente, num caso de
grande significância para o futuro não só dos povos indígenas do país, mas
também da democracia brasileira.
Maria do Carmo considerou suficiente
verificar no mapa que nem a barragem nem os reservatórios projetados estão
localizados no interior de terra indígena. Dessa forma, concluiu que a consulta
às comunidades afetadas não seria necessária porque, segundo sua interpretação,
nesse caso, a autorização para o Congresso Nacional seria dispensável. O que
simplesmente comprova sua falta de entendimento tanto do projeto como do
dispositivo constitucional que obriga ao congresso autorizar o aproveitamento
de recursos hídricos de terras indígenas para a geração de energia. No caso de
Belo Monte, o rio Xingu é desviado do interior das ierras indígenas Paquiçamba
e Arara da Volta Grande, o que é mais que suficiente para a aplicação do
dispositivo constitucional.
IHU On-Line – A desembargadora declarou que
“pouco importa quando os índios serão ouvidos, se antes ou depois da
autorização do Congresso”. Qual a importância deles serem ouvidos antes de se
iniciarem as obras?
Biviany Rojas Garzon – Provavelmente, foi a
falta de conhecimento sobre direitos indígenas que levou a desembargadora Maria
do Carmo a desconsiderar a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho – OIT, já incorporada à legislação brasileira. A simples leitura dessa
norma poderia ter evitado que a desembargadora cometesse graves impropriedades
jurídicas, tais como afirmar que a consulta tem um valor meramente informativo
e que ela pode ser realizada posteriormente à decisão legislativa que afeta
diretamente povos indígenas.
O artigo 6° da Convenção 169 afirma
explicitamente que o Estado tem a obrigação de “consultar os povos
interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de
suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas
ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.
O texto do artigo diz ainda que “as
consultas realizadas deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada
às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o
consentimento acerca das medidas propostas”.
A consulta deve existir a partir das
próprias decisões de planejamento que envolvem terras indígenas ou regiões no
entorno delas. É um grave erro achar que o licenciamento de empreendimentos é
um lugar adequado para fazer consulta sobre decisões que não são suscetíveis de
mudança. Fazer isso é um ato de má fé. O governo, que somente fala com os
índios na hora de definir o Plano Básico Ambiental – PBA, não está consultando
nada; somente está negociando mitigações e compensações de decisões sobre as
quais os povos indígenas não tiveram nenhum poder de incidência e que vão mudar
seus territórios, recursos e futuro coletivo para sempre.
O direito de consulta dos povos indígenas
não significa vetar, mas sim implica um poder incontestável de influência por
parte dos povos indígenas nas decisões administrativas e legislativas que os
afetam diretamente. Os acordos entre o governo e os povos indígenas são
vinculantes e devem ser respeitados pelas partes. Isso faz parte de um
princípio universal denominado pacta sunt servanda; ninguém deveria questionar
o fato de que o produto de um acordo é obrigatório, nem insistir em interpretar
isso como poder de veto para fazer aparecer a reclamação dos povos indígenas
como radicalismo político e incompetência de negociação. Essa interpretação que
justifica a negação do direito de consulta por considerar ele impraticável é
tendenciosa.
As decisões submetidas à consulta tem que
estar abertas a modificações. Não podem ser apresentadas decisões imutáveis ou
fatos consumados aos processos de consulta. Nesses últimos casos, o que o
governo vai consultar, visto que tudo já está decidido? É um ato de má fé
chamar uma consulta sem o intuito de realmente consultar, negociar e modificar
a decisão, objeto da consulta. Fazer o contrário é o que a desembargadora Maria
do Carmo propõe sobre Belo Monte: consultar um fato consumado!
No licenciamento ambiental, o poder de
influência dos povos indígenas está limitado às decisões sobre mitigação e
compensação de danos. Eles têm o direito a ser consultados sobre a própria
decisão de construir ou não os empreendimentos, não unicamente a aceitar as
medidas de mitigação. Por isso a importância da consulta no momento da
autorização do Congresso Nacional quando o projeto ainda está na fase de
planejamento, assim como a evidente necessidade de consultar as decisões que
fazem parte do processo de planejamento energético quando se avaliam bacias
hidrográficas com presença de povos indígenas. É claro que uma consulta bem
conduzida na fase do planejamento pode evitar que o Estado insista em
empreendimentos com altos custos socioambientais, ao mesmo tempo que pode
minimizar conflitos e prever alternativas para geração de energia em tempo
hábil para viabilizar sua implementação. Grande parte dos conflitos a respeito
tem sua explicação na forma em que o planejamento energético do país exclui
instâncias participativas e deliberativas com a sociedade civil. É irônico
afirmar isso, mas o principal problema do setor energético no Brasil é a
ausência absoluta de democracia tanto no planejamento como na execução, e não
só com relação aos povos indígenas, as também em relação à sociedade brasileira
como um todo.
IHU On-Line – A senhora esteve em Altamira
recentemente. Qual a situação das comunidades que moram na cidade? De que
maneira as obras da hidrelétrica estão modificando a região?
Biviany Rojas Garzon – O caos é total. Nada
funciona em Altamira. A cidade está enlouquecida. Se a empresa e o governo
tivessem cumprido suas responsabilidades com relação às “ações antecipatórias”,
que deviam preparar a região para receber o empreendimento, tudo poderia ser
muito diferente. Entre as condicionantes da Licença Prévia está incluída a
obrigação de preparar a região com obras de saneamento básico, infraestrutura,
saúde, educação, segurança pública etc. Nada disso foi feito. Devia acontecer
antes das obras começarem. Por que não aconteceu? Por que essa pressa toda, se
sabemos que a precariedade da presença do Estado região é incapaz de suportar
um aumento de mais de 100 mil pessoas em 5 anos? A crise é tão evidente e foi
tantas vezes advertida que a própria prefeitura de Altamira (historicamente a
favor da implantação do empreendimento) solicitou parar as obras até o
cumprimento dos acordos e compromissos das “ações antecipatórias” para mitigar
os impactos sobre a população da cidade e, mesmo assim, a licença de instalação
foi emitida pelo Ibama. Por quê? Muitas perguntas sem resposta.
Ninguém se explica para que foram
incorporadas 40 condicionantes socioambientais na Licença Prévia.
Independentemente de seu atendimento, o Ibama liberou as obras através da
emissão de um licença de instalação “parcial”, que nem existe na legislação
brasileira, e posteriormente emitiu uma licença de instalação integral apesar
de comprovar que as condicionantes da Licença Prévia não tinham sido atendidas.
Ninguém que acompanha o processo entendeu nada. Os pereceres técnicos do Ibama
e da Funai advertiram na época que as condições para instalar a obra não eram
adequadas, não obstante as presidências dos respectivos órgãos autorizam sua
instalação reiterando grande parte das condicionantes da Licença Prévia na
Licença de Instalação. Infelizmente, Belo Monte é muito pior que a obra em si;
ela é o símbolo do fim das instituições ambientais no Brasil. O licenciamento
ambiental e seus instrumentos de controle foram jogados no lixo na pressa de
construir a hidrelétrica a qualquer custo.
IHU On-Line – Como e quais comunidades
indígenas serão afetadas pela construção de Belo Monte?
Biviany Rojas Garzon – As terras indígenas
consideradas diretamente afetadas pela Funai são: Paquiçamba; Arara da Volta
Grande do Xingu (Maia); Juruna do km 17; Trincheira Bacajá, Kararaô, Arawaté do
Igarapé Ipixuna, Koatinemo, Cachoeira Seca, Arara e Apiterewa. Não obstante,
todos os povos indígenas da bacia do Xingu e as comunidades ribeirinhas e
extrativistas que moram na região terão que suportar as pressões derivadas do
adensamento populacional sem estrutura adequada na região. É necessário lembrar
que essa é a mesma região que ainda sofre os impactos da transamazônica e para
a qual a Funai ainda não conseguiu executar as condicionantes básicas e
anteriores à instalação do empreendimento, como a desintrusão das terras
indígenas Cachoeira Seca e Apiterewa. Não tem sido garantido aos povos locais
sequer a posse da suas terras em um contexto de acirramento dos conflitos
agrários pelo aumento populacional.
IHU On-Line – Quais são os principais
equívocos em torno da decisão de construir Belo Monte?
Biviany Rojas Garzon – O autoritarismo da
decisão, sem consultar os indígenas diretamente afetados, sem realizar
audiências públicas decentes e participativas, sem dar resposta aos estudos
independentes que questionavam o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de
Impacto Ambiental, sem se manifestar à sociedade civil, que resiste aos
barramentos dos rios na Amazônia e gostaria de ver a avaliação concreta de
alternativas para atender à demanda de energia do país. Belo Monte é uma obra
feita na força do poder e à margem da democracia.
IHU On-Line – Em que sentido Belo Monte
demonstra, como a senhora diz, “as fragilidades do Estado de Direito”
brasileiro?
Biviany Rojas Garzon – No sentido em que
todas as instituições democráticas construídas depois da ditadura foram
questionadas em sua integridade para insistir na construção da usina. Belo
Monte quer ser construído pelo governo Dilma, apesar da 12a Ação Civil Pública
do Ministério Público Federal; apesar de medidas cautelares da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos; apesar de pareceres técnicos do Ibama e da
Funai contrários ao empreendimento; apesar de não ter empreendedores privados
para tocar o empreendimento e garantir o financiamento público com o BNDES sem
avaliação de risco; apesar de não produzir toda a energia prometida; e apesar
dos direitos de mais de 300 mil pessoas que moram na região e que, hoje, são
vitimas do caos de uma obra mal planejada e autoritária. Depois de mais de 20
anos de redemocratização no Brasil, os direitos de uns valem mais do que os de
outros; o setor energético continua blindado sem participação nenhuma da
sociedade civil; os processos de licenciamento ambiental são formais e
irrelevantes e as decisões políticas anulam a atuação do poder Judiciário. Belo
Monte é o grande monstro para a democracia brasileira. O rio Xingu, as
populações ribeirinhas e os indígenas fazem parte de um patrimônio de
sociobiodiversidade que a Constituição Federal de 1988 reconheceu e valorou,
mas que o governo desdenha como um obstáculo ao “desenvolvimento do país”.
Fonte: Ecodebate,
14/12/2011 publicado pela IHU On-line,
parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
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