terça-feira, dezembro 06, 2011

o “cavalo de Tróia” capaz de destruir efetivamente o Estado social

O enigma da crise europeia e o sócio-metabolismo da barbárie
"Ocell de foc", de Max Ernst
por Giovanni Alves
A crise financeira de 2008 e seus desdobramentos nas crises das dívidas soberanas dos EUA e União Européia em 2011, tornaram-se meio privilegiado de afirmação daquilo que István Meszáros denominou a “grave tendência socioeconômica da equalização descendente da taxa de exploração diferencial”. Na verdade, a crise das dívidas soberanas tornou-se o “cavalo de Tróia” capaz de destruir efetivamente o Estado social no núcleo orgânico do pólo desenvolvido do capitalismo global. Os mercados financeiros impõem o ajuste neoliberal na União Européia. O Estado de Bem-estar social deve se transformar em Estado de Austeridade Social sob direção da disciplina fiscal a serviço dos interesses do capital financeiro globalizado.
Na verdade, sob pressão da concorrência internacional, principalmente com a entrada da China no mercado mundial, e da massa de capital concentrado liberalizado pelas políticas de desregulamentação financeira, operou-se o movimento de redução dos direitos dos trabalhadores assalariados conquistados na era de ouro do capitalismo.
A tendência geral de equalização descendente da taxa de exploração diferencial é um dos traços estruturais da nova dinâmica da economia global nas condições da crise estrutural do capital. As políticas neoliberais, conduzidas tanto por governos da esquerda social-democrata, quanto governos da direita neoliberal no começo da década de 1980, contribuíram para a dominância do capital financeiro no centro orgânico do sistema mundial do capital nos últimos trinta anos – os “trinta anos perversos” em contraposição aos “trinta gloriosos” do pós-guerra.
Ao desmontarem as estruturas sociais e políticas do anti-valor, construídas no pós-guerra sob o nome de Welfare State, o neoliberalismo ativou a lei do valor no plano do mercado mundial. A dominância do capital financeiro e seus espasmos especulativos tornou-se o veículo propício para a afirmação da tendência geral de equalização descendente da taxa de exploração diferencial, impulsionando, deste modo, com vigor, a precarização estrutural do trabalho sob o mito da flexibilidade.
As crises financeiras que ocorrem, principalmente a partir de 1990, por conta da financeirização da riqueza capitalista e da hegemonia do capital financeiro no processo de acumulação de riqueza fictícia, e as políticas de austeridade neoliberal baseadas na flexibilização do estatuto salarial e desmonte do Estado social, tornaram-se meios privilegiados para afirmar, no plano do mercado mundial, a grave tendência de equalização descendente da taxa de exploração diferencial. É a vigência desta tendência estrutural que explica, portanto, a ampliação do desemprego de massa e a precariedade laboral nos EUA e na União Européia, pelo menos nos últimos trinta anos.
Como tendência estrutural do sistema global do capital, a equalização descendente das taxas de exploração diferencial impulsiona a corrosão irremediável, lenta e persistente, dos pilares sociais do capitalismo europeu, principalmente nos países da Europa mediterrânea, com posição em desvantagem no plano da concorrência mundial. Ela tende a acelerar, por exemplo, o débâcle do Estado social europeu que inspirou no pós-guerra, as forças políticas e sociais que cultivam o ideal da social-democracia baseada na crença de conciliação entre capitalismo e bem-estar social.
O débâcle do capitalismo social-democrata com a crença ilusória do capitalismo ético ou capitalismo social capaz de realizar as promessas civilizatórias, tornou-se cada vez mais explícito na medida em que o movimento do capital sob hegemonia financeira corroeu as bases materiais que sustentaram a ilusão social-democrata e corrompeu os próprios partidos socialistas e sociais-democratas e sua intelectualidade orgânica, inseridos na defesa intransigente da ordem burguesa liberal-democrática.  
Podemos discriminar como pilares do modelo social europeu construído na etapa de ascensão histórica do capital (1) a disseminação do consumo de massa; (2) a presença do sistema de seguridade social e (3) a democracia representativa como sistema (e ideologia) de legitimidade política da ordem burguesa.
O tripé do capitalismo social se constituiu na Europa Ocidental no período imediato do pós-guerra nas condições de ascensão histórica do capital sob a vigência de um determinado “equilíbrio de força entre as classes”, baseado, por um lado, na presença de sindicatos de massa e partidos social-democratas e comunistas com base operária e de “classe média” assalariada, legitimando as “regras do jogo” democrático liberal; e, por outro lado, a conjuntura geopolítica singular da “guerra fria” entre EUA e URSS com ameaça perene do comunismo soviético.
Deste modo, a ordem burguesa hegemônica na Europa Ocidental do pós-guerra se constituiu como Estado do bem-estar social no interior do “círculo virtuoso” da acumulação de capital baseado no compromisso fordista-keynesiano, com a presença de organizações sindicais e políticas da esquerda social-democrata e comunista organizadas na defesa do consumo de massa e do sistema de seguridade social, aceitando as regras do jogo democrático representativo sob o contrapeso da ordem internacional bipolar sob ameaça do poder soviético.
Este “equilíbrio de forças de classe” consolidou na Europa Ocidental, de 1946 a 1976, os pilares da ilusão social-democrata baseado na crença da sustentabilidade civilizatória do capitalismo. Ao mesmo tempo, contribuiu para a ascensão da social-democracia como força política hegemônica baseada numa perspectiva de “classe média” assalariada. Na verdade, o projeto de construção social europeu paralisou-se na perspectiva do em-si da classe, seduzida pelo consumo de massa e fetichismo da mercadoria.
O modelo social europeu tornou-se modelo político da ideologia da concertação social disseminada nos países do capitalismo em desenvolvimento. A elevação do padrão de vida social europeu no pós-guerra sob os auspícios do capitalismo social-democrata tornou-se a prova irrefutável da possibilidade histórica de conciliar capitalismo e bem-estar social, levando, deste modo, a maior parte da intelectualidade europeia de “classe média” a renunciar à perspectiva crítica do capitalismo e a necessidade histórica da luta de classes.  
Entretanto, na medida em que as contradições internas da acumulação fordista-keynesiana conduziram à crise estrutural do capital em meados da década de 1970, e ocorreu o desenvolvimento da mundialização do capital predominantemente financeirizada, ocorreu, no plano da objetividade do capital, um processo de corrosão paulatina dos pilares da ordem burguesa social-democrata europeia (consumo, seguridade social e democracia). 
Com a crise estrutural do capital em 1973, emerge a mundialização do capital sob dominância financeira. De 1973 a 1980 temos um período de intensa luta de classe no centro orgânico do sistema mundial do capital. A década de 1970 caracteriza-se pela ruptura do equilíbrio de forças entre as classes no interior dos países capitalistas que garantiram o compromisso social-democrata. Intensifica-se a ofensiva do capital na produção visando destruir as bases sindicais operárias e a vitória das forças políticas conservadoras, primeiro na Inglaterra (com Margareth Thatcher) e depois nos EUA (com Ronald Reagan), impulsionam a adoção de políticas neoliberais que iriam se consolidar no decorrer da década de 1980.
A hegemonia neoliberal na década de 1980 produziu irremediavelmente a corrupção e declínio da social-democracia europeia, lastro político do capitalismo social. Ele iria se intensificar a partir de 1990 com o débâcle do arco geopolítico constituído no pós-guerra imediato: a queda do Muro de Berlim em 1989 e a implosão da URSS em 1991 aprofundariam os impasses estruturais da ordem burguesa europeia constituída sob o Estado social.
Se, de 1946 a 1973, com a etapa de ascensão histórica do capital, presenciamos a metamorfose da social-democracia, transformando-se numa força política de preservação da ordem burguesa imperial com hegemonia na “classe média” assalariada, a partir de 1980, na etapa de crise estrutural do capital, assistimos à corrupção e declínio ideológico dos partidos social-democratas que, nas condições da acumulação fordista exerciam o contrapeso à voracidade do capital no pólo europeu mais desenvolvido. Por outro lado, os partidos comunistas vêem a corrosão das bases operárias e da identidade de classe por conta da ofensiva do capital na produção e o poder da ideologia com a vigência do capitalismo manipulatário.
Deste modo, presenciamos com vigor, principalmente a partir de 1980, a intensificação e amplitude, na Europa Ocidental, da ofensiva do capital nas várias instâncias da economia (financeirização), política (neoliberalismo) e ideologia (pós-modernismo e neopositivismo), conduzindo a corrosão das bases sociais e políticas de defesa dos interesses da classe operária em-si.
A corrupção ideológica (e política) dos partidos socialistas e social-democratas inseridos na ordem burguesa sob crise estrutural foi tão-somente um dos elementos compositivos do processo mais amplo de reestruturação capitalista conservadora que ocorreu a partir de 1980. Por exemplo, no plano social, a ideologia do consumo de massa com o fetichismo da mercadoria, sedimentado na expansão capitalista do pós-guerra, contribuiu para a cegueira ideológica dos “estratos médios” do proletariado organizado – a “classe média” assalariada – e seus intelectuais orgânicos comprometidos com os ideais social-democratas.
Na medida em que se opera, no plano do pensamento, a disseminação da ideologia do pós-modernismo e do neopositivismo, assiste-se, no pólo intelectual mais desenvolvido do Ocidente, a perda da capacidade crítica de amplos estratos da intelectualidade europeia, que incorporam como horizonte estratégico único, a defesa da ordem burguesa europeia baseada nos pilares de consumo de massa, seguridade social e democracia representativa de cariz liberal.
Finalmente, com a queda do Muro de Berlim em 1989 e a implosão da URSS em 1991, assistimos à derrocada do arco geopolítico que propiciou, como contrapeso à voracidade do capital no plano das relações internacionais, a construção do Estado social social europeu. Alterou-se efetivamente o equilíbrio de forças de classe que garantiu o compromisso fordista do pós-guerra na Europa Ocidental e a construção do capitalismo social-democrata. Eliminou-se o contrapeso ideológico que operava como legitimador geopolítico do Estado social europeu. Por outro lado, impulsionou-se, para um novo patamar – com a unificação alemã – a construção da União Europeia sob hegemonia neoliberal.
Portanto, a partir de 1990, com o fim da Guerra fria, surgem novas oportunidades para a absorção do capital monetário excedentário. Por conta da queda da lucratividade das corporações industriais, acirra-se, naquele momento, a concorrência no plano mundial. Ao mesmo tempo, aumenta a instabilidade sistêmica da economia global em virtude da financeirização da riqueza capitalista. A mundialização financeira origina-se do crescimento da liquidez excedentária no centro capitalista onde se constata uma massa monetária cada vez maior a procura de algo lucrativo em que investir. 
A tendência para a financeirização, que se põe com vigor na década de 1980, expõe de forma candente, o problema da absorção de excedentes de capital como o problema crucial do capitalismo global (como salientou David Harvey no seu livro O enigma do capital, que a Boitempo acaba de lançar no Brasil). A aceleração histórica da integração europeia sob dominância neoliberal na década de 1990, com a vigência da União Européia com uma moeda única (o Euro), ocorre no interior do capitalismo global com dominância financeira, visando reconfigurar territórios de investimentos sob hegemonia do capital franco-alemão. Na verdade, a aceleração histórica das políticas de integração regional a partir de 1990 – União Européia, Nafta, MERCOSUL etc. – visam criar escoadouros lucrativos para a operação das massas monetária excedentária do capital financeiro global.
No caso da União Européia ela tornou-se projeto do protagonismo da burguesia financeira europeia sob hegemonia franco-alemã num cenário de reconfiguração radical da concorrência intercapitalista global com a entrada da China no mercado mundial. Na verdade, a ascensão do China no cenário da concorrência capitalista promoveu alterações tectônicas da concorrência capitalista global com impactos na divisão internacional do trabalho. Ela alterou o mapa da atividade produtiva e da acumulação de riqueza mundial.
Deste modo, de 1991 a 2011, em virtude da reconfiguração do capitalismo global sob dominância neoliberal, assistimos no núcleo orgânico do sistema mundial do capital, uma nova escalada de ofensiva do capital que – no plano do capitalismo europeu – conduziu a corrosão irremediável dos pilares do modelo social europeu construídos no período de ascensão histórica do capital.
A mundialização do capital sob dominância financeira e o novo cenário geopolítico a partir do débâcle do sistema soviético, corroeu irremediavlemente a materialidade do anti-valor, com a social-democracia, por exemplo, aproximando-se cada vez mais do centro conservador neoliberal, visando disputar com ele, o eleitorado de “classe média” assalariada “capturado” pelos valores-fetiches e expectativas de mercado da ordem burguesa hipertardia.
Na medida em que alterou-se, a favor do capital, o equilíbrio de forças entre as classes, tanto no plano nacional, quanto no plano internacional, opera-se com vigor a tendência de equalização descendente das taxas de exploração diferencial.  De 1991 a 2011, mesmo nos breves períodos de crescimento das economias capitalistas europeias, conduzido pela indústria do endividamento público, torna-se perceptível a persistência da mancha de precarização do trabalho, não apenas com taxas inerciais de desemprego total, mas com o surgimento da nova precariedade salarial.
A introdução da moeda única (o Euro) sob a dominância neoliberal contribuiu para acelerar a derrocada do modelo social europeu, principalmente nos países da Europa mediterrânea com economias frágeis no cenário de competitividade interna da União Europeia.  A crise financeira de 2008 que se origina dos EUA – o pólo mais desenvolvido do capitalismo neoliberal e seu desdobramento com a crise das dívidas soberanas europeias, cumpre a função histórica de realizar por meio da austeridade neoliberal imposta pela troika – FMI, BCE e Comissão Européia – a necessária equalização descendente das taxas de exploração diferencial no plano do mercado mundial, preservando, deste modo, o projeto da União Européia como construção hegemônica da grande burguesia financeira franco-alemã.
Eis portanto, o desvelamento do enigma da crise europeia: a crise financeira da Zona do Euro e as medidas de austeridade neoliberal impostas pela troika (BCE, CE e FMI) na borda periférica da União Europeia possuem como função histórica, a reprodução da ordem burguesa europeia sob dominância financeira no plano mundial, sepultando de vez as promessas civilizatórias oriundas da fase de ascensão histórica do capital.   
Na crise financeira de 2008, tanto nos EUA, quanto na União Europeia, os governos conservadores ou socialistas, correram para socorrer os bancos, mesmo que isso significasse comprometer o fundo público. Na verdade, ocorreu, neste momento, uma das mais impressionantes transferências de riquezas do fundo público para o capital financeiro. O colapso do mercado de crédito expôs a derrocada dos fundos públicos nos países capitalistas europeus mais frágeis no plano da competitividade internacional. A crise da dívida soberana sob a gestão das agências de rating, acelerou na borda periférica da União Europeia, o programa de desmonte irremediável do Estado social por meio da austeridade neoliberal.
A derrocada do consumo de massa atingiu, nesses países, o amplo contingente de desempregados e trabalhadores assalariados precários, conjunto social que cresceu nos últimos vinte anos, e principalmente amplos contingentes da “classe média” assalariada vinculada a função pública sob ameaça da programática neoliberal; a corrosão da seguridade social em virtude da restrição orçamentária a título de pagamento da impagável dívida pública expõe a ampla parcela de trabalhadores assalariados desempregados – e precários – a nova pobreza urbana; e a desmistificação da democracia representativa como ditadura do capital.
É no contexto de crise social e crise de legitimidade política da democracia liberal representativa, com altos índices de abstenções nas eleições parlamentares, que surgem movimentos sociais de “indignados” que contestam a nova ordem burguesa hipertardia. Deste modo, as políticas de austeridade neoliberal é o canto de cisne dos pilares do modelo social europeu, com a derrocada do tripé consumo de massa, seguridade social e democracia representativa.
Eis o cenário da barbárie social que caracteriza o capitalismo histórico em sua fase de crise estrutural do capital. A barbárie social caracteriza-se pela vigência candente das contradições sociais do sistema mundial do capital com a intensificação e ampliação do estranhamento social, isto é, a contradição insana entre o desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, o desenvolvimento da capacidade humana, e o desenvolvimento da personalidade humana.
Na época da barbárie social, o desenvolvimento da capacidade humana que se manifesta no desenvolvimento espetacular das forças produtivas do trabalho social, tende a potencializar tão-somente capacidades singulares, desfigurando, aviltando etc. a personalidade do homem-que-trabalha.
A restrição do consumo, com a crise da “classe média” assalariada, o corte da seguridade social e crise da democracia representativa apontam para limites estruturais da ordem social-democrata europeia. A crise de credibilidade da democracia política burguesa aprofunda-se na medida em que não força alternativas ao esvaziamento do projeto reformista.
Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica.
Fonte: Blog da Boitempo, 05/12/2011

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