"Ocell de foc", de Max Ernst |
A crise financeira de 2008 e
seus desdobramentos nas crises das dívidas soberanas dos EUA e União Européia
em 2011, tornaram-se meio privilegiado de afirmação daquilo que István Meszáros
denominou a “grave tendência socioeconômica da equalização descendente da taxa
de exploração diferencial”. Na verdade, a crise das dívidas soberanas tornou-se
o “cavalo de Tróia” capaz de destruir efetivamente o Estado social no núcleo
orgânico do pólo desenvolvido do capitalismo global. Os mercados financeiros
impõem o ajuste neoliberal na União Européia. O Estado de Bem-estar social deve
se transformar em Estado de Austeridade Social sob direção da disciplina fiscal
a serviço dos interesses do capital financeiro globalizado.
Na verdade, sob pressão da
concorrência internacional, principalmente com a entrada da China no mercado
mundial, e da massa de capital concentrado liberalizado pelas políticas de
desregulamentação financeira, operou-se o movimento de redução dos direitos dos
trabalhadores assalariados conquistados na era de ouro do capitalismo.
A tendência geral de
equalização descendente da taxa de exploração diferencial é um dos traços
estruturais da nova dinâmica da economia global nas condições da crise
estrutural do capital. As políticas neoliberais, conduzidas tanto por governos
da esquerda social-democrata, quanto governos da direita neoliberal no começo
da década de 1980, contribuíram para a dominância do capital financeiro no
centro orgânico do sistema mundial do capital nos últimos trinta anos – os
“trinta anos perversos” em contraposição aos “trinta gloriosos” do pós-guerra.
Ao desmontarem as estruturas
sociais e políticas do anti-valor, construídas no pós-guerra sob o nome de
Welfare State, o neoliberalismo ativou a lei do valor no plano do mercado
mundial. A dominância do capital financeiro e seus espasmos especulativos
tornou-se o veículo propício para a afirmação da tendência geral de equalização
descendente da taxa de exploração diferencial, impulsionando, deste modo, com
vigor, a precarização estrutural do trabalho sob o mito da flexibilidade.
As crises financeiras que
ocorrem, principalmente a partir de 1990, por conta da financeirização da
riqueza capitalista e da hegemonia do capital financeiro no processo de
acumulação de riqueza fictícia, e as políticas de austeridade neoliberal
baseadas na flexibilização do estatuto salarial e desmonte do Estado social,
tornaram-se meios privilegiados para afirmar, no plano do mercado mundial, a
grave tendência de equalização descendente da taxa de exploração diferencial. É
a vigência desta tendência estrutural que explica, portanto, a ampliação do
desemprego de massa e a precariedade laboral nos EUA e na União Européia, pelo
menos nos últimos trinta anos.
Como tendência estrutural do
sistema global do capital, a equalização descendente das taxas de exploração
diferencial impulsiona a corrosão irremediável, lenta e persistente, dos
pilares sociais do capitalismo europeu, principalmente nos países da Europa
mediterrânea, com posição em desvantagem no plano da concorrência mundial. Ela
tende a acelerar, por exemplo, o débâcle do Estado social europeu que inspirou
no pós-guerra, as forças políticas e sociais que cultivam o ideal da
social-democracia baseada na crença de conciliação entre capitalismo e
bem-estar social.
O débâcle do capitalismo social-democrata com a
crença ilusória do capitalismo ético ou capitalismo social capaz de realizar as
promessas civilizatórias, tornou-se cada vez mais explícito na medida em que o
movimento do capital sob hegemonia financeira corroeu as bases materiais que
sustentaram a ilusão social-democrata e corrompeu os próprios partidos
socialistas e sociais-democratas e sua intelectualidade orgânica, inseridos na
defesa intransigente da ordem burguesa liberal-democrática.
Podemos discriminar como
pilares do modelo social europeu construído na etapa de ascensão histórica do
capital (1) a disseminação do consumo de massa; (2) a presença do sistema de
seguridade social e (3) a democracia representativa como sistema (e ideologia)
de legitimidade política da ordem burguesa.
O tripé do capitalismo social
se constituiu na Europa Ocidental no período imediato do pós-guerra nas
condições de ascensão histórica do capital sob a vigência de um determinado
“equilíbrio de força entre as classes”, baseado, por um lado, na presença de
sindicatos de massa e partidos social-democratas e comunistas com base operária
e de “classe média” assalariada, legitimando as “regras do jogo” democrático
liberal; e, por outro lado, a conjuntura geopolítica singular da “guerra fria”
entre EUA e URSS com ameaça perene do comunismo soviético.
Deste modo, a ordem burguesa
hegemônica na Europa Ocidental do pós-guerra se constituiu como Estado do
bem-estar social no interior do “círculo virtuoso” da acumulação de capital
baseado no compromisso fordista-keynesiano, com a presença de organizações
sindicais e políticas da esquerda social-democrata e comunista organizadas na
defesa do consumo de massa e do sistema de seguridade social, aceitando as
regras do jogo democrático representativo sob o contrapeso da ordem
internacional bipolar sob ameaça do poder soviético.
Este “equilíbrio de forças de
classe” consolidou na Europa Ocidental, de 1946 a 1976, os pilares da
ilusão social-democrata baseado na crença da sustentabilidade civilizatória do
capitalismo. Ao mesmo tempo, contribuiu para a ascensão da social-democracia
como força política hegemônica baseada numa perspectiva de “classe média”
assalariada. Na verdade, o projeto de construção social europeu paralisou-se na
perspectiva do em-si da classe, seduzida pelo consumo de massa e fetichismo da
mercadoria.
O modelo social europeu
tornou-se modelo político da ideologia da concertação social disseminada nos
países do capitalismo em
desenvolvimento. A elevação do padrão de vida social europeu
no pós-guerra sob os auspícios do capitalismo social-democrata tornou-se a prova
irrefutável da possibilidade histórica de conciliar capitalismo e bem-estar
social, levando, deste modo, a maior parte da intelectualidade europeia de
“classe média” a renunciar à perspectiva crítica do capitalismo e a necessidade
histórica da luta de classes.
Entretanto, na medida em que as
contradições internas da acumulação fordista-keynesiana conduziram à crise
estrutural do capital em meados da década de 1970, e ocorreu o desenvolvimento
da mundialização do capital predominantemente financeirizada, ocorreu, no plano
da objetividade do capital, um processo de corrosão paulatina dos pilares da
ordem burguesa social-democrata europeia (consumo, seguridade social e
democracia).
Com a crise estrutural do
capital em 1973, emerge a mundialização do capital sob dominância financeira.
De 1973 a
1980 temos um período de intensa luta de classe no centro orgânico do sistema
mundial do capital. A década de 1970 caracteriza-se pela ruptura do equilíbrio
de forças entre as classes no interior dos países capitalistas que garantiram o
compromisso social-democrata. Intensifica-se a ofensiva do capital na produção
visando destruir as bases sindicais operárias e a vitória das forças políticas
conservadoras, primeiro na Inglaterra (com Margareth Thatcher) e depois nos EUA
(com Ronald Reagan), impulsionam a adoção de políticas neoliberais que iriam se
consolidar no decorrer da década de 1980.
A hegemonia neoliberal na
década de 1980 produziu irremediavelmente a corrupção e declínio da
social-democracia europeia, lastro político do capitalismo social. Ele iria se
intensificar a partir de 1990 com o débâcle do arco geopolítico constituído no
pós-guerra imediato: a queda do Muro de Berlim em 1989 e a implosão da URSS em
1991 aprofundariam os impasses estruturais da ordem burguesa europeia
constituída sob o Estado social.
Se, de 1946 a 1973, com a etapa de
ascensão histórica do capital, presenciamos a metamorfose da social-democracia,
transformando-se numa força política de preservação da ordem burguesa imperial
com hegemonia na “classe média” assalariada, a partir de 1980, na etapa de
crise estrutural do capital, assistimos à corrupção e declínio ideológico dos
partidos social-democratas que, nas condições da acumulação fordista exerciam o
contrapeso à voracidade do capital no pólo europeu mais desenvolvido. Por outro
lado, os partidos comunistas vêem a corrosão das bases operárias e da
identidade de classe por conta da ofensiva do capital na produção e o poder da
ideologia com a vigência do capitalismo manipulatário.
Deste modo, presenciamos com
vigor, principalmente a partir de 1980, a intensificação e amplitude, na Europa
Ocidental, da ofensiva do capital nas várias instâncias da economia
(financeirização), política (neoliberalismo) e ideologia (pós-modernismo e
neopositivismo), conduzindo a corrosão das bases sociais e políticas de defesa
dos interesses da classe operária em-si.
A corrupção ideológica (e
política) dos partidos socialistas e social-democratas inseridos na ordem
burguesa sob crise estrutural foi tão-somente um dos elementos compositivos do
processo mais amplo de reestruturação capitalista conservadora que ocorreu a
partir de 1980. Por exemplo, no plano social, a ideologia do consumo de massa
com o fetichismo da mercadoria, sedimentado na expansão capitalista do pós-guerra,
contribuiu para a cegueira ideológica dos “estratos médios” do proletariado
organizado – a “classe média” assalariada – e seus intelectuais orgânicos
comprometidos com os ideais social-democratas.
Na medida em que se opera, no
plano do pensamento, a disseminação da ideologia do pós-modernismo e do
neopositivismo, assiste-se, no pólo intelectual mais desenvolvido do Ocidente,
a perda da capacidade crítica de amplos estratos da intelectualidade europeia,
que incorporam como horizonte estratégico único, a defesa da ordem burguesa
europeia baseada nos pilares de consumo de massa, seguridade social e
democracia representativa de cariz liberal.
Finalmente, com a queda do Muro
de Berlim em 1989 e a implosão da URSS em 1991, assistimos à derrocada do arco geopolítico
que propiciou, como contrapeso à voracidade do capital no plano das relações
internacionais, a construção do Estado social social europeu. Alterou-se
efetivamente o equilíbrio de forças de classe que garantiu o compromisso
fordista do pós-guerra na Europa Ocidental e a construção do capitalismo
social-democrata. Eliminou-se o contrapeso ideológico que operava como
legitimador geopolítico do Estado social europeu. Por outro lado,
impulsionou-se, para um novo patamar – com a unificação alemã – a construção da
União Europeia sob hegemonia neoliberal.
Portanto, a partir de 1990, com
o fim da Guerra fria, surgem novas oportunidades para a absorção do capital
monetário excedentário. Por conta da queda da lucratividade das corporações
industriais, acirra-se, naquele momento, a concorrência no plano mundial. Ao
mesmo tempo, aumenta a instabilidade sistêmica da economia global em virtude da
financeirização da riqueza capitalista. A mundialização financeira origina-se
do crescimento da liquidez excedentária no centro capitalista onde se constata
uma massa monetária cada vez maior a procura de algo lucrativo em que
investir.
A tendência para a
financeirização, que se põe com vigor na década de 1980, expõe de forma
candente, o problema da absorção de excedentes de capital como o problema
crucial do capitalismo global (como salientou David Harvey no seu livro O
enigma do capital, que a Boitempo acaba de lançar no Brasil). A
aceleração histórica da integração europeia sob dominância neoliberal na década
de 1990, com a vigência da União Européia com uma moeda única (o Euro), ocorre
no interior do capitalismo global com dominância financeira, visando
reconfigurar territórios de investimentos sob hegemonia do capital
franco-alemão. Na verdade, a aceleração histórica das políticas de integração
regional a partir de 1990 – União Européia, Nafta, MERCOSUL etc. – visam criar
escoadouros lucrativos para a operação das massas monetária excedentária do
capital financeiro global.
No caso da União Européia ela
tornou-se projeto do protagonismo da burguesia financeira europeia sob
hegemonia franco-alemã num cenário de reconfiguração radical da concorrência
intercapitalista global com a entrada da China no mercado mundial. Na verdade,
a ascensão do China no cenário da concorrência capitalista promoveu alterações
tectônicas da concorrência capitalista global com impactos na divisão
internacional do trabalho. Ela alterou o mapa da atividade produtiva e da
acumulação de riqueza mundial.
Deste modo, de 1991 a 2011, em virtude da
reconfiguração do capitalismo global sob dominância neoliberal, assistimos no
núcleo orgânico do sistema mundial do capital, uma nova escalada de ofensiva do
capital que – no plano do capitalismo europeu – conduziu a corrosão
irremediável dos pilares do modelo social europeu construídos no período de
ascensão histórica do capital.
A mundialização do capital sob
dominância financeira e o novo cenário geopolítico a partir do débâcle do sistema soviético, corroeu
irremediavlemente a materialidade do anti-valor, com a social-democracia, por
exemplo, aproximando-se cada vez mais do centro conservador neoliberal, visando
disputar com ele, o eleitorado de “classe média” assalariada “capturado” pelos
valores-fetiches e expectativas de mercado da ordem burguesa hipertardia.
Na medida em que alterou-se, a
favor do capital, o equilíbrio de forças entre as classes, tanto no plano
nacional, quanto no plano internacional, opera-se com vigor a tendência de
equalização descendente das taxas de exploração diferencial. De 1991 a 2011, mesmo nos
breves períodos de crescimento das economias capitalistas europeias, conduzido
pela indústria do endividamento público, torna-se perceptível a persistência da
mancha de precarização do trabalho, não apenas com taxas inerciais de desemprego
total, mas com o surgimento da nova precariedade salarial.
A introdução da moeda única (o
Euro) sob a dominância neoliberal contribuiu para acelerar a derrocada do
modelo social europeu, principalmente nos países da Europa mediterrânea com
economias frágeis no cenário de competitividade interna da União
Europeia. A crise financeira de 2008 que se origina dos EUA – o pólo mais
desenvolvido do capitalismo neoliberal e seu desdobramento com a crise das dívidas
soberanas europeias, cumpre a função histórica de realizar por meio da
austeridade neoliberal imposta pela troika – FMI, BCE e Comissão Européia – a
necessária equalização descendente das taxas de exploração diferencial no plano
do mercado mundial, preservando, deste modo, o projeto da União Européia como
construção hegemônica da grande burguesia financeira franco-alemã.
Eis portanto, o desvelamento do
enigma da crise europeia: a crise financeira da Zona do Euro e as medidas de
austeridade neoliberal impostas pela troika (BCE, CE e FMI) na borda periférica
da União Europeia possuem como função histórica, a reprodução da ordem burguesa
europeia sob dominância financeira no plano mundial, sepultando de vez as
promessas civilizatórias oriundas da fase de ascensão histórica do
capital.
Na crise financeira de 2008,
tanto nos EUA, quanto na União Europeia, os governos conservadores ou
socialistas, correram para socorrer os bancos, mesmo que isso significasse
comprometer o fundo público. Na verdade, ocorreu, neste momento, uma das mais
impressionantes transferências de riquezas do fundo público para o capital
financeiro. O colapso do mercado de crédito expôs a derrocada dos fundos
públicos nos países capitalistas europeus mais frágeis no plano da
competitividade internacional. A crise da dívida soberana sob a gestão das
agências de rating, acelerou na borda periférica da União Europeia, o programa
de desmonte irremediável do Estado social por meio da austeridade neoliberal.
A derrocada do consumo de massa
atingiu, nesses países, o amplo contingente de desempregados e trabalhadores
assalariados precários, conjunto social que cresceu nos últimos vinte anos, e
principalmente amplos contingentes da “classe média” assalariada vinculada a
função pública sob ameaça da programática neoliberal; a corrosão da seguridade
social em virtude da restrição orçamentária a título de pagamento da impagável
dívida pública expõe a ampla parcela de trabalhadores assalariados
desempregados – e precários – a nova pobreza urbana; e a desmistificação da
democracia representativa como ditadura do capital.
É no contexto de crise social e
crise de legitimidade política da democracia liberal representativa, com altos
índices de abstenções nas eleições parlamentares, que surgem movimentos sociais
de “indignados” que contestam a nova ordem burguesa hipertardia. Deste modo, as
políticas de austeridade neoliberal é o canto de cisne dos pilares do modelo
social europeu, com a derrocada do tripé consumo de massa, seguridade social e
democracia representativa.
Eis o cenário da barbárie
social que caracteriza o capitalismo histórico em sua fase de crise estrutural
do capital. A barbárie social caracteriza-se pela vigência candente das
contradições sociais do sistema mundial do capital com a intensificação e
ampliação do estranhamento social, isto é, a contradição insana entre o
desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, o desenvolvimento da
capacidade humana, e o desenvolvimento da personalidade humana.
Na época da barbárie social, o
desenvolvimento da capacidade humana que se manifesta no desenvolvimento
espetacular das forças produtivas do trabalho social, tende a potencializar
tão-somente capacidades singulares, desfigurando, aviltando etc. a
personalidade do homem-que-trabalha.
A restrição do consumo, com a
crise da “classe média” assalariada, o corte da seguridade social e crise da
democracia representativa apontam para limites estruturais da ordem
social-democrata europeia. A crise de credibilidade da democracia política
burguesa aprofunda-se na medida em que não força alternativas ao esvaziamento
do projeto reformista.
Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em
sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com
bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho
(RET) e do Projeto Tela Crítica.Fonte: Blog da Boitempo, 05/12/2011
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