Os Dois Corpos do Rei – Um estudo sobre teologia medieval*
por Sabrina Evangelista Medeiros**
A proposta de Ernest Kantorowicz é recuperar nas tradições medieval e moderna o corpo místico que envolve a figura do rei nas cortes da Europa, em especial, a inglesa. O nome da obra, Os Dois Corpos do Rei - publicada pela primeira vez na altura de 1958 - refere-se fundamentalmente à característica dupla da imagem do rei, dividida entre a sua existência pública e a pessoal, e perpetuada através dos embates jurídicos, filosóficos e religiosos.
Para tal, no Capítulo I, o primeiro dos corpos do rei aparece enquanto seu corpo natural, sustentado nas efemeridades humanas, calcado nos defeitos, infantilidades e apelos naturais ao homem. O segundo dos corpos, o corpo político, supera o primeiro no sentido em que é ele possuidor do poder da verdade, da decisão, da legitimidade, o que o torna necessariamente superior às instâncias naturais que, de certa forma, fazem dos homens de natureza igual. De certo modo, o corpo político revela-se possuidor de uma mistificação dogmática que o faz indiscutível e eterno. O ritual de morte do corpo natural, assim, não seria o mesmo em relação ao corpo político, arraigado na migração da alma, na transferência, para outro homem, da esfera do corpo político - hereditariamente no caso das cortes.
Nesse sentido, a predominância do corpo político sobre o natural se caracteriza pela destreza com que os juízes a utilizam na defesa das ações das suas respectivas cortes. Durante o período elisabetano, por exemplo, os julgamentos citados diziam respeito às questões de terra principalmente, dando margem às interpretações variadas que davam conta de discernir entre o comportamento do rei em seu corpo natural e seu corpo político. Na ocasião em que o rei, em sua qualidade natural tendo ainda a menoridade, ordenasse a incorporação de determinada extensão de terra, sua pouca idade não impediria, porém, o exercício legítimo que é parte de seu corpo político - o que por fim, validava a iniciativa pela prerrogativa política de seu decreto.
No entanto, ao mesmo tempo, na ocasião de ter de defendê-lo da requisição de anexação de suas propriedades em função do processante ter-lhe pago, na qualidade de rei, as taxas devidas, outros juízes o defenderiam argumentando que seu corpo político não poderia desvincular-se de seu corpo natural - proprietário, na ocasião, daquelas terras – pois compunham um corpo só, de capacidades limitadas por um só ser. E, neste caso, a propriedade requerida não passaria ao requerente, mas continuaria sob domínio do rei - em sua existência natural.
Não obstante à existência de capacidades distintas, os dois corpos de um rei estão mutuamente vinculados à existência um do outro, o que os faz dependentes e componentes de um só corpo. Se “dois corpos” podem confundir teleologicamente o conteúdo que se pretende expressar, teologicamente, o conceito de duas naturezas dá conta do significado e da origem mística do termo. Por isso, essa teoria caracterizou-se, sobretudo nos séculos XII e XIII, como a “Teologia da Realeza”, abrigando o que o autor chamou de “Cristologia Real” (p.27) para denominar a ressurgência do princípio religioso das duas naturezas em meio à consagração da monarquia absolutista.
Mas se os dois corpos compunham-se de uma “maiestas realis fundamentada no povo e uma maiestas personalis do imperador”, na Inglaterra havia uma diferença importante, pelo seu princípio parlamentar, em comparação com a jurisdição das monarquias da Europa continental. Isso não quer dizer que na Inglaterra esta concepção estivesse menos sacramentada em função da divisão do poder; ela acontecia, da mesma forma, mas através do Parlamento, que tem por função legitimar o poder do corpo político do rei, e expressar, em certa medida, também as vontades naturais da autoridade real. (p.30).
O rei, no Parlamento, faz dele seu próprio corpo político, gerando um exercício ainda mais forte desta função, maximizada diante da função pessoal natural do rei. Um forte exemplo disso é a referência das obras de Shakespeare, que não deixou, segundo o autor, de fazer nos seus principais escritos referência à este espírito dual do rei, em sua essência política e humana, como nos mostra o Capítulo II do texto.
É na obra Ricardo II que Shakespeare demonstra mais claramente a presença da face divina do poder do rei, canalizando as duas esferas para uma só. Ricardo II, personagem que, ao tempo de Elisabeth, foi rejeitado pela própria com medo de uma identificação pelo povo com sua figura, teve em sua tragédia a recuperação da imagem de Cristo, que padecia sob Pôncio Pilatos antes de ser crucificado, assim como Ricardo e relação à Bolingbroke. Sua condenação tornava clara a traição que seu corpo natural havia submetido seu corpo político na condição de rei - e por ela é que haveria de ter a condenação em que se baseiam as cenas citadas. Sua face humana prevalece sobre a política exatamente porque a mortalidade sobressai em relação à sua imortalidade real. Essa mortalidade se torna visível, finalmente, pela quebra do espelho, quando Ricardo expõe-se às suas maiores humanidades e abre mão do seu corpo político em nome de outro corpo natural.
A tradição política de que fala o texto, a dualidade entre o lado humano e o lado divino do rei, não é característica peculiar dos anos da modernidade. Se o estudo da era Tudor, Elisabetana, ou dos primeiros anos dos Stuart, com Carlos I, pode nos esclarecer esta existência dupla personificada na figura do rei, a origem da concepção humana e sobre-humana foi também recuperada através da tradição religiosa medieval.
As faculdades espirituais e políticas estão vivamente escritas em documentos eclesiásticos que caracterizam uma persona mixta calcada na dualidade de esferas de atuação: religiosa e política, na figura do bispo e do rei. Mesmo os escritos clericais corroboram com a hipótese de que o rei, assim como os bispos, não era um homem comum, e portanto, possuidor de características divinas próprias. Assim, a comparação entre os Dois Corpos e a persona mixta da Idade Média pode se dar ao nível da existência das capacidades espirituais que confere o último em relação à existência sobre-humana que o corpo político confere ao corpo natural do homem. O homem de cargo eclesiástico assim como o homem público, o líder, não é um homem comum. Assim demonstram os tratados anônimos recuperados, escritos por volta do ano 1000, que referem-se à unção e consagração dos reis.
Ainda que os reis citados pelos anônimos sejam os reis do Velho Testamento, que participaram da vida de Cristo e são religiosamente consagrados, os reis da Nova Aliança seriam aqueles que, por mérito, receberiam a consagração dos primeiros, por serem seus seguidores e substitutos. Isso remonta-nos, especialmente, à esfera de migração das almas onde as características divinas, estas sim, se perpetuariam nos cargos a serviço de Deus. Neste caso, as características humanas, apesar de existirem também seriam menores do que as características divinas - assim como o corpo político maior do que o natural, ainda que dependente deste último. Para a tradição medieval, a graça era o componente que livrava o homem de suas fraquezas naturais (natura).
Mesmo em Cristo atribuiu-se a existência de uma gemina persona (p.52) que, apesar de representar negativamente um princípio duplo de personalidade - divina e humana - faz-nos reconhecer a existência de características como as dos dois corpos de um rei moderno. Nisto reside a distinção entre o cargo e a pessoa, de que falam os mesmos escritos anônimos, possivelmente de um normando, analisados no texto de Ernst Kantorowicz.
Também a iluminura dos evangelhos de Aachen nos trazem uma imagem em três planos superpostos que caracterizam a Mão de Deus intervindo no Imperador. Neste caso, o Imperador, assim como Jesus Cristo, é elevado ao céu. A própria Ascensão de Cristo, mostrando seus pés ao chão e sua cabeça nos céus, permite-nos visualizar a duplicidade da imagem de Cristo, divina e humana. Assim como no documento anônimo, os Evangelhos de Aachen perpetuam a figura gemina do monarca, concentrada no poder divino e humano contido em sua figura. “Um rei humano por natureza e divino pela graça”, na tradição religiosa cristã medieval compatibiliza-se com o corpo político do rei exatamente por que nele está contida uma condição religiosa perpetuada pelo cargo, apesar de sua natureza humana (p.70).
O rei que aparece enquanto seguidor e imitador de Cristo nada mais é do que o mediador entre céu e a terra, entre a instância divina e a terrena (humana). Recuperada mesmo na Bíblia, durante toda a Alta Idade Média, a equivalência do rei com a delegação do poder divino ressalta o papel do Vicarius Cristi junto ao Vicarius Dei, correlativamente. Mas também o Direito Romano, usando a terminologia deus terrenus já deixava clara a predominância divina sobre os reis.
Politicamente, o que se nota é uma transição do conceito litúrgico para o uso jurídico, ainda que teocrático, do sacramento divino do poder dos reis. Apesar da característica predominantemente de sacerdócio, o rei passa a exprimir o ensejo pela justiça e pelo governo, substituindo “sua relação anterior com o Sacramento e o Altar”. Este é o caso de se pensar uma normatização do poder, racionalmente explicado pela sua origem teológica, o que fundamentaria a criação futura da jurisprudência.
Ao tempo em que João de Salisbury defendia o Direito Romano e a existência do Príncipe como legibus solotus, possuidor de um princípio inato de justiça, duas gerações depois, Frederico II recuperava a órbita legal e a religiosa a partir do princípio de Liber angustialis, por onde se classificava enquanto pai e filho da justiça. O Imperador assim, sujeitava-se voluntariamente à lei porque sua execução estava arraigada no poder a ele conferido divinamente.
Possuía assim o representante, o rei, a responsabilidade do poder exercido através da lei porque nele residia, concomitantemente, o Direito Positivo e o Direito Natural. Apesar da inspiração divina, historicamente fundamentada, o poder deste rei de que se fala, aos poucos, racionaliza-se através da jurisprudência científica, adaptando-se aos jargões das solenidades jurídicas no lugar da linguagem litúrgica. Com isso, o Príncipe (o Rei) tornava-se um Sacerdote da lei, na modernidade. E, não à toa, o próprio trabalho dos juristas será valorizado diante da criação de um código legal próprio para o sacerdócio do governo.
Bracton e outros teóricos políticos consideravam que o rei estava “fora e acima do alcance da lei”. Isso não quer dizer, no entanto, que o rei tinha as suas ações baseadas na arbitrariedade; apenas a lógica de poder deriva, diretamente, da lei que exercita e que o limita (tendo uma extensão considerável por sinal). Ao rei, cabe fazer executar a lei e somente através dela há delegação, autoridade, obediência. Considerava-se, assim, que o governo era muito menos pessoal do que baseado no constitucionalismo promovido por uma série de conselheiros e civilistas; até porque, acreditava o mesmo Bracton que poucos seriam os Príncipes realmente de executar com competência jurídica as leis.
Ainda para Bracton, o que faz valer o poder do Rei é a regulação da sua exaltação, que poria em risco o governo. Este processo caracterizou-se através de uma dinâmica dialética que considera a neutralização do poder pessoal pelo apelo à lei como prerrogativa do funcionamento positivo do sistema político. E, neste caso, a recuperação do Direito Romano e a ação dos juízes de corte se tornam um paradigma importante deste sistema impessoal. O efeito maior desta análise é que, para ele, o rei aparece “como um ser temporal” (na sua qualidade natural) e um ser atemporal (sujeito às coisas públicas de maneira eternizada).
Na Baixa Idade Média, a promoção dos mecanismos e teorias de mistificação do aparelho político e religioso tendem a ser cada vez mais fortes. Talvez, a aproximação, do ponto de vista normativo, entre a monarquia moderna e o sistema medieval reside, exatamente, na racionalização corporativa e mística da Igreja. Neste caso, a figura do Papa, na junção entre Igreja e Estado, define uma apropriação política do corpo místico da Igreja, o que, por fim, dá determinada funcionalidade ao sistema, mesmo na Idade Média, antes do absolutismo. O lado corporativo, institucional, da Igreja aparece, no texto, ao lado do corpo místico eclesiástico, realizando-se intensamente através de práticas e símbolos dogmáticos como um modelo que seria muito próximo ao da Modernidade.
As comparações aristotélicas entre a institucionalização da política na Igreja e o casamento se dão, em certa medida, pela existência de um acordo comum místico entre o sponsus e a sponsa, assim como entre Cristo e a Igreja. Seria a ética mística religiosa somada à ética patriótica, originando a configuração que se quer de poder - com a soberania do príncipe, a regulação da lei, e a lealdade de seus súditos (amor à pátria). O conceito monárquico de pátria vai se aplicando na Modernidade, na medida em que os fatores em confluência no sistema político místico medieval criam as condições para a existência da Pátria - da identidade coletiva às instâncias políticas legais.
Assim sendo, em nome da pax, uma guerra justa poderia ser feita, somente pelo Príncipe, pela manutenção desta communis patria com tais características (leis, limites territoriais e institucionais, identidade, dentre outras). Aos poucos, ”o corpo místico da Igreja cuja cabeça é Cristo, foi substituído - como nos escritos dos juristas - pelo corpo místico da respublica cuja cabeça é o Príncipe”. (p.162).
(*) Resenha do Texto: Kantorowicz, Ernest H. Os Dois Corpos do Rei - Um estudo sobre teologia medieval. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2000.
(**) MEDEIROS, Sabrina Evangelista. Resenha do livro: Os Dois Corpos do Rei; Um estudo sobre teologia medieval. Rio de Janeiro: Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, ano 2, n. 24, 2007. [ISSN 1981-3384]
Fonte: tempopresente.org
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