sábado, janeiro 22, 2011

sede de lucro não tem limite, na África, no mundo...

Senegal: quem paga suas dívidas empobrece
Os EUA e a Europa não seriam o que são hoje se não tivesse havido a escravidão e a colonização. Os países do Norte construíram em grande parte sua riqueza e sua potência sobre a base de uma política muito agressiva e violenta contra as populações do Sul e contra a natureza. Esta parte da história é suficiente, por si só, para afirmar que os povos africanos são credores de uma dívida histórica e ecológica gigantesca, das potências do Norte. No entanto, o “sistema da dívida” que passa a funcionar no início dos anos 60 inverterá o mecanismo: são os povos africanos que ficarão cada vez mais endividados.
por Adama Soumare e Olivier Bonfond - Alainet
Salvo para os economistas e outros tecnocratas obnubilados pelas taxas de crescimento do PIB, a situação do povo senegalês em particular, e dos povos africanos em geral persevera dramática. Essa situação não se explica por um fanatismo qualquer ou por uma desorganização “natural’ dos povos desse continente, mas antes por uma longa tradição de pilhagem, de exploração e de opressão no quadro do sistema capitalista.
“Antes de ontem”, a dominação pela escravidão: pilhagem dos recursos humanos
Entre os séculos XV e XVIII, o Senegal constituiu para as potências europeias uma plataforma giratória do comércio triangular. Com Benin e seu porto de Ouidah, o Senegal pagou um alto tributo pelo comércio negreiro: da ilha de Gorée até Dakar, partiram mais de um milhão de escravos para o “novo” mundo. 
“Ontem”, a dominação pela colonização: pilhagem dos recursos agrícolas e minerais
No século XX, as riquezas naturais do país (fosfato e amendoim) são exploradas para o lucro da metrópole francesa. Quando das duas guerras mundiais, a França utilizou as colônias como reserva de homens para defender os seus interesses. Isso não impediu absolutamente o poder colonial de reprimir muito duramente os movimentos de emancipação que se desenvolveram no Senegal depois da Segunda Guerra Mundial. É preciso esperar até 1960 para que o Senegal se torne formalmente “independente”. 
Essas duas partes da história não podem ser esquecidas sob o pretexto de que é preciso parar de lamentar o passado e avançar para o futuro. Por um lado, a África não seria o que é hoje não fosse o comércio negreiro. É sempre bom lembrar que antes dessa verdadeira pilhagem das forças vivas africanas, as três grandes civilizações existiram na África, com um bom nível de desenvolvimento social, político e cultural. Além disso, os Estados Unidos da América e a Europa não seriam tampouco o que são hoje se não tivesse havido a escravidão e a colonização. Os países do Norte, com efeito, construíram em grande parte sua riqueza e sua potência sobre a base de uma política muito agressiva e violenta, contra as populações do Sul e contra a natureza. Esta parte da história é suficiente, por si só, para afirmar que são os povos africanos os credores de uma dívida histórica e ecológica gigantesca, das potências do Norte. No entanto, o “sistema da dívida” que tomará lugar no início dos anos 60 inverterá o mecanismo: são esses povos [africanos] que vão se encontrar endividados...
De 1960 a 1980, a pseudo-independência: busca-se a dominação e a pilhagem
As forças sociais senegalesas, que tinham combatido corajosamente a colonização são exortadas em nome da construção nacional, para pôr as lutas entre parênteses e aceitar a colaboração necessária com o antigo poder colonizador. Como em muitos outros países africanos, fora a bandeira, um hino nacional e um presidente (frequentemente escolhido pelas antigas potências coloniais) para substituir um governante, as independências não conduzirão à mudança. Por um lado, a economia senegalesa continua a ser orientada para a exportação de alguns produtos primários (fosfato, amendoim e produtos da pesca). Por outro, as relações de submissão política são mantidas, via a consolidação da rede França-África.
Um antigo deputado francês e amigo íntimo de George Pompidou, o presidente Léopold Sédar Senghor permanecerá no poder durante duas décadas, em colaboração estreita com a ex-metrópole. Esses vínculos serão conservados pelo seu sucessor designado, Abdou Diouf, que presidirá o Senegal durante vinte anos consecutivos. Apresentado por alguns como um exemplo de democracia na África, o país não conheceu então qualquer alternância de poder durante suas quatro primeiras décadas de independência!
De 1980 aos dias atuais, o neocolonialismo: a dominação pela dívida
Nos anos de 1970, no contexto da crise econômica mundial, a dívida do Senegal explode. A reciclagem dos petrodólares pelos bancos do Norte, a compra massiva de produtos importados via empréstimos vinculados (servindo para dinamizar as economias do Norte, então em crise de superprodução) e a queda do fluxo de produtos primários vão multiplicar a dívida por dez, em dez anos: a dívida externa pública passa de 114 milhões de dólares, em 1970, para 1,1 bilhão, em 1980.

Desde 1979 uma série de medidas são impostas pelos “experts” do FMI e do Banco Mundial (congelamento de salários dos servidores públicos, supressão das subvenções aos produtos de primeira necessidade e aumento de impostos), mas, quando os preços do fosfato despencam e as taxas de juros internacionais dos bancos interditam o fornecimento de crédito, a crise da dívida se abate sobre o Senegal, propagando-se por todo o Sul do planeta.
Em 1984, asfixiado financeiramente, o Senegal, em troca de um reescalonamento de sua dívida, põe em curso seu primeiro plano de ajuste estrutural, cobrindo o período de 1985-1992. O programa: redução dos orçamentos de educação e de saúde, aumento das exportações e privatizações dos setores rentáveis. Um novo plano de ajuste estrutural é posto em curso em 1994, enquanto o país enfrenta uma forte desvalorização de 50% do franco CFA (o que implica forte diminuição de salários e uma alta de preços das importações) e conhece de novo revoltas e repressão. O desemprego e o endividamento aumentam de maneira incontrolável. Um terceiro plano de ajuste é assinado em 1998, desta vez com o objetivo de estender os programas de privatização a todos os setores (energia, telecomunicações, transporte, água, etc). Em 2000, o Senegal integra a iniciativa PPTE (Países Pobres Muito Endividados). Microscópicos perdões da dívida aparecem no horizonte, mas sob a única condição de que o país aprofundasse essas reformas neoliberais, tão dramáticas para as populações. 
Balanço: persegue-se o sofrimento dos povos… 
Em outros tempos principal produto de exportação e principal fonte de renda dos campesinos, o setor de amendoim está hoje prejudicado. O Estado quase não apoia mais os pequenos produtores; aqueles que continuam a produzir sem cessar no setor estão condenados a lutarem contra as indústrias de óleo [para biocombustíveis] e os setores intermediários que especulam com os preços de mercado. 
Os agricultores em geral não estão numa situação melhor. As iniciativas governamentais recentes, a saber, o plano REVA (Retorno para a Agricultura – 2006) concebido para “fixar as populações” e conter a migração dita clandestina [1], e a GOANA (Grande Ofensiva para a agricultura, o alimento e a abundância), iniciada em resposta à crise alimentar de 2008, não deram qualquer resultado comprovado. Na realidade, esses programas agravam a situação da pequena agricultura, beneficiando os membros e pessoas próximas do regime presidencial, que se apropriaram de centenas de hectares de terras e transformaram os agricultores em operários agrícolas. 
Os pecuaristas não foram beneficiados pelas tentativas de políticas e de programas liberais. A exemplo de milhares de pecuaristas da região de Dakar, eles foram expropriados de suas terras e realocados em zonas hostis, onde o entorno e o pasto foram destruídos por conta de projetos imobiliários com especulação forçada, sem falar do déficit de pessoal veterinário qualificado, dado o desengajamento do Estado no setor. 
O setor educacional vai por terra. Os professores conhecem com muita regularidade os atrasos de pagamentos, de muitos meses, dos seus magros salários. Os pais, que dificilmente conseguem juntar dinheiro, cada vez menos conseguem enfrentar os altos custos da inscrição instaurada nas escolas públicas e na universidade. Os estudantes são vítimas de extorsões de fundos ou de chantagem, à medida que, num país com uma alta taxa de desemprego, chegando à casa dos 50%, aquelas e aqueles com diploma têm muito poucas chances de encontrar um emprego ligado à sua formação.
Enfim, todas as famílias se submetem duramente ao aumento constante dos preços dos produtos de base. Para ilustrar, o preço de um botijão de gás butano de 6kg, utilizado diariamente pela grande maioria das residências urbanas, praticamente dobrou num intervalo de 4 meses, passando de 2500 FCFA para 4000 FCFA. As faturas de água e de eletricidade, apesar dos cortes constantes, aumentam frequentemente. 
Os credores lavam as mãos
O discurso dominante afirmava que se as medidas “propostas” pelo FMI e pelo Banco Mundial fossem aplicadas rigorosamente, as economias do Sul iriam se encaminhar para ver o nível de endividamento diminuir. O Senegal, apesar de muito bom aluno da lógica neoliberal, não conheceu esse caminho. Longe disso. Não somente a dívida externa pública não diminuiu como foi multiplicada por três, entre 1980 e 2009, passando de 1,11 para 2,96 bilhões de dólares. 
Neste mesmo período, o Senegal reembolsou, no entanto, somas consideráveis: o montante transferido pelo Senegal a título de reembolso da dívida ao longo do período de 1980 a 2008 aumentou para 5,03 bilhões de dólares. Concretamente, isso quer dizer que o Senegal, depois de ter pagado cinco vezes o montante que devia em 1980, está hoje três vezes mais endividado. O sistema dívida jogou, portanto, um papel chave na manutenção da transferência de enormes riquezas africanas para os ricos credores do centro capitalista. E esse negócio altamente rentável para alguns, a não ser que haja uma revolução, está programado para durar muito tempo.
O FMI e o Banco Mundial aplaudem
Em 14 de dezembro de 2010, o FMI declarou: “Deve-se felicitar as autoridades senegalesas por terem realizado um programa econômico satisfatório, apoiado pelo instrumento de sustentação à política econômica (ISPE). O crescimento econômico reencontrou o caminho em 2010 e deverá ser fortalecido já em 2011. Progressos consideráveis foram registrados, em matéria de políticas públicas e as autoridades estão determinadas a perseguirem as reformas destinadas a superar os desafios importantes que subsistem”. Declarações desse tipo se multiplicam nas mídias. O crescimento da precariedade e da pobreza não pesam na mídia frente ao crescimento do PIB. 
Recriar a esperança a partir dos povos
Uma coisa é certa: a solução não virá “de cima”. Os capitalistas africanos, os governantes e as instituições regionais a seu serviço fazem tudo para que essa situação perdure, com a benção do capital internacional cuja sede de lucro não tem limite. Essa sede se manifesta hoje de maneira cada vez mais agressiva, não somente na África, mas também no mundo. E também está contida nos países do Norte, que desde a crise que eclodiu em 2008 vivem a dura experiência do ajuste estrutural com, não duvidemos disso, as mesmas consequências que as sofridas pelos povos do Sul nos últimos trinta anos. Construir uma sociedade de igualdade e de justiça social que seja alternativa ao capitalismo neocolonial é perfeitamente possível. Mas isso só será possível com a unidade e as conquistas das lutas locais e internacionais. Esperamos que o próximo Fórum Social Mundial, que vai se realizar de 6 a 11 de fevereiro, em Dakar esteja à altura de todos esses desejos. 
(*) Adama Soumare (CADTM – Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo Senegal) e Olivier Bonfond (CADTM Bélgica) 
NOTAS
[1] Fonte: “Prisioneiros do Deserto: investigação sobre a situação dos migrantes”: http://www.cimade.org/publications/47

[2] As taxa de desemprego era de 49% em 2008, segundo a Agência Nacional de Estatística e Demografia do Senegal http://www.cadtm.org/Adama-Soumare?lettre=O
[4] Fonte: Banco Mundial, Global Development Finance.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior, 21/01/2011

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