domingo, janeiro 23, 2011

Capitalismo: a violência de transformação da Natureza

A degradação entrópica autorizada pela capitalização da natureza (RECORTES DE LEITURAS III)
Na Antiguidade, o labor exercia-se na oikia ou casa, onde se reconhecia o governo de um só; era o reino da necessidade, ligado às exigências da condição animal do homem, com alimentar-se, repousar, procriar. Era, portanto, a esfera privada (de privus, estar privado de), em que o homem, como animal laborans, buscava os meios necessários à sobrevivência. O labor tinha a ver com o processo ininterrupto da produção de bens de consumo, isto é, daqueles bens que eram integrados ao corpo após a sua produção e que não tinha permanência no mundo. Na casa, o anseio de sobrevivência dominava de tal forma que a vida era limitada ao seu próprio processo biológico.
Os cidadãos tinham o privilégio de libertar-se dessa condição, exercendo na polis sua atividade. Assim, só os cidadãos exerciam a ação. O labor era visto com desprezo. Arendt (2001, p.91) declara:
O desprezo pelo labor, originalmente resultante da acirrada luta do homem contra a necessidade e de uma impaciência não menos forte em relação a todo esforço que não deixasse qualquer vestígio, qualquer monumento, qualquer grande obra digna de ser lembrada generalizou-se à medida em que as exigências da vida na polis consumiam cada vez mais o tempo dos cidadãos [...]
O governo de um só, típico da esfera privada, era incompatível com a esfera pública. Nela se reconhecia o governo de muitos. O cidadão era visto como um igual entre iguais e, na esfera pública, sua atividade era fruto de uma pluralidade.
Entre a ação e o labor se achava o trabalho, dominado pela relação meio e fim, com objetivo previsível à criação do bem de uso – produto inconsumível. Ao contrário do labor, esse produto adquire permanência no mundo. “Em outras palavras, contra a subjetividade dos homens ergue-se a objetividade do mundo feito pelo homem”.[1] Conforme sintetiza Arendt (2001, p.15), distinguindo e caracterizando cada uma das atividades marcantes do homem:
O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio tem a ver com as necessidades vitais produzidas pelo labor no processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida.
O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do trabalho é a mundanidade.
A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana tem alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda vida política. Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as expressões “viver” e “estar entre os homens” (inter homines esse), ou “morrer” e “deixar de estar entre os homens” (inter homines esse desinere).
Adeodato (1989, p.119), tratando da diferença entre labor e trabalho, afirma verbis:
Através da fabricação o ser humano se converte em homo faber e adquire suas características especificas, já que enquanto meramente trabalha ele nada mais é que o animal mais desenvolvido do planeta. Então, o primeiro aspecto essencial do homo faber é produzir objetos que, juntos, constituem o mundo humano.
 A vita activa vinculada ao trabalho – atividade do homo faber -, relaciona-se diretamente à destruição do meio ambiente e à criação de novo ambiente. Tal análise perpassa toda a obra “Condição humana” de Arendt (2001, p.149-180), embora encontre especial ênfase no Capitulo IV – Trabalho. Conforme destaca Arendt (2001), no trabalho há sempre um elemento de violência à natureza. A transformação dos recursos consiste em reificação.[2]
O animal laborans que, com o próprio corpo e a ajuda de animais domésticos, nutre o processo da vida, pode ser o amo e senhor de todas as criaturas vivas, mas é ainda servo da natureza e da terra; só o homo faber se porta como amo e senhor da terra. Como a sua produtividade vista à imagem de um Deus Criador – de sorte que, enquanto Deus cria ex nihilo, o homem cria a partir de determinada substância -, a produtividade humana, por definição, resultaria fatalmente numa revolta prometéica, pois só pode construir um mundo humano após destruir parte da natureza criada por Deus (ARENDT: 2001, p.15).
A sensação da violência de transformação da Natureza coloca o Homem na posição de ser supremo da criação e não de mera criatura servil. O trabalho passa a gerar satisfação, ao contrário do labor que produz desprezo (ARENDT: 2001, p.153).
Outro aspecto destacado refere-se à durabilidade das coisas feitas pelo homo faber. Essa durabilidade permite que as coisas do mundo tenham uma “relativa independência dos homens que as produziram e as utilizam, a ‘objetividade’ que os faz resistir, ‘obstar’ e suportar, pelo menos durante algum tempo, as vorazes necessidades de seus fabricantes e usuários” (ARENDT, 2001, p.150).
O homo faber é o construtor do mundo; por isso, a condição da existência humana que corresponde ao trabalho é a mundanidade. Conforme Arendt (2001, p.152), a palavra “faber” relaciona-se com a palavra latina facere, no sentido de produção. O animal laborans não afeta de forma significativa a Natureza; já o homo faber, sim.
A reificação, termo costumeiramente usado por Arendt (2001, p.156), destaca o fato de que o homem dissocia o produzir, que lhe é próprio, do produto, de tal modo que o pode conhecer, tornando-o objeto da sua consciência:
[...] o labor também produz para o fim de consumo, mas como esse fim, a coisa a ser consumida, não tem permanência mundana dos produtos do trabalho, o fim do processo não é determinado pelo produto final e sim pela exaustão do “labor power”, enquanto que, por outro lado, os próprios produtos imediatamente voltam a ser meios de subsistência e reprodução do “labor power”. No processo de fabricação, ao contrário, o fim é indubitável: ocorre quando algo inteiramente novo, com suficiente durabilidade para permanecer no mundo como unidade independente, é acrescentado ao artifício humano.
Conforme assinala Arendt (2001, p.156), no processo do homo faber há a instrumentalização da Natureza e do Mundo, na clara distinção entre meios e fins:
A coisa fabricada é um produto final no duplo sentido de que o processo de produção termina nela (“o processo desaparece no produto”, como dizia Marx), e de que é apenas um meio para produzir esse fim.
O trabalho, portanto é inteiramente dominado pela categoria de meios e fins. O trabalho se distingue das outras atividades da vita activa porque tem um fim definido e previsível, enquanto a ação, embora tenha um começo, não tem um fim previsível. O labor, por sua vez, “prezo, à engrenagem do movimento cíclico do processo vital do corpo, não tem começo nem fim” (ARENDT, 2001, p.156). Daí a grande confiabilidade do trabalho; o processo de fabricação não é irreversível. Nesse sentido, Arendt afirma que:
O homo faber é realmente amo e senhor, não apenas porque é o senhor ou se arrogou no papel de senhor de toda a natureza, mas porque é o senhor de si mesmo e de seus atos. Isto não se aplica ao animal laborans, sujeito às necessidades de sua existência, nem ao homem de ação, que sempre depende de seus semelhantes. A sós, com a imagem do futuro produto, o homo faber pode produzir livremente; e também a sós, contemplando o trabalho de suas mãos, pode destruí-lo livremente.
O homo faber reduz a “natureza e o mundo a simples meios, privando-os de sua dignidade independente”. A verdade é que o significado do mundo, meio para a construção de um novo mundo, acaba tornando-se um objeto sem valor, pela infindável cadeia de meios e fins que se forma no processo de fabricação:
“Se o homem-usuário é o mais alto de todos os fins, “a medida de todas as coisas”, então não somente a natureza, que o homo faber vê como material quase “sem valor” sobre o qual ele trabalha, mas até mesmo as coisas “valiosas” tornam-se simples meios, e, com isto, perdem seu próprio “valor” intrínseco”. (ARENDT: 2001, p.169).
Na visão antropocêntrica da Natureza, a mesma é instrumentalizada, perdendo o seu valor intrínseco, pois passa a ser sempre meio. Arendt (2001, p.169) afirma:
Na medida em que é homo faber, o homem “instrumentaliza”; e este emprego das coisas como instrumentos implica em rebaixar todas as coisas à categoria de meios e acarreta a perda do seu valor intrínseco e independente; e chega um ponto em que não somente os objetos da fabricação, mas também “a terra em geral e todas as forças da natureza” - que evidentemente foram criadas sem o auxílio do homem e possuem uma existência independente do mundo humano – perdem seu “valor por não serem dotadas de reificação resultante do trabalho”.
Conforme destaca Arendt, esse problema da instrumentalização do mundo, não se constitui em novidade contemporânea, já havendo tal preocupação no berço da filosofia ocidental – a Grécia. Citando o famoso argumento de Platão contra o dito de Protágoras[3], de que – o homem é a medida de todas as coisas de uso, da existência das que existem e da inexistência das que não existem. Arendt (2001, p.11) destaca que Platão “percebeu desde logo que quando se faz do homem a medida de todas as coisas de uso está-se correlacionando o mundo com o homem-usuário e fazedor de instrumentos [...] E como é da natureza do homem-usuário e fabricante de instrumentos ver em tudo um meio para um fim – ver em cada árvore determinado potencial de madeira -, isto, fatalmente significaria fazer do homem não só a medida de todas as coisas cuja existência dele depende, mas de literalmente tudo o que existe”.
A fase ecológica do capital e a valoração do bem ambiental
A emergência do movimento ambientalista e o choque do petróleo, ao final dos anos 1960 e 1970, respectivamente, fizeram da energia dos recursos naturais e do ambiente em geral um tema de importância econômica, social e política, eclodindo o debate da questão ambiental. Cresce substancialmente o volume de trabalhos e pesquisas sobre as inter-relações entre economia e ambiente realizados tanto por economistas quanto por não-economistas.
A crítica ambiental fez com que a teoria econômica estabelecida se visse na necessidade de incorporar a problemática ambiental e o desenvolvimento sustentável (DS) em seus arcabouços teóricos. Esta necessidade de tratamento da temática ambiental pela teoria econômica deveu-se ao fato de que a crítica ambiental desenvolvida no início a partir das questões surgidas nos campos das ciências físicas e biológicas veio progressivamente estendendo-se para a análise do funcionamento do sistema econômico, por ser este o elemento gerador dos problemas ambientais e alvo das críticas.
Cientistas de diversas formações e especialidades – incluindo os economistas – envolvidos com questões ambientais, ecológicas e energéticas vieram ao longo do tempo desenvolvendo análises do funcionamento da economia em sua relação com os recursos ambientais, utilizando-se para isso dos arcabouços conceituais de seu domínio próprio. Com isso, o desenvolvimento da crítica ambiental faz-se articulado à construção de um campo próprio de análise do sistema econômico, baseado nas ciências naturais, o qual por sua vez veio produzindo abordagens e resultados diferenciados (e mesmo divergentes) dos encontrados pelas teorias econômicas convencionais.
O propósito de integração analítica dos componentes do sistema econômico com os do sistema ambiental, tentando compreender seu funcionamento comum, foi apresentado pela Economia Ecológica. Conforme Constanza (1994: 111), essa nova abordagem transdisciplinar procura distinguir-se da economia quanto da ecologia convencional.[4] Ainda que essa integração seja possível e em processo de conceptualização, a ecologia do capitalismo nos parece uma integração dos constrangimentos ecológicos na lógica capitalista.[5]
A guerra implacável a que se entregam os empreendedores capitalistas, com interesses individuais em investir em técnicas cada vez mais competitivas que permitam produzir em escala maior, a custos menores, tem seu preço quanto a exploração dos recursos naturais evidenciado na degradação e insustentabilidade dos processos de exploração da natureza sem atenção ao equilíbrio dos ecossistemas.
Essa nova “contradição”, considerada como um troco ou “paga do meio ambiente” é o custo crescente de produção, que só acentua a tendência à baixa das taxas de lucro. Acrescentemos a essa característica outras razões que pouco enobrecem o crescimento, ou geração da demanda fenomenal, que as grandes economias ocidentais tiveram desde a Segunda Guerra Mundial, até meados da década de 1970:
a)     A natureza dos bens colocados no mercado, que têm tanto mais utilidade social quanto mais desigualmente repartidos forem; e eles perdem seus valores significativos ao estarem ao alcance de todos.
b)     A diminuição de vida dos bens de consumo, que ainda são chamados de “duráveis”, passam a durar bem menos tornando forte a demanda de renovação, concorrendo para isso a utilização de novas técnicas, mais eficientes.
c)     Os recursos que compõem o meio ambiente perdem paulatinamente sua longevidade.
A necessidade de assegurar uma demanda suficiente e a “fuga para frente” acelerando a produtividade demonstra acentuar decisivamente a crise ecológica[6], e para produzir os mesmos valores de uso, os custos parecem ser ainda maiores doravante. O capitalismo de crescimento atingiu certos limites, e o recuo na recuperação do meio ambiente já parece para muitos estudiosos e críticos, um esforço impraticável. O que é explicado pela lei de conservação da matéria e energia, ou primeira lei da termodinâmica, na qual, “nada se perde, nada se cria”, isto é, a matéria e energia não podem ser criadas nem destruídas, apenas convertidas em suas formas possíveis, ou seja, organizadas diferentemente em produtos ou mercadorias que logo após ao seu consumo, se tornarão lixo ou poluição, no lugar dos recursos naturais (matéria desorganizada novamente).
A incorporação principal, a despeito do desenvolvimento dos modelos neoclássicos de equilíbrio geral com a incorporação do princípio da conservação, se deu por meio de modelos de “insumo-produto” (input-output), originalmente desenvolvido por Wassily Leontief (1951), a partir do qual se permitem caracterizar encadeamentos internos à economia, em unidades físicas, por coeficientes técnicos de produção. O que suscitou incorporar devidamente o princípio da conservação e suas consequências: o sistema econômico sem entrada ou saída de matéria e energia, o crescimento econômico conduz necessariamente a um aumento da entropização, ou seja, na exaustão de recursos e produção indiscriminada de resíduos. Alguns modelos que se destacaram são os de Daly (1968), Georgescu-Roegen (1983, Ayres (1978), e Constanza (1994).
A reificação do bem ambiental: a precificação da água
A natureza não tem recursos ilimitados[7], a exigência de recursos produtivos (energia) e de riquezas cada vez mais em quantidades maiores e de fácil exploração, sejam renováveis ou não-renováveis, a partir das necessidades das economias desenvolvidas mostram que o planeta já chegou ao seu limite (ainda que seja considerada uma previsão, alguns cientistas estimam ter ultrapassado em quase 30%[8] dessa “fronteira da vida”), pois, os países em desenvolvimento nunca poderiam chegar ao mesmo nível de consumo desses recursos dos países do primeiro mundo, e caso chegassem seriam necessários mais cinco planetas iguais para esse nível de satisfação de consumo[9], “fruto de moldes educativos e comunicacionais que reafirmam este ethos capitalista”.  Conforme citações e dados de Lima Santin (2006):
Atualmente, 83% do Planeta é ocupado pelo homem e a depredação do ecossistema já supera em 20% sua capacidade de regeneração. Em outras palavras, pode-se dizer que o mundo consome mais recursos naturais do que a própria capacidade de regeneração (Boff, 2003).
Quando a utilização de recursos naturais ultrapassa o limite de regeneração dos mesmos tem-se o overshoot, que implica em crescimento econômico mediante a depleção do florestamento expandiu em ritmo inferior ao desmatamento, implicando em maiores perdas florestais. A Europa foi o único continente que apresentou aumento de área, incrementando sua extensão florestal em algo próximo a um milhão de hectares plantados. capital natural e comprometimento da manutenção da vida futura. O overshoot refere-se ao estágio em que o meio ambiente não mais consegue se regenerar e prover recursos futuros (CIDIM; Silva, 2004). Este ponto foi atingido no início da década de 1980, quando as atividades humanas excederam a capacidade da biosfera (WWF, 2004).
Neste contexto, é pertinente explicitar que o uso de tecnologias avançadas, por si só, não garante uma menor degradação ambiental. Este pensamento vai contra o pensamento econômico ambiental, que segue o mainstream neoclássico.
A economia ambiental neoclássica trabalha com o axioma de que o capital, o trabalho e os recursos naturais são substitutos perfeitos entre si, quando em uma função de produção. Segundo tal teoria, os limites impostos pela degradação ambiental quanto à utilização de recursos naturais seriam totalmente compensados pelo uso de tecnologia. Assim, a degradação ambiental é tida apenas como uma restrição relativa à produção e não como absoluta, uma vez que com o uso de determinada tecnologia permitir-se-ia a utilização de recursos substitutos, de acordo com a escassez dos atualmente utilizados, havendo a possibilidade de substituição de recursos. Esta concepção é denominada de sustentabilidade fraca e o ponto de discordância que mais aflora é justamente o não reconhecimento de características peculiares a cada recurso natural, o que impossibilitaria a migração e a substituição do uso entre os mesmos (Cánepa, 2003).
Como contraponto à teoria econômica ambiental neoclássica surgiu a economia ecológica, que estrutura seu pensamento com base em conceitos tomados da física. Estes derivaram mais precisamente da termodinâmica, como o conceito de entropia; este conceito, interpretado sob a ótica econômica, refere-se ao fato de que o processo produtivo implica na utilização e na transformação de energia. Ao ser transformada a energia passa de uma forma organizada para outra desorganizada, conhecida por energia térmica. O processo excessivo de transformação energética resulta em escassez absoluta (Loyola, 2001). Aqui, não mais se considera a perfeita substituibilidade entre os fatores de produção, sendo a tecnologia e os recursos naturais fatores complementares em um processo produtivo sustentável. Esta visão é denominada de sustentabilidade forte, em oposição à sustentabilidade fraca (Romeiro, 2003).
Tomando como princípio a noção de sustentabilidade forte, pode-se afirmar que os padrões de desenvolvimento atual, de caráter estritamente degradante, não são sustentáveis no longo prazo, haja vista as vulnerabilidades ambientais. A continuidade do ritmo de degradação atual implicará em um fator restritivo ao desenvolvimento econômico, principalmente nos países que ainda possuem reservas ambientais.
A Educação[10], os instrumentos econômicos e normativos se mostraram insuficientes para uma solução dos conflitos e a valoração econômica dos recursos hídricos pondo uma dúvida quanto a uma adequação do bem ambiental aos fundamentos econômicos do mercado. Conforme Pelizzoli[11], “A Educação, enquanto refletente do processo civilizatório impregnado pela filosofia do desenvolvimentismo, da competição, busca da emancipação individualista, mas, massificante, e a noção de progresso a todo custo, foi e está, com tudo isto, impregnada de antivalores, de uma visão antiecológica de mundo. Num contexto cooptado, tendeu à formação de elementos para uma (des)socialização privatista, para a apropriação e acumulação de bens e poderes como sentido maior do ser humano, na esteira do processo de produtividade tecnoeconômica”.
Há os que defendem que os efeitos benéficos sobre o ambiente podem ser resultantes do livre mercado, desde que haja uma consciência ambiental dos indivíduos; este é um pressuposto da chamada “economia verde”:
A substituição de capital natural pelo capital tecnológico e humano é possível, mas existem limites. Por exemplo, existem limites máximos para a capacidade do ambiente assimilar resíduos produzidos pelas atividades humanas. O capital natural deve ser mantido em um estoque mínimo abaixo do qual ele se torna crítico para manter a sustentabilidade. Esse posicionamento introduz a noção de Padrão Mínimo de Segurança (PMS).
De acordo com TURNER (1993), "dada a irreversibilidade e a incerteza sobre os impactos da atividade econômica sobre o funcionamento dos ecossistemas, o PMS estabelece uma linha divisória, socialmente negociada, entre os imperativos morais da sustentabilidade e a livre transação de recursos. Para satisfazer o contrato social intergeracional, a geração atual deve antecipadamente restringir (dependendo dos custos de oportunidade sociais envolvidos) ações que possam resultar em impactos adversos além de certos níveis de custo e irreversibilidade". Ou seja, sem negar a possibilidade de intercâmbio entre os três tipos mencionados de capital, é argumentado que existirão limites que deverão ser impostos por negociação social, levando em conta os interesses das futuras gerações, a irreversibilidade de certas conseqüências e a incerteza sobre certos impactos ambientais.
O valor do ambiente é avaliado por sua utilidade para o ser humano, mas devem ser consideradas as falhas do livre mercado na promoção da equidade na geração contemporânea, ou seja, as diferenças de bem-estar entre pobres e ricos, e os compromissos com as futuras gerações. Portanto, assume-se sempre uma perspectiva humana nas questões de valoração e, por isto, tal posicionamento é denominado de antropocêntrico. Posicionamento mais estrito de sustentabilidade nota a dificuldade inerente da quantificação, nos mesmos termos, dos capitais natural, humano, tecnológico e moral/cultural, o que dificultaria atingir-se um quantitativo ideal para o estoque global. Além disto, existe a possibilidade de subestimativa do valor primário do ecossistema, definido como o serviço agregado de suporte à vida prestado pelo ambiente, que deve preponderar sobre o valor secundário, relacionado às funções e serviços prestados ao ser humano. Isso levaria ao risco de que a diminuição do capital natural resultaria no comprometimento gradual dos processos e funções que suportam a diversidade biológica, aumentando a vulnerabilidade, pela redução da estabilidade e da resiliência ambientais, a futuros choques e stress. Devido a isto, o capital natural, Kn, deveria ser mantido constante por que, pelo menos parcialmente, ele é insubstituível. A escala de desenvolvimento não deveria declinar, mas tampouco aumentar, e o aumento populacional também deveria ser zerado, de forma a poder ser atingida a economia de estado estacionário.
A hipótese Gaia, com suas implicações é aceita por esta corrente. De acordo com ela, a vida e o ambiente terrestre são partes de um mesmo sistema auto-regulador e reparador, no sentido de que atividades humanas que afetem perigosamente o equilíbrio ambiental poderiam ser acomodadas pelo próprio sistema. Entretanto, esta capacidade garante apenas a sobrevivência deste sistema e não o de todas suas formas de vida, inclusive a humana. Logo, há necessidade de uma visão sistêmica do ambiente, cuja noção inclui o homem, e a imposição de padrões ambientais normativos para espécies e processos relevantes, bem como de áreas de conservação ambiental e práticas adequadas de disposição de resíduos no ambiente. Devido a tais características esta posição é denominada ecocêntrica.
A posição mais radical quanto aos limites ambientais baseia-se também na hipótese Gaia e sustenta adicionalmente que o efeito-estufa, a depleção da camada de ozônio e as chuvas ácidas indicam que a humanidade já ultrapassou uma linha divisória prudente para a escala de desenvolvimento. Isso requer uma economia baseada em limites termodinâmicos, com mínima taxa de fluxo de matéria e energia ingressando e saindo do sistema econômico. A escala de crescimento econômico deveria ser reduzida bem como a população. Seus seguidores não entendem que isto levará à diminuição do desenvolvimento, entendido de forma ampla, pois as preferências sociais, os valores comunitários e as obrigações com as futuras gerações poderão encontrar ampla expressão, contribuindo para o aumento do capital moral e cultural Kc. Sob o ponto de vista ético, esse posicionamento sustenta a validade de interesses e direitos não-humanos, abrangendo animais, plantas e ecossistemas, pois eles podem ser inerentemente valiosos (valor intrínseco). Esse posicionamento é também ecocêntrico.[12]
A dinâmica econômica e a racionalidade ambiental
A busca de uma racionalidade ambiental tem como objetivo detectar aqueles elementos que possam se constituir em base de uma estratégia produtiva alternativa, onde a natureza se integre à lógica produtiva. Essa preocupação não é nova, pelo contrário, talvez seja a constante desde as investidas de “fusão” da economia com a ecologia. O que vai mudando é a ênfase, cada vez maior, nos aspectos culturais e participativos.
A racionalidade ambiental caracterizar-se-ia pela reunião de três aspectos. a) desde uma perspectiva técnica, a procura de uma eco-tecnologia, baseada nos ritmos e ciclos ecológicos. O exemplo que melhor ilustra isso seria, segundo Leff (2006), a agro-ecologia (Altieri, 1999). b) desde uma perspectiva humanista, uma produção destinada à satisfação das necessidades básicas, a qual seria contrária a lógica do mercado. c) o aspecto mais importante a ressaltar, uma racionalidade social diferente da mercantil-produtivista.
Essa nova racionalidade deveria basear-se numa reapropriação social da natureza a partir de formas de democracia participativa direta — não a tradicional democracia representativa. Por sua vez, essa gestão direta dos recursos naturais estaria baseada em práticas tradicionais resultantes das cosmovisões e culturas que têm um comportamento mais harmônico (sustentável) com a natureza.
Se alguma coisa une esses aspectos é o "localismo", a preocupação de que a economia se regule segundo as necessidades, as possibilidades e a participação local. Embora essa idéia não esteja suficientemente desenvolvida por Leff, devemos considerá-la bastante próxima da proposta sintetizada na palavra inglesa "localization".
O eixo estaria dado pela idéia central das comunidades, das regiões e das nações — nessa ordem, do menor ao maior — lograrem recuperar o controle sobre a economia. A prioridade seria a auto-suficiência. Tudo o que pode ser produzido no local deve sê-lo. Quando não houver condições locais, o regional tem prioridade, depois o nacional e, em última instância, o internacional.
O mercado, na crítica da lógica de mercado é a causa principal da insustentabilidade, mas não fica claro como a nova racionalidade ambiental vai se relacionar com o mercado. Leff não é nenhum partidário da ecologia radical, nem está pensando numa "volta atrás" na história. Então, como a participação social, o resgate das culturas tradicionais, a eco-tecnologia vão se desenvolver num mundo onde o mercado regula a produção? Leff acha que essa nova racionalidade ambiental vai além da alternativa dos economistas ambientais (neoclássicos) para quem os problemas ambientais se resolvem outorgando preços à natureza. É crítico, inclusive, do ecologismo, no sentido de guiar a economia segundo os princípios da ecologia. Ele fala da socialização da Natureza e de um manejo comunitário dos recursos baseados, isso tudo, em princípios de diversidade ecológica e cultural. Assim, ele escreve:
"[...] a democracia e a equidade redefinem-se no campo da sustentabilidade em termos dos direitos de propriedade e de acesso aos recursos, ou seja, das condições culturais e políticas de reapropriação do ambiente" (LEFF: 210).
Socialização da natureza, reapropriação do ambiente, levam a pensar numa ordem na qual a propriedade privada e o mercado sejam marginais ou, pelo menos, governados por outras leis sociais. Como tudo isso vai se levantar como uma alternativa à globalização, à economia corporativa mundial, à lógica do mercado? São todas perguntas de difícil resposta.
E o que resulta ainda mais preocupante é pensar que dentro dessas novas formas de organização participativa, democráticas, auto-gestionárias, não vão surgir contradições e diferenciações internas derivadas da lógica do mercado.


[1] ARENDT, op. cit., p.150).
[2] “A fabricação, que é o trabalho do homo faber, consiste em reificação. A solidez, inerente a todas as coisas, até mesmo às mais frágeis, resulta do material que foi trabalhado; mas esse mesmo material não é simplesmente dado e disponível, como os frutos do campo e das árvores, que podemos colher ou deixar em paz sem que com isso alteremos o reino da natureza. O material já é um produto das mãos humanas que o retiraram de sua natural localização, seja matando um processo vital, como no caso da árvore que tem que ser destruída para que se obtenha a madeira [...] O trabalho de fabricação propriamente dito é orientado por um modelo segundo o qual se constrói o objeto” (ARENDT: 2001, p.152-153).
[3] Protágoras “iniciou uma de suas obras com as seguintes palavras: ‘O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são que elas são, das coisas que não são que elas são’”. (LAERTIOS, 1977, p.264). Essa visão humanista foi retomada intensamente no Iluminismo, neste sentido, vale a pena lembrar o que disse o ‘primeiro dos modernos e o último dos antigos’, Bacon, que: “Se procuramos as causas finais, o homem pode ser visto como o centro do mundo, de tal forma que se o homem fosse retirado do mundo todo o resto pareceria extraviado”.
[4] NOBRE, Marcos; AMAZONAS, Maurício de Carvalho (orgs.). Desenvolvimento Sustentável: a institucionalização de um conceito. Brasília: IBAMA, 2002.
[5] DUPUY, Jean-Pierre. Introdução á crítica da ecologia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
[6] DUPUY, Jean-Pierre. Op. cit., p.18.
[7] “O que as pesquisas socioambientais ou ecológicas mostram ao mundo hoje são dados altamente sintomáticos: para que todos tenham um padrão de vida como o europeu, seria necessário 23 vezes mais energia, 10 vezes mais produção de combustíveis fósseis, 90 vezes mais riquezas minerais, duas vezes a quantidade de terra agricultável – ou seja, outro planeta Terra, outra camada de ozônio, outra atmosfera!”. (PELIZZOLI, op. cit., p.96).
[8] DALY, Herman E. Beyond Growth: The economics of sustainable development. Boston: Beacon, 1996, p. 1-23.
[9] “[...] a descontextualização política, a desarticulação do discurso com a prática, o utilitarismo, a incompreensão das interações com o meio ambiente, os quais se ligam ao habitus da sociedade de cosumo,...” (PELIZZOLI, op. cit., 2003).
[10] A criação cientifica e a inovação tecnológica não se convertem em novos princípios determinantes do desenvolvimento sustentável nem fundam uma ética do conhecimento capaz de dirimir e solucionar os conflitos em torno da apropriação produtiva da natureza. O que foi dito anteriormente implica a necessidade de pensar e de construir uma nova racionalidade produtiva sustentada pelos princípios da entropia e da complexidade ambiental, integrando as formações ideológicas, a produção cientifica, os saberes pessoais e coletivos, os significados culturais e as condições ‘reais’ da sustentabilidade ecológica. A economia fundada no tempo de trabalho foi substituída pela economia baseada no poder do conhecimento científico como meio de produção e instrumento de apropriação da natureza”. (LEFF, op. cit., p. 60-61).
[11] PELIZZOLI, M. L. Correntes da ética ambiental. 2a. ed., Petrópolis, Vozes, 2004.
[12] LANNA, A. E. Economia dos Recursos Hídricos. Programa de Pós-Graduação em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental – IPH/UFRGS, 2000.

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