segunda-feira, janeiro 17, 2011

o signo monetário parece liberar-se de todo referente

A atividade econômica e o intercâmbio orgânico (RECORTES SOBRE leitura EM ENRIQUE LEFF)
Começo com a liberdade de citar um famoso ditado “a necessidade é a mãe da invenção”, que expressa uma idéia comum, como um ponto de partida da discussão sobre o surgimento e evolução da tecnologia dentro da sociedade capitalista geradora de necessidades não satisfeitas pelo mercado; fica evidente que as perspectivas de ganhos ou fama se tornam fatores essenciais como busca de preenchimento das necessidades do proprietário do capital. “A sociedade adota a solução se ela for compatível com seus valores e com outras tecnologias”.[1]
A compreensão da lógica imposta pelos movimentos da industrialização e da acumulação do capital nos mostra uma outra face dessa idéia, o que aparentemente para uma dada época tinha um sentido ingênuo, sob as intenções do mercado passou a significar o contrário: a invenção passa a ser a mãe da necessidade. Uma verdade que solapou e invadiu os continentes ao descobrir que as invenções em suas utilizações incluem a maioria das inovações tecnológicas que alavancaram o crescimento das economias nacionais através do desenvolvimento da atividade industrial e dos mercados. Para cada avanço, novas necessidades surgem e continuam a ser incentivadas pelas inovações e técnicas de marketing objetivando unicamente a conquista de novas e variadas “insatisfações” dos consumidores, criando novas utilidades, usos diversos, invariavelmente fúteis ou de baixa qualidade (produtos para baixa renda, bugigangas a preços módicos) indiferentes a questão ambiental - condição necessária para a ampliação dos mercados e simultaneamente uma maior escala de produção necessária ao apetite insaciável do capital.
Os objetivos do trabalho dependem, por um lado, das necessidades e desejos subjetivos do homem e, por outro, das leis do material de que dispõe para atingir a satisfação de consumo. No entanto, nem o sujeito é o princípio de seus próprios desejos e necessidades, nem as leis da natureza são imanentes e estáticas, nem a ciência é em si mesma uma via de libertação. Marx apresenta o conhecimento do processo histórico que condiciona o desejo humano, para transformá-lo em uma demanda crescente por mercadorias, e que opera sobre o desejo de saber que determina o processo de produção de conhecimentos científicos; não para submeter a matéria e a natureza aos “objetivos do homem”, mas sim à lógica do capital. A práxis no mundo moderno não está guiada por processos de cognição nem pela emergência de uma consciência do mundo dentro de uma fenomenologia biologista, mas se inscreve dentro do ordenamento ontológico e epistemológico que configura uma racionalidade social determinada.[2]
“[...] Na dialética da história, o capitalismo rompe com a unidade entre a sociedade e a natureza; a sociedade se separa de sua organicidade originária e o modo de produção instaura a racionalização do domínio da natureza” (LEFF: 2006, 56).
Para construir um mundo próprio, a vida moderna precisa repousar sobre um dispositivo econômico peculiar, coerente na subordinação, sujeição ou subsunção do processo “social-natural” de reprodução da vida humana sob um processo “social-artificial” apenas transitoriamente necessário: o da reprodução do valor mercantil das coisas na modalidade de uma “valorização do valor” ou “acumulação do capital”. Na base da vida moderna, atua, de maneira incansavelmente repetida, um mecanismo que subordina sistematicamente a “lógica do valor de uso”, o sentido espontâneo da vida concreta, do trabalho e do desfrute humanos, da produção e do consumo dos “bens terrenos”, e “lógica” abstrata do “valor” como substância cega e indiferente a toda concreção e apenas necessitada de validar-se com uma margem de lucro em qualidade de “valor de troca”. É a realidade implacável da alienação, da submissão do reino da vontade humana à hegemonia da “vontade” puramente “coisificada” do mundo das mercadorias habitadas pelo valor econômico capitalista (Echeverria, 1998: 53).
O modo de produção capitalista submete a natureza à lógica do mercado e às normas de produção de mais-valia, ao mesmo tempo que as potencialidades da natureza e do ser humano se convertem em objetos da apropriação econômica. Mas isso não anula os processos organizativos e produtivos da natureza e os sentidos das culturas. O fenômeno da vida e os processos neguentrópicos de organização ecológica, dominados pela racionalidade da produção capitalista, estão latentes, esperando ser incorporados a uma nova racionalidade produtiva.[3]
A revolução científico-tecnológica, desencadeada pela dinâmica do capital, levou a dissolução do princípio que deu fundamento à teoria do valor, quer dizer, o trabalho simples e direto como determinante quantitativo da produção de mercadorias. Este fato tem duas repercussões fundamentais para o pensamento marxista. A primeira se refere à relação orgânica entre teoria e práxis, entre racionalidade e ação social; a segunda, à especificidade epistemológica da ciência da história. As condições de sustentabilidade da produção apresentam a necessidade de se dar novo significado aos conceitos do materialismo histórico para entender as determinações do processo de produção e de reprodução do capital na inovação e na aplicação de conhecimentos científicos e tecnológicos, assim como para poder conceituar a função produtiva do trabalho intelectual e da natureza no processo de produção-transformação do capital. 
Mas, mesmo gerando esses avanços teóricos[4] para integrar as funções manuais e intelectuais do trabalho produtivo às potencialidades produtivas da natureza, o condicionamento social da produção de conhecimentos não poderá reduzir-se às determinações que lhe são impostas pela formação cada vez mais indeterminada do valor no processo de reprodução ampliada e ecologizada do capital. O poder explicativo do conceito de valor e da teoria da produção nas condições de produção de conhecimentos vai se esfumando, não obstante o fato de que as leis científicas e os meios tecnológicos sejam de fato os maiores suportes de desenvolvimento das forças produtivas.
O conhecimento das determinações socioeconômicas da produção de conhecimentos em sua função produtiva é deslocado, assim, para o condicionamento histórico a respeito da produção de conhecimentos em sua função teórica de apreensão do real e na forma como o conhecimento transforma o mundo. Isso haverá de levar à indagação sobre a construção da teoria econômica e da racionalidade que dali se desprende em relação ao conhecimento e à transformação do mundo real. Esta indagação, fundamental para se compreender a crise ambiental como uma crise do conhecimento, ultrapassa as capacidades de compreensão que o materialismo histórico pode aportar e haverá de levar à sua desconstrução para construir uma nova racionalidade social e produtiva.[5]
As práticas sociais transformam a realidade social e modificam dessa forma suas leis internas. Por isso não existem leis absolutas que comandem a práxis, mas esta não se realiza alheia às determinações e condições que configuram uma racionalidade social. A revolução científico-tecnológica está operando uma transformação do processo de trabalho e intervindo na natureza. As forças da natureza, magnificadas pela ciência, converteram-se nas forças predominantes da produção da riqueza, ao mesmo tempo que o equilíbrio dos sistemas ecológicos se apresenta como uma condição de sustentabilidade do processo econômico. A complexidade ambiental que articula os processos de produtividade ecológica e de inovação tecnológica e que aninha na constituição de identidades culturais e de sentidos existenciais substitui, progressivamente, o tempo de trabalho como determinante da produção de valores de uso e de mercadorias. A produtividade da natureza, o desenvolvimento cientifico, o equilíbrio ecológico, a inovação tecnológica e os valores culturais constituíram-se em condição sistêmica do processo econômico.
A produção e a distribuição de riqueza dependem de estratégias de produção e apropriação do conhecimento. Esses processos naturais e cognoscitivos não são determinados pela lei do valor. Sem dúvida, as descobertas científicas tampouco são produzidas simplesmente, como se fossem o efeito de uma lógica interna da ciência – do crescimento do conhecimento através da livre criação ou do planejamento do empreendimento cientifico; pela refutação e verificação de suas hipóteses e teorias (Popper, 1973); pela estrutura e revoluções dos “paradigmas científicos” (Kuhn, 1970)-, nem por uma razão tecnológica (Marcuse, 1967), independentes da dinâmica social, da pulsão de conhecer e das estratégias de poder no saber (Foucault, 1980). A criação cientifica e a inovação tecnológica não se convertem em novos princípios determinantes do desenvolvimento sustentável nem fundam uma ética do conhecimento capaz de dirimir e solucionar os conflitos em torno da apropriação produtiva da natureza. O que foi dito anteriormente implica a necessidade de pensar e de construir uma nova racionalidade produtiva sustentada pelos princípios da entropia e da complexidade ambiental, integrando as formações ideológicas, a produção científica, os saberes pessoais e coletivos, os significados culturais e as condições “reais” da sustentabilidade ecológica.[6]
A economia fundada no tempo de trabalho foi substituída pela economia baseada no poder do conhecimento científico como meio de produção e instrumento de apropriação da natureza[7]. A acumulação e a concentração de capital já não se baseiam tão-somente na superexploração da natureza e da mão-de-obra barata do terceiro Mundo, mas, também, em novas estratégias de apropriação capitalista da natureza dentro da nova geopolítica do desenvolvimento sustentável incluindo a apropriação gratuita e a pilhagem dos recursos genéticos, a subavaliação dos bens naturais e dos serviços ambientais e o acesso subvencionado a hidrocarbonetos e recursos hídricos que mantém uma agricultura supercapitalizada e um planeta hiperurbanizado.
A própria dialética do modo de produção capitalista, objeto da economia política, chega ao limite de seu poder de explicação; seus conceitos se desatam e evapora-se seu poder explicativo. O vínculo entre o valor de uso e a demanda, assentados na necessidade e na utilidade, e o valor de troca, fundado na equivalência dos trabalhos e das utilidades, se dissolve, ao mesmo tempo que a “lógica do valor de troca” se torna autônoma, configura um código geral no qual se subsume ao ser de todas as coisas, e vai transmutando as necessidades, os desejos e as utilidades em uma mesma substância etérea de valor, fora de todo referente e de todo sentido. O código econômico gira vertiginosamente acima de toda lógica e de toda razão. É o império da lei estrutural do valor sobre o valor de uso cingido a uma significação cultural:
Esta revolução consiste em que os dois aspectos de valor, que algumas vezes se pensou que estivessem coerente e eternamente vinculados, como por uma lei natural, se desarticulam: o valor referencial se nulifica em beneficio do jogo estrutural do valor. A dimensão estrutural ganha autonomia excluindo a dimensão referencial, estabelecendo-se sobre a morte desta última. Terminam os referenciais da produção, da significação, do afeto, da substância, da história, toda equivalência de conteúdos “reais” que davam seu peso ao signo ao ancorá-lo com um certo peso de utilidade e de gravidade – sua forma de equivalente representativo. Tudo isso permanece mesmo substituído por outro estágio do valor, o da relatividade total, da comutatividade generalizada, da simulação combinatória. Simulação no sentido de que agora em diante os signos se intercambiarão entre si mesmos sem interactuar com o real [...] A mesma operação ocorre no nível da força de trabalho e do processo de produção: a eliminação de todas as finalidades de conteúdo da produção permite que esta funcione como um código, e permite ao signo monetário evadir-se em uma especulação indefinida fora de toda referência ao real da produção (Baudrillard, 1976: 18). [8]
E, sem dúvida, mesmo que o signo monetário pareça liberar-se de todo referente como valor de uso e flutuar no gozo pleno de uma espetacular especulação sem uma ancoragem real, não consegue desprender-se de seu vínculo com a natureza. O discurso do desenvolvimento sustentável é uma das expressões mais claras desse simulacro, mediante o qual todo o real é dessubstanciado de seu ser e ao mesmo tempo recodificado pelo signo unitário do mercado, gerando a hipereconomização do mundo. E, sem dúvida, o real continua resistindo e respondendo a essa falha da teoria desde a lei limite da natureza.
Das entranhas do processo econômico continuam sendo gestados os efeitos destrutivos da natureza que haveriam de se manifestar com o crescimento da economia global, na crise ambiental. É isso o que gerou na teoria econômica uma preocupação com suas “externalidades” – as condições ecológicas da produção -, buscando internalizar o que foi negado e ignorado pela teoria acerca do mundo sobre-determinado pela estrutura econômica, por um devenir conduzido pela idéia de progresso, por uma liberação dependente do desenvolvimento das forças produtivas guiadas pela ciência e pela tecnologia. O mundo objetivado pela necessidade de manter um processo crescente de produção, guiado pelo princípio de realidade gerado pela racionalidade tecnoeconômica, se encontra com seu Outro, com o ambiente.


[1] DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. São Paulo: Record, 2004. p. 242.
[2] LEFF, Enrique. Racionalidade Ambiental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 53, 54.
[3] LEFF, op. cit., p. 57.
[4] LEFF, op. cit., p. 58.
[5] LEFF, op. cit., p. 59.
[6] LEFF, op. cit., p. 60.
[7] A legitimação dos direitos de propriedade intelectual sobre os recursos genéticos da biodiversidade e o poder de invadir as regiões tropicais do Terceiro Mundo com produtos transgênicos expressam o poder dessa economia ecologizada e cientificizada.
[8] LEFF, op. cit., p. 63, 64.

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