terça-feira, janeiro 18, 2011

uma racionalidade desvinculada das condições ecológicas da produção

O racionalismo econômico e a crise ambiental (recortes de leituras II)
O atestado de óbito da teoria do valor foi assinado pelas escolas da economia, como princípio que haveria de assentar o processo de produção sobre alicerces objetivos e em uma substância material, seja nas forças da natureza ou da potência do trabalho. Perdeu-se essa referência do real, e “o processo econômico ficou determinado pelas leis cegas do mercado, subjetivado pelo interesse individual, guiado pelo espírito empresarial e sustentado pelo potencial tecnológico que, convertidos em princípio de uma ciência econômica, legitimaram uma racionalidade desvinculada das condições ecológicas da produção, de um juízo moral sobre a distribuição da riqueza e das formas de significação cultural da natureza”.[1]
[...] A conversão da natureza em objetos de trabalho e de seus produtos em mercadorias, o intercambio generalizado entre esses produtos em função do tempo de trabalho socialmente necessário – de seu valor -, não é um pressuposto filosófico materialista nem uma dialética do processo laboral da história humana em geral, e sim da estrutura social, da racionalidade teórica e prática e do modo de produção da sociedade capitalista.[2]
Na dialética da História, a demasiada exploração da Natureza pelo homo faber e a instrumentalização do Mundo, destacada por Arendt, propicia o surgimento do ecocentrismo (antítese à tese antropocentrista), em que a natureza deixa de ser vista como meio e passa a ser vista como fim, nos termos do que defende a chamada “deep ecology”. As decisões sobre o uso dos recursos naturais com consideração ou desconsideração ao impacto sobre o ambiente são determinantes básicos para a poluição e outras formas de degradação ambiental, bem como para o maior ou menor custo de produção do país e o consequente interesse de investimentos internacionais neste país.[3] As decisões sobre o uso dos recursos naturais, que são tomadas pelo mercado, sem a internalização do custo ambiental, mostram-se, distorcidas. A internalização dos custos defronta-se, portanto, também, com a questão da competitividade internacional, com as vantagens comparativas e com o dumping ecológico (considerado vantagem comparativa reprovável)[4].
A preocupação de segmentos da atividade econômica com relação às diferenças de padrões das normas ambientais nos diversos países é, extremamente, relevante em um mercado globalizado. Os agentes econômicos que internalizam maior proporção dos custos ambientais da produção, pela implementação de normas ambientais rigorosas ou outras medidas atinentes à política ambiental, ficam em desvantagem em relação aos que seguem normas ambientais menos rigorosas. Como expressão desse jogo das forças de mercado, pode-se visualizar a forte pressão exógena sofrida pelos Estados para uma homogeneização por baixo das normas protetivas ambientais.
Uma padronização mínima, em nível internacional, da internalização dos custos ambientais dos produtos comercializados no exterior, portanto, faz-se necessária (FARIAS, 2005, p.272); a internalização de custos ambientais desemboca em dois tipos de dificuldades:
a) dificuldades aparentemente técnicas de valorar processos ecológicos incertos e heterogêneos;
b) dificuldades de identificar as fontes de legitimidade para fundamentar os valores econômicos de tais processos e fazê-los valer nos mecanismos decisórios ou no mercado.
Os planejadores passam então a nomear os chamados fatores sem preço ou os fatores não facilmente exprimíveis em dólares (NEEDS); reconhecem que negligenciar esses fatores implica em criar desvios significativos: os analistas podem confundir as coisas contáveis com as coisas que contam realmente (Holdren, 1992). Assinala-se, por outro lado, que os esforços para quantificar e incorporar maior conservação e recursos renováveis nos planos avançados (no caso do setor elétrico em Wisconsin) foram mal sucedidos, e que o que caracteriza o esforço de considerar as externalidades ambientais é o compromisso e a vontade de usar a perspectiva societal na qual estas externalidades recebam o peso apropriado (Munts, in Hohmeyer & Ottinger, 1991).
A falta de precisão conceitual tem levado a que se superponham desordenadamente os diferentes planos do debate as questões relativas à valoração econômica do meio ambiente enquanto procedimento metodológico e a internalização dos custos ambientais enquanto prática política. A clarificação é, em certos casos, indispensável para que se delineiem com maior precisão os termos do debate. As ambiguidades no uso da noção de externalidade merecem particular atenção.
Charles Arden-Clarke, por exemplo, faz um considerável esforço no sentido de discutir os instrumentos alternativos para enfrentar os efeitos danosos dos termos desiguais do comércio internacional sobre o meio ambiente, notadamente nos países do Sul (Arden-Clarke, 1992). Essa iniciativa evidencia um dos muitos casos em que, para os propósitos do debate, faz-se necessário definir melhor os conceitos utilizados. Em particular, convém diferenciar os vários mecanismos que, no tratamento do autor, estão recobertos pela mesma noção de externalidade, dando lugar a uma conceituação fluida da própria idéia de internalização de custos.
O autor caracteriza a ocorrência de uma subestimação dos preços das commodities. Essa subestimação dever-se-ia a três diferentes processos, que serão a seguir examinados: O gap nos preços dever-se-ia ao existente diferencial entre os custos unitários monetários dos métodos sustentáveis e dos métodos não-sustentáveis de exploração dos recursos. Para o autor, os preços prevalecentes correspondem aos custos privados de exploração dos recursos naturais. As técnicas dominantes, no entanto, são ineficientes do ponto de vista da preservação dos estoques desses recursos naturais. Haveria, portanto, que se incentivar a mudança técnica, passando-se de métodos de baixo custo privado unitário para métodos de alto custo privado unitário.
O problema aqui é o de viabilizar, estimular, administrar e financiar a mudança técnica, por um lado, e, por outro, inibir ou impedir a presença de técnicas predatórias no processo de competição. Não se trata, portanto, neste caso, de internalizar nenhum efeito externo, mas sim de administrar a mudança técnica em processos dotados de custos monetários privados bem delimitados e identificáveis.
Os métodos prevalecentes de exploração dos recursos naturais para os quais existe mercado organizado levam à destruição de recursos conexos, de valor de mercado presente relativamente pouco significativo ou nulo. Embora inexista para eles demanda presente em moeda, estes recursos naturais conexos encerrariam um valor econômico potencial não contemplado nos preços de mercado.
Se o que está em jogo é o valor econômico desses recursos conexos bem delimitados e materializados, podemos supor que os ditos métodos sustentáveis de produção implicarão também a preservação dos estoques desses recursos (como, por exemplo, no manejo florestal com corte seletivo de toras de madeira comercial). Nessa lógica, este segundo tipo de processo ambientalmente danoso estaria supostamente resolvido pelo mesmo mecanismo descrito no primeiro tipo: a gestão da mudança técnica para métodos sustentáveis permitiria a preservação dos estoques de recursos naturais, assim como dos estoques de recursos conexos ainda não explorados comercialmente.
Em suas várias representações economias e deseconomias externas, divergência entre custo marginal social e custo marginal privado, produto marginal social e produto marginal privado, efeitos de vizinhança, intercorrências de bens coletivos ou públicos o conceito de externalidade domina teoricamente a Economia do Bem-estar. No entanto, os próprios expoentes dessa corrente teórica reconhecem as dificuldades apresentadas por tal conceito impreciso segundo alguns, extremamente amplo nas realidades que pretende recobrir, segundo outros. Vigora, via de regra, o sentimento de que ainda não se conseguiu captar todas as suas ramificações (Baumol & Oates, 1975).
Multiplicam-se as tipologias: externalidades marginais e inframarginais, tecnológicas e pecuniárias, separáveis e inseparáveis, relevantes e irrelevantes do ponto de vista de Pareto, depletable e undepletable, e assim por diante. Como explicar esse caráter fugidio do conceito? O conceito marshalliano de externalidade referia-se principalmente ao problema da firma representativa e à redução de custos originada em decisões externas à firma, tais como no acesso a mão-de-obra treinada, melhor padrão de saúde e educação, vantagens fornecidas indiretamente por outras firmas ou pelo investimento público. Nessa tradição, Meade caracterizou dois tipos de economias e deseconomias externas:
a) fatores de produção não pagos por retornos constantes de escala para a sociedade, mas não para o setor industrial que investiu;
b) criação de atmosfera por retornos de escala constantes para o setor industrial tomado individualmente, mas não para a sociedade como um todo (Meade, 1952).
A questão para Meade é a de que os resultados de certos esforços de investimento são apropriados gratuitamente ou sofridos involuntariamente por terceiros. A despeito da menção à sociedade, trata-se, na verdade, de relações entre unidades privadas de capital, de ganhos ou perdas privados decorrentes de investimentos privados de terceiros e dos efeitos alocativos que estes acarretariam, ou seja, o afastamento do ponto de equilíbrio. O empreendimento de Meade, como assinala Scitovsky, é uma tentativa de problematização da interdependência direta entre produtores individuais (Scitovsky, 1954). 
Na Teoria do Equilíbrio Geral lembra este autor, a interdependência direta é a vilã da história e a causa do conflito entre o lucro privado e o benefício social (Scitovsky, 1954). Os desafios que se colocam os economistas do bem-estar são, nesse caso, os de reconstruir teoricamente as condições de equilíbrio em ausência dos pressupostos da competição perfeita. Partem, para tanto, de procedimentos de identificação das origens do conflito, nos quadros da teoria do equilíbrio. Formulam, assim, que as externalidades são peculiaridades da função de produção (Scitovsky, 1954) e que há efeitos externos quando a função de produção de uma firma depende de algum modo do montante de insumos ou produtos de outra firma (Buchanan & Stubblebine, 1962). Mas a que processo social específico referem-se as interdependências diretas e as peculiaridades das funções de produção (Scitovsky, 1954); a dependência do montante de insumos ou produtos de outras firmas (Buchanan & Stubblebine, 1962), as  trocas involuntárias, os  processos técnicos naturais (Seneca & Taurnis, 1974) etc? Ora, o que estas expressões parecem tentar recobrir são as relações de intercorrência não-mercantil das atividades das firmas. Elas procuram descrever um certo número de processos pelos quais as firmas estabelecem práticas relacionais distintas das relações contratuais correntes de compra e venda. E o que os economistas do bem-estar procuram são os meios de traduzir as interdependências diretas não mediadas pela moeda, relações de não-mercado em termos de mercado.
A grande dificuldade decorre, portanto, do fato que o referencial teórico de que partem foi construído tendo por eixo o sistema de preços, não conseguindo contemplar os fenômenos que escapam à capacidade regulatória desse sistema. A percepção dessa contradição levou autores como Kapp a ver na teorização da externalidade, antes um esforço lógico no sentido da legitimação da teoria do equilíbrio geral do que de construção de um arcabouço teórico apropriado ao entendimento dos fenômenos não-mercantis (Kapp, 1970).
A referência à degradação ambiental como custo social remete aos trabalhos do professor Pigou. Originalmente, Pigou identifica a possível ocorrência de diferenças entre o produto marginal privado líquido e o produto marginal social líquido quando uma parte do produto de uma unidade de recursos consiste em algo que, ao invés de reverter à pessoa que investiu essa unidade, reverte como algo positivo ou negativo para outras pessoas (Pigou, 1932). Pigou refere-se, portanto, às diferenças entre os benefícios líquidos privados e sociais da produção. Menciona em seguida que estas diferenças não podem ser mitigadas modificando as relações contratuais entre partes contratantes porque a divergência provém de serviços ou prejuízos causados a pessoas que não têm entre si nenhuma relação contratual (Pigou, 1932). Refere-se aqui a prejuízos, mas não a custos. Qual a noção de custo no pensamento neoclássico? Segundo Marshall, é o esforço de todas as distintas classes de trabalho que estão direta ou indiretamente envolvidas na produção, junto com a abstinência necessária para economizar capital utilizado na produção (Marshall, 1985). Ou para Cassel, custos são atividades de que nos privamos ao adotar certo modo de ação (Cassel, apud Marshall, 1985). Para esses autores, assim como para a tradição da economia clássica, os custos como elementos da teoria econômica decorrem sempre de decisões voluntárias adotadas com fins de produção. Não se aplicam, portanto, aos prejuízos sofridos involuntariamente na menção de Pigou.
Observamos, portanto, que a economia do meio ambiente promoveu um deslizamento semântico do dano sofrido ao custo assumido por privação voluntária de utilidade. Nesse sentido, para além da crítica de Kapp, para quem os custos sociais são uma constelação de interdependências de mercado e não-mercado de caráter heterogêneo (Kapp, 1969), caberia acrescentar que o dano ambiental não é especificamente um custo no sentido econômico, não sendo por essa razão facilmente monetizável ou redutível a uma relação voluntária de troca (vide atingidos por barragens, desestabilização da base natural da existência sociocultural de populações tradicionais, desestruturação de ecossistemas etc.). Por consequência, os chamados custos sociais e os custos privados não são, em geral, comparáveis. A defasagem entre eles não é de quantidade (traduzível em um valor monetário embutido em uma taxa, por exemplo) como o quer o liberalismo de bem-estar de Pigou, mas sim de qualidade.
Segundo os economistas do bem-estar, o custo social total é a soma dos custos privados da firma e de qualquer custo externo. O uso do termo externo implica que alguns custos não são somados à firma que produziu os bens, mas são impostos a toda sociedade. Estes custos estão fora do sistema de mercado e não se refletem nos preços relativos de mercado (Seneca & Taurnis, 1974). No entanto, como lembra Frydman, o mercado é uma noção ambivalente: é o domínio racionalizável das práticas por que se interessam os economistas e, ao mesmo tempo, a racionalização dessas práticas (Frydman, 1992). Frequentemente, o domínio é definido pelo conceito. A Economia é a ciência dos mercados nos diz Buchanan, e o mercado é o que pode estudar o método econômico. Pois se neste território do mercado o agente é sempre racional, quaisquer que sejam as restrições, tudo que esteja fora dessa racionalidade estará fora do objeto.
O mercado designaria mais seguramente um procedimento de representação ou uma problemática do que um território social singular. Por consequência, os cortes analíticos centrados no mercado são incapazes de reconhecer a diversidade de espaços sociais do não-mercado. Desconhecem, portanto, os diferentes tipos de socialização contidos nas próprias dimensões do econômico.
O reducionismo se agrava, ademais, quando se reduzem as relações de mercado a um conjunto determinado de formas aquelas constitutivas do chamado mercado-mecânico. Neste, dá-se o ajustamento anônimo dos preços e quantidades e o ajustamento pessoal das quantidades e utilidades, estudados como movimentos mecânicos na relação entre os agentes da troca e na relação de certos agentes com os meios para satisfazer seus fins (Berthoud, 1992). Nessa construção teórica, nosso olhar é obscurecido pela ilusão de um desejo para o qual só o dinheiro é objeto de uma demanda geral na troca. Pois o mercado-mecânico só tem sentido lá onde o dinheiro domina inteiramente as trocas (Berthoud, 1991). Os territórios sociais do não-monetário, do não-mercado mecânico, do não-mercado, do não-econômico não podem, portanto, ser contidos pelo instrumental teórico da economia do bem-estar. Na realidade, são externos a esta teoria.
Quando aplicada à problemática ambiental, a noção de externalidade sugere que a degradação do meio ambiente resulta de uma brecha do mercado por onde a alocação dos recursos se afastaria de uma situação ótima. Ela implica em considerar que:
a) a externalidade é excepcional frente às capacidades de regulação do mercado, e;
b) a degradação do meio ambiente é uma manifestação da ineficiência na alocação dos recursos.
O que prevalece, portanto, na noção de externalidade é uma visão da sociedade construída do ponto de vista do mercado. Por esse viés, por mais ampla que seja a gama de efeitos externos, ela será sempre vista como excepcional, ainda que sistemática. Ao discutir as dificuldades da internalização das externalidades no setor elétrico, J. Keppler reconhece que o campo da produção e consumo de energia ultrapassa o problema do uso de bens escassos para fins alternativos, o problema não é mais de alocação dentro de um sistema, mas da própria natureza do sistema (Keppler, in Hohmeyer & Ottinger, 1991:476).
A leitura mercantil dos fenômenos sociais permite também reduzir o conjunto dos processos sociais que vicejam na interface mercado/não mercado a meros problemas de eficiência alocativa de recursos. Como diz O. Godard, o modo de definição deste espaço “externo” exclui que se lhe aplique um aparelho conceitual e instrumental elaborado para a noção de bem mercantil. Em que pesem as exceções possíveis, os fenômenos e interdependências pertinentes a este espaço “externo” aparecem geralmente como difusos, dificilmente quantificáveis, globais, pouco individualizáveis, instáveis e cambiantes; ademais, eles dão lugar a mudanças irreversíveis, processos cumulativos ou defasados no tempo. Todas essas características oferecem uma séria resistência, bem constatada empiricamente, às tentativas de internalização mercantil (Godard, 1984:332).
A noção de externalidade configura assim o buraco negro do individualismo metodológico que fundamenta a economia neoclássica, evidenciando sua incapacidade de equacionar as dimensões coletivas e não-mercantis da produção social. Nos pressupostos da teoria individualista centrada no binômio utilidade-escassez, cada sujeito individual já tem o conjunto da sociedade em sua cabeça. A concepção de sujeito econômico é construída para tornar o mercado independente de toda determinação social. No entanto, nenhuma economia pode existir fora de um conjunto de instituições (Aglietta, 1984).
O fato de que parte dos custos de produção possam ser transferidos para a sociedade como um todo, lembra-nos Kapp, é meramente um modo de dizer que custos e lucros dependem em alguma medida do poder de a firma fazê-lo (Kapp, 1969). As relações de força são, no entanto, ignoradas pelo esvaziamento das determinações sociais dos sujeitos econômicos. Na ciência moderna, a racionalidade tende a ser apresentada como a fonte de legitimidade dos conceitos. No entanto, toda definição a-histórica da racionalidade traduz regras que nada explicam (Stengers & Schlanger, 1989). Nessa perspectiva, ao serem caracterizados de externalidade, os problemas ambientais são vistos antes como resultantes das inadequações da natureza, o caráter difuso dos direitos de propriedade que ela comporta mais do que de incapacidades do próprio mercado. E os fatos contidos na noção de externalidade não são vistos como processos sociais, formas específicas da sociabilidade capitalista. Entretanto, tais formas, como veremos, exprimem a ação de forças extramercantis na colonização de espaços sociais em favor da acumulação capitalista.
Para além dos ajustes referenciados ao sistema de preços, os capitais se apropriam de um conjunto de circunstâncias que favorecem a acumulação: vantagens locacionais, economias de aglomeração, disponibilidade de infra-estrutura financiada pelo setor público, concentração da oferta de trabalho e, de forma análoga, os chamados serviços da natureza.
Os ganhos de competitividade decorrentes da apropriação das vantagens naturais, institucionais e políticas da esfera não-mercantil são considerados legítimos do ponto de vista do capital. Não são, portanto, falhas de mercado, mas vantagens competitivas disputadas entre os diferentes capitais. Essas vantagens podem assumir distintas formas, desde o uso das condições geoclimáticas favoráveis à plantação homogênea de eucalipto até as possibilidades de impor à população o consumo forçado de produtos invendáveis dos empreendimentos industriais, emissões gasosas, efluentes líquidos e resíduos sólidos. Isto porque o uso gratuito do meio ambiente é um dos mecanismos pelos quais é desvalorizada a fração constante do capital (investimentos em máquinas, equipamentos e materiais) com o fim de elevar a taxa de lucro ou resistir à sua queda. Embora os elementos do meio ambiente representem inegável valor de uso para os capitais, eles não são transformados em parte integrante desses capitais. Funcionam como uma fração fictícia dos mesmos.
Desempenham, portanto, as funções técnicas de uma fração totalmente desvalorizada do capital constante. Essas funções só serão erigidas à categoria de falhas de mercado em razão das pressões dos movimentos sociais, a resistência social às externalidades ou quando o dano ambiental comprometer os elementos da natureza enquanto recursos produtivos potenciais. Cabe mencionar que, mesmo no âmbito do ecologismo, alguns tendem a interpretar os movimentos sociais do ponto de vista do mercado, ao considerar que os movimentos ecológicos são respostas sociais às externalidades, preenchendo uma função para a qual o mercado falha (Martínez-Alier, 1993). Ora, os movimentos não assumem uma função corretiva dos mercados. Promovem, isto sim, uma luta em torno do modo de uso do meio ambiente, que se desenvolve tanto dentro como fora do mercado. São as tensões dessa luta que dão às imprecisões do conceito de externalidade sua substância social.[5]
No tocante aos recursos hídricos – para os quais já existe uma vasta experiência de cobrança, notadamente nos países da Europa Ocidental – as perspectivas abertas pela legislação brasileira são bem animadoras. Isto resulta da convergência de vários fatores:
Em primeiro lugar, devemos notar que, indo ao encontro de uma tendência mundial de publicização das águas, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a propriedade estatal dos recursos hídricos. Nos seus art. 20, inciso III, e 26, inciso I, fica estabelecida a propriedade, respectivamente: i) da União, no que concerne a cursos d’água de fronteira interestadual, fronteira internacional e daqueles que atravessam vários estados da Federação; ii) dos estados federados, no que concerne às águas fluviais interiores e às águas subterrâneas. Por estes dispositivos constitucionais, não existem mais águas privadas, nem municipais; além disso, em virtude do estabelecimento explícito de propriedade estatal, fica bem mais fácil a cobrança pelo uso do recurso hídrico, uma verdadeira renda de escassez, como vimos.
Em segundo lugar, temos que considerar algumas leis estaduais e a Lei Federal 9.433/97. De fato, leis como a paulista (Lei 7.763/91) e gaúcha (Lei 10.350/94) instituem Sistemas Estaduais de Recursos Hídricos onde o princípio usuário pagador e a consecução de metas de qualidade constituem pilares fundamentais da política de gestão dos recursos hídricos sob o domínio do respectivo estado federado. Por outro lado, a Lei Federal 9.433/97 também reconhece a cobrança como instrumento de gestão; entretanto, coerente com a Lei Federal 6.938/81 (mas, em nosso entender, equivocadamente) a Lei 9.433/97 considera o enquadramento dos corpos d’água (estabelecimento de padrões de qualidade) como instrumentos e não como metas.
Em terceiro lugar, temos que levar em conta a Resolução CONAMA 020/86. Este dispositivo legal, embora criticável e criticado devido a alguns pormenores técnicos relativos a parâmetros de qualidade, tem um enfoque bem abrangente da questão da administração dos recursos hídricos, podendo vir a ser uma moldura legal federal que possibilite aos estados federados realizar políticas custo-efetivas. Neste sentido, algumas características da Resolução merecem destaque, e põe a questão dos padrões de qualidade como metas socialmente acordadas. Além disto, a flexibilização, quanto a padrões de emissão, expressa no art. 23, é absolutamente essencial no que se refere à possível aplicação do princípio poluidor pagador. Como se sabe, o estabelecimento de uma tarifa para o descarte de efluentes implica que alguns setores farão tratamento para evitar o pagamento (desde que o seu custo marginal de tratamento seja inferior à tarifa devida à Agência de Bacia), enquanto outros pagarão integralmente a tarifa, não fazendo tratamento algum (uma vez que o custo marginal de tratamento é superior à tarifa). É claro que, quanto maior a tarifa (a ser estabelecida por cada um dos comitês), tanto maior será o número de setores/agentes que estarão na primeira categoria e tanto menor os da segunda. Seja como for, o fato é que o descarte de efluentes, por agente, não será igual para todos, fato que contradiz uma política de mandato-e-controle “pura”.
Uma das dificuldades de implantação deste tipo de política é a ocorrência de sérios mal entendidos com a área de movimentos ambientalistas, e até com área jurídica, na medida em que parece que está sendo defendido o princípio poluidor pagador, como “uma desculpa para pagar e continuar poluindo”, quando o que se pretende, na realidade, é obter níveis crescentes de abatimento – em direção à consecução dos objetivos de qualidade – mas ao menor custo para a sociedade (daí o caráter custo-efetivo da tarifa). Sendo assim, o termo princípio usuário pagador, além de ser mais abrangente, parece ser "politicamente" mais adequado.
É possível verificar que em termos de legislação a área de recursos hídricos apresenta condições bastante favoráveis para a evolução das políticas para o setor. Estas condições já estão surtindo efeitos concretos, na forma de um aperfeiçoamento institucional, que se dá, por exemplo, pela formação de comitês de bacia. Em termos de adoção de instrumentos econômicos, a cobrança pelo uso da água é o instrumento que domina o cenário atual, muito mais na forma de discussões e estudos, do que de implementações concretas de sistemas de cobrança baseados na nova legislação, o que é compreensível, face ao caráter recente da mesma. Por outro lado, o uso de permissões de emissão negociáveis não tem sido objeto de maior atenção. Isto se deve, provavelmente, à dificuldade de estabelecer mercados competitivos para estas permissões, principalmente no contexto de um país em desenvolvimento. Além disso, as características de sazonalidade de algumas atividades poluidoras, bem como da vazão dos cursos d'água, pode tornar a questão da distribuição das permissões bastante complexa.
A gestão dos recursos hídricos no Brasil está efetivamente no início da transição do período da política "pura" de comando e controle, para uma política mais flexível, de uso de padrões de emissão e instrumentos econômicos, como meios de atingir certos padrões de qualidade. A legislação vigente cria a possibilidade concreta de contornar problemas relativos a padrões de emissão excessivamente restritivos, através da consideração destes como instrumentos subordinados aos padrões de qualidade, os quais devem ser determinados pela sociedade.

                  A cobrança pelo uso da água disponível no ambiente será o instrumento econômico primordial desta transição. Os estudos que estão sendo desenvolvidos dão a base para a implementação efetiva dos sistemas de cobrança, cujos resultados irão, de forma cíclica, realimentar os estudos e subsidiar o aperfeiçoamento dos sistemas. O eventual sucesso deste modelo de gestão, na consecução dos objetivos almejados, poderá ter forte influência sobre outros setores da política ambiental.[6]


[1] LEFF, Enrique. Racionalismo Ambiental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p.31.
[2] LEFF, op. cit., p. 52.
[3] FARIAS, Paulo José Leite. Água: Bem Jurídico Econômico ou Ecológico? Brasília Jurídica, BRASÍLIA, 2005.
[4] FARIAS, op. cit., p. 271.
[5] ACSELRAD, Henri. Externalidade ambiental e sociabilidade capitalista in Desenvolvimento e Natureza: Estudos para uma sociedade sustentável. Clóvis Cavalcanti (org.), 1994.
[6] CÁNEPA, Eugênio Miguel; TAVARES, Vitor Emanuel; LANNA, Antonio Eduardo e PEREIRA, Jaildo Santos. Perspectivas de Utilização de Instrumentos Econômicos na Política e Gestão Ambiental: o caso dos recursos hídricos.

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