A Globalização Econômica e a Morte da Natureza
por Enrique Leff *
A crise ambiental foi o grande desmancha-prazeres na comemoração do triunfo do desenvolvimentismo, expressando uma das falhas mais profundas do modelo civilizatório da modernidade. A economia, a ciência da produção e distribuição, mostrou seu rosto oculto no disfarce de sua racionalidade contra natura. O caráter expansivo e acumulativo do processo econômico suplantou o princípio de escassez que funda a economia, gerando uma escassez absoluta, traduzindo-se em um processo de degradação global dos recursos naturais e serviços ambientais. Este fato se torna manifesto na deterioração da qualidade de vida, assim como na autodestruição das condições ecológicas do processo econômico (J. O’Conner, 1988). A degradação ecológica é a marca de um crise de civilização, de uma modernidade fundada na racionalidade econômica e científica como valores supremos do projeto civilizatório da humanidade, que tem negado a natureza como fonte de riqueza, suporte de significações sociais e raiz da co-evolução ecológico-cultural. Apesar da marca indelével dessa falta, a queda do socialismo real converteu-se em um argumento triunfalista para a racionalidade econômica unipolar, para a expansão e globalização do mercado sem contrapesos políticos e de um novo crescimento, com controles ecológicos, mas sem limites.
Nesse sentido, a viabilidade do desenvolvimento sustentável converteu-se em um dos maiores desafios históricos e políticos do nosso tempo. Dali surgiu o imperativo de ecologizar a economia, a tecnologia e a moral. Nessa perspectiva se inscrevem as tentativas da economia neoclássica para internalizar as externalidades ambientais com os critérios da racionalidade econômica, ou os da economia ecológica para fundar um novo paradigma, capaz de integrar os processos ecológicos, populacionais e distributivos aos processos de produção e consumo. A economia ambiental (a economia neoclássica dos recursos naturais e da contaminação) supõe que o sistema econômico pode internalizar os custos ecológicos e as preferências das gerações futuras, atribuindo direitos de propriedade e preços de mercado aos recursos naturais e serviços ambientais, de maneira que estes pudessem integrar-se às engrenagens dos mecanismos de mercado que se encarregariam de regular o equilíbrio ecológico e a equidade social. No entanto, a reintegração da natureza e da economia enfrenta o problema de traduzir os custos de conservação e restauração em uma medida homogenia de valor. A economia ecológica assinalou a incomensurabilidade dos processos energéticos, ecológicos e distributivos com a contabilidade econômica, assim como a impossibilidade de reduzir os valores da natureza, da cultura e da qualidade de vida à condição de simples mercadorias, e os limites que impõe as leis da entropia ao crescimento econômico. A valorização dos recursos naturais está sujeita a temporalidades ecológicas de regeneração e produtividade, que não correspondem aos ciclos econômicos, e a processos sociais e culturais que não podem reduzir-se à esfera econômica. A internalização das condições ambientais da produção implica, assim, a necessidade de caracterizar os processos sociais que subjazem e desde onde se atribui um valor – econômico, natural – à natureza.
A crise de recursos deslocou a natureza do campo da reflexão filosófica e da contemplação estética para reintegrá-la ao processo econômico. A natureza deixou de ser um processo de trabalho e uma matéria-prima para converter-se em uma condição, um potencial e um meio de produção. A conservação dos mecanismos reguladores e processos produtivos da natureza aparecem assim como condição de sobrevivência e fonte de riqueza, induzindo processos de apropriação dos meios ecológicos de produção e a definição de novos estilos de vida. No entanto, a problemática ambiental supera o propósito de realizar “ajustes (ecológicos) estruturais” no sistema econômico e de construir um futuro sustentável através de ações racionais com ajuste a valores ambientais.
Desde tempos imemoriais a sociedade humana tem incorporado normas morais que provaram ser fundamentais para a sobrevivência e a convivência humanas. A proibição do incesto foi uma lei interna da cultura que o homem aprendeu antes de ser formulada por algum antropólogo, e o mito de Édipo marcou a condição do desejo a partir de onde foi traçada a história da subjetividade e da cultura humana. No entanto, a racionalidade científica do Iluminismo construiu um projeto ideológico que pretendia emancipar o homem das leis-limite da natureza. Dessa maneira, a razão cartesiana e a física newtoniana modelaram uma racionalidade econômica baseada em um modelo mecanicista, ignorando as condições ecológicas que impõem limites e potenciais à produção. A economia foi se desprendendo de suas bases materiais para ficar suspensa no circuito do abstrato dos valores e preços do mercado.
A tomada de consciência a respeito dos limites do crescimento que surge da visibilidade da degradação ambiental – mais que das formulações científicas sobre a segunda lei da termodinâmica – desponta como uma crítica ao paradigma normal da economia. Na beira do precipício, soou o alarme ecológico anunciando uma catástrofe tão inesperada como impensável na auto-complacência do progresso científico-ecológico, e a convicção, tanto no campo capitalista como no socialista, de que o desenvolvimento das forças produtivas abriria as portas para uma sociedade de pós-escassez e à liberação do homem do reino da necessidade. Ao ser levantado o véu teórico e ficar desnudada a realidade flagrante da degradação ambiental, apresentou-se uma fratura teórica e social de maiores consequências do que a revolução copernicana ante o poder teológico construído em torno do sistema ptolomaico.
No entanto, o paradigma econômico – o sistema científico e institucional – tem sido incapaz de assimilar a crítica apresentada pela lei da entropia e da racionalidade econômica. Em face das propostas de colocar um freio no crescimento e da transição a um economia de estado estacionário – fundados no reconhecimento das leis da termodinâmica que condenam o processo econômico e a degradação entrópica -, a teoria e as políticas econômicas procuram eludir o limite e acelerar o processo de crescimento, montando um dispositivo ideológico e uma estratégia de poder para capitalizar a natureza. Daí emergem o discurso neoliberal e a geopolítica do desenvolvimento sustentável, reafirmando o livre mercado como mecanismo mais clarividente e eficaz para ajustar os desequilíbrios ecológicos e as desigualdades sociais. Além dos obstáculos epistemológicos, das controvérsias em torno dos sentidos da sustentabilidade e do enfrentamento de interesses para ecologizar a economia e dissolver as “contradições” da racionalidade econômico-tecnológica – formal instrumental – dominante, várias questões estão no centro dessa polêmica, como, por exemplo, a eficácia das políticas ambientais para incorporar os valores da natureza, seja mediante instrumentos econômicos (subsídios, impostos e incentivos; contas verdes e indicadores de sustentabilidade) ou de normas ecológicas que estabeleçam as condições externas que deve assumir a economia de mercado. Nesse espectro de reformas da racionalidade econômica se situa o debate das possíveis soluções tecnológicas (tecnologias mais limpas, desmaterialização da produção), assim como o lugar dos valores e a moral dos indivíduos para corrigir os desvios do sistema econômico através de uma ética conservacionista e da “soberania dos consumidores”.
A crise ambiental colocou a descoberto a insustentabilidade ecológica da racionalidade econômica. Daí o propósito de internalizar as externalidades socioambientais do sistema econômico ou de submeter o processo econômico às leis ecossistêmicas nas quais se inscreve. Isso representa o problema da incomensurabilidade entre os sistemas econômicos e ecológicos, entre processos físicos, biológicos, termodinâmicos, culturais, populacionais, políticos e econômicos, que conformam diferentes ordens de materialidade, e a diferença das possíveis estratégias para compatibilizar políticas econômicas e ambientais e para transitar para um desenvolvimento sustentável. Três grandes vertentes foram apresentadas para enfrentar os desafios da sustentabilidade: a) a economia ambiental que procura incorporar as condições ambientais da sustentabilidade – os processos energéticos, ecológicos e culturais externos ao sistema econômico -, através de uma avaliação de custos e benefícios ambientais e sua tradução em valores econômicos e preços de mercado. b) a economia ecológica que estabelece o limite entrópico do processo econômico e a incomensurabilidade entre processos ecológicos e os mecanismos de valorização do mercado, procurando desenvolver um novo paradigma que integre processos econômicos, ecológicos, energéticos e populacionais. c) a possibilidade de pensar e construir uma nova racionalidade produtiva, fundada na articulação de processos ecológicos, tecnológicos e culturais que constituem um potencial ambiental de desenvolvimento sustentável.
Uma questão fundamental nesse debate se refere à possibilidade de globalizar e estender a racionalidade econômica para todas as comunidades e espaços de sociabilidade, que dizer, a capacidade de universalizar a razão econômica diante das limitações que lhe impõe a própria natureza dos sistemas vivos e dos ecossistemas (suas condições de conservação e regeneração), assim como os valores culturais de povos e comunidades que resistem a serem absorvidos pela lógica do mercado e reduzidos às razões do poder dominante. Se uma argumentação fundamentada e coerente, assim como a realidade evidente, mostram que nem a eficácia do mercado, nem a norma ecológica, nem uma moral conservacionista, nem uma solução tecnológica são capazes de reverter a degradação entrópica, a concentração de poder e a desigualdade social geradas pela racionalidade econômica, então é necessário apresentar a possibilidade de outra racionalidade, capaz de integrar os valores da diversidade cultural, os potenciais da natureza, a equidade e a democracia como valores que sustentam a convivência social e como princípios de uma nova racionalidade produtiva, em sintonia com os propósitos de sustentabilidade. Para isso é necessário elucidar os princípios que fundamentam os desafios apresentados pela construção de uma racionalidade ambiental.
(*) Enrique Leff é um economista mexicano, doutor em Economia do Desenvolvimento pela Sorbonne (1975), é professor de Ecologia Política e Políticas Ambientais na Pós-Graduação daUniversidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e, desde 1986, coordenador da Rede de Formação Ambiental para a América Latina e Caribe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Também é conhecido no Brasil como professor do Curso de Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná.
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