terça-feira, setembro 22, 2020

 Fechamento de livrarias

Lembro que comecei a ler aos 5 anos, e meus pais, com iniciativas de Odete, minha mãe, vez ou outra me presenteava um livro. Muitos deles ficaram pela longa história dos meus interesses pelos assuntos e estudos, locais de leitura como a casa de vovô Abigail, onde ainda recordo dos livros de Machado de Assis, e outros descansados por lugares esquecidos, mas colecionei grande parte deles guardando em caixas e acomodando-os nas várias estantes, deixadas ou levadas em mudanças feitas nesses sessenta anos, repositórios que tive para meus queridos e importantes livros, estantes adquiridas ou montadas artesanalmente por minhas mãos de pretenso marceneiro.
Lia todos os livros com curiosa atenção para encontrar o final da estória, a essência do romance, do saber armazenado e entendia que por mais tempo que tivesse para conhecer os mundos, os conteúdos organizados ou criados ali deixados, a alma das palavras e das coisas, as tecnologias, o imaterial, os personagens, seria uma aventura para a vida inteira.
Este relato de um assíduo leitor, que sempre fez o acompanhamento, a aquisição e leitura indo à locais sagrados para ver e pegar uma edição, olhar a capa e tocar as páginas de um outro novo livro impresso, é um registro de quem viveu e pode perceber um momento que fica a cada ano mais distante, caminhar o interior de uma grande e boa livraria. Nos anos 70, anos de estudos na Escola de Economia, folheava bons livros na Civilização Brasileira da Avenida 7, era a minha preferida. Visitava o primeiro andar para buscar e consultar livros que estavam fora de meu orçamento. Tomei a Civilização como exemplo de um tempo, passeava muito pela Cultura, e fiquei chocado com a diminuída dela dentro do Shopping Salvador. E hoje leio sobre o fechamento das livrarias Saraiva. Triste fim. Minha migração pelos sebos de Salvador se dava por horas, na época, e o Brandão era meu melhor canto de trocas, e fiz excelentes achados por lá. É uma longa história.
O fenômeno do fechamento das livrarias físicas está ocorrendo já faz algum tempo. Acredito que se dê por dois motivos, primeiro, por haver cada vez menos leitores, decorrente de, por um lado, da baixa qualidade da educação que não estimula os novos potenciais interessados na leitura. Por outro, a imensa disponibilidade de fontes de informação, papers, textos variados, livros, documentos, todos em formatos diferenciados e baixados gratuitos na internet.
Segundo, a transferência das antigas livrarias e editoras para o mundo virtual, com o surgimento do mercado através de sites e aplicativos que cada vez mais se faz aperfeiçoado e crescente, é um fato. Essa modalidade se firmou, como se viu com o boom do delivery de produtos e materiais impressos nesse infindável período de pandemia.
Nada contra a essa tendência, cabe o mercado editorial e de livros se adaptar, haverá espaço para os impressos sim, mas seletivo, embora não vendidos da mesma maneira que antes. O último livro que comprei foi o do escritor Mário Vargas Llosa, O Chamado da Tribo, pela Amazon.

quinta-feira, setembro 17, 2020

 O "Despiora" e o "desmelhora", desentenda!

Me parece que ao recorrer-se de discreto sarcasmo, de um disforme riso descarado do "passando o pano", poderia considerar o "despiorar" como verbo transitivo e intransitivo, "transitivo quando no sentido de impedir o melhoramento, intransitivo na acepção de tornar pior", e destes sentidos, mesmo não sendo usual, quase em desuso, mostrar a sua oportuna utilidade no que poderia ser um possível argumento para o "quando começar a desmelhorar" ser possível fazer mais para desacreditar na despiora do atual estado de coisas. O desespero do quanto desmelhor, a desorientação, impedir o melhoramento, despior!
Na real, por desconsiderar existir a boa fé do ativismo dos derrotados, percebendo a astúcia destilada dada a circunstância, do emprego descolado do verbo, posso entender como destrivial o emprego do "despiorar" e, ao desperder o gancho não desver o que "despiorar". Há no desafio do desejo de alguns em desmelhorar o momento, desver alguma desregrada razão para o apropriado uso da novilíngua, aqui, oportunamente bem definida na curta observação do Marco Frenette:
"Gente normal, melhora. Esquerdista, 'despiora'. As coisas são assim porque a canalhice não sobrevive sem a constante distorção da linguagem".
E disso tudo não desdigo, tem gente que quanto mais desvive, desmelhora! Aí está a "linguagem neutra" chegande.

 A “sinistrose” vermelha

Post em Facebook, 17/06/2019.

Li o livro do Padura bem antes do texto “Vermelhos” da Fernanda Torres ser escrito, e o que me abre os olhos é a certeza dela quanto a ter se servido de antídoto à sinistrose, após ter lido o “Homem que amava os cachorros”.
Ao que parece, o seu espanto de um retorno do que já julgava sepultado é uma afirmação abstrusa do mesmo não-pensar que a esquerda continua a querer empurrar numa narrativa descabida da volta de um “fascismo”, reinante ou possivelmente “eleito”, e o “enfraquecimento da arte como agente transformador”; como fechar os olhos ao que estamos vendo ser produto de mercado ao longo da última década e meia de governos, de esquerda, populistas? Ledo engano de uma leitora devoradora de tudo, no entanto, sem uma digestão saudável da boa literatura.
Não Fernandinha, Padura não conseguiu fazer-lhe criar empatia com o que a população e as pessoas que se esforçam para tirar o Brasil do que a turma do butim e autoritária com o pensamento único nos infringiu. Ainda falta muito para escaparmos da “sombra que pariu” tanto Ramon Mercader quanto Stálin, e porque não dizer Gramsci.


 A evolução da política e a perda dos instrumentos de expressão


Quando falamos da capacidade de pensar, formar o pensamento, organizar-se para a participação política, se trata mais que poder ver, sentir, de vivenciar e expressar com propriedade o sentido da vida que temos e tudo mais presente na nossa realidade, isso se perderia se nos faltasse os instrumentos expressivos e a liberdade de expressão. A dificuldade de acesso, o bloqueio ou cerceamento desses instrumentos nos tornam escravos da ideologia dominante, e é a essa a condição que o populismo, o autoritarismo, os ‘ismos da esquerda nos relegou, quando chegaram ao poder. E se pudessem nunca mais sairiam de lá.

Durante décadas a possibilidade de manifestação de opinião e utilização de instrumentos de expressão diverso da visão do pensamento único da esquerda tornou-se complicado, praticamente impossível, e para uma grande parte da sociedade ainda não-organizada, à direita, foi bastante significativo essa condição,no que se refere a difícil construção do contraponto, a expressão que não se fazia, e a hipocrisia dos iluminados sustentando a inexistência de autocrítica e crítica aos crimes e erros do governo populista, principalmente pela casta acadêmica nas universidades, pelos pelegos nos sindicatos e Centrais, pelos silenciosos aliados presos pelas boquinhas pagas pelo erário público, nem um canal de oposição organizada visível apontava nessa maré de cooptação desenvolvida pelo petismo. definitivamente, ninguém fez frente a censura do politicamente correto, a restrição ideológica dos guetos culturais e o evidente temor no ambiente de trabalho ou acadêmico que servia, qual a coragem de ser abertamente contra a orientação seletiva que a esquerda buscou imprimir com o aparelhamento das instituições, na educação, na cultura, na mídia e na prática política ao utilizar sua capilaridade da militância aprimorando o conhecimento do poder criminoso da arma da corrupção, e isso se deu durante todo o longo período de quase 16 anos do governo petista até o impeachment da Dilma em 2016, o que nos deixou o legado da maior crise econômica e política que o país já vivenciou desde a Constituição de 1988.

O fato é que nos encontramos diante de uma magnífica reflexão, da importância dos instrumentos de expressão, que é intrínseca a relevante presença de uma política de educação efetiva como base da verdadeira cidadania, do debate público sobre opiniões diferentes e conflitantes, a necessidade do resgate da ética na política. O debate democrático das ideias e a existência de instrumentos de expressão que estimule e propicie o confronto de pensamentos livres, fundamentados, reveladores da discussão essencial dos vários interesses da sociedade, de novas proposições e soluções decorrentes do convívio democrático na diversidade, e que se apresentem transparentes ao público, sinceros, conscientes, sem se perder na desorientação e cegueira que levou ao recurso limitado do emprego de estereótipos para definir, ofender, julgar os adversários, intelectuais medíocres, rasos de cultura diversa, condenados pela inexistência de instrumentos expressivos, pelo cerceamento do contraditório, o pensamento “politicamente correto” privando os opositores, tantos são ou fatores negativos que não contribui com a crescente influência das experiências individuais e de grupos independentes crescentes, o que foi facilitado pela expansão das redes sociais contribuindo no complexo processo de amadurecimento e evolução política do Estado democrático.

 Os isentos e os moderados


A redundância, termo intrínseco da autocorreção sistêmica, passou a fazer parte do mundo tensional do querer que parece ausente e crítico dos isentos e dos moderados. Alarmante na sua pequenez, porém ferino com ambos os pólos da manifestação de expressão, por um lado, o da militância ostensiva do esquerdismo, por outro da desorientada mas pequena parcela da direita, diferente da sua maioria que começa a pensar alternativas de participação e se organizar, todos aderentes à grupos nas redes sociais de uma nova política por conflitos de interesses com a prática corrupta debutante do governo petista.


A redundância ressoa no mantra dos moderados e dos isentos, alguns intelectuais de boa cepa, inteligência oriunda de educação qualificada e vida pessoal com experiência na militância na esquerda e outros vindos de uma miscelânea de fragmentos de grupos de democratas desiludidos, mas... em desencanto, com uma condição de preservar as suas trincheira de opiniões que aparentemente nutrem substrato político de uma compreensão deslocada, empoeirada por uma educação especializada fora da realidade, que os faz sentir capacitados nas suas avaliações e julgamento, certamente não por ser superior, porém acham-se suspensos, acima do bem e do mal, numa nuvem intocável de expertise de amargura portadora de uma cosmovisão da verdade, confortável, permanecendo e garantindo-se como observadores com pretensão a participantes. São assim vistos por suas trajetórias históricas de atores que antes ativos em processos que lhes credenciaram posicionamentos, confrontos e influência importantes, que por experiência própria tiveram expectativas, dores e alegrias de conquistas e fracassos semelhantes a muitos que apanharam em todo o processo de democratização marcas da história, na esteira oscilante das mudanças de rumo, ideológico e político, das bases da democracia no último século. 


Que seja. Tanto por isso se debatem entre dois pontos, coexistem na polarização, não só se confrontam com o “ódio do bem”, mas também com o “ódio do mal”, percebem o estado isolado de seu esforço, do simulacro, negando, entretanto, o que fica cada vez mais evidente é que tornaram-se o “terceiro pino”. São postantes invariavelmente cínicos diante da realidade, dramáticos na afirmação de suas certezas, criando situações de conflito aberto sem a menor dúvida que arranjam, criam, um novo movimento, que reforça o movimento do reacionário ao definir e estabelecer bloqueios de e para pensamentos, leitores, escritores e simpatizantes.


A guerra contra o "mecanismo" é ainda maior, é política e cultural.


Porque o "mecanismo" resiste? Porque errou na sua percepção e análise da estrutura da experiência da vida do brasileiro, foi parcialmente derrotado durante a campanha eleitoral de 2018 e continua patinando no problema de uma leitura histórica tosca, anacrônica, sem obter (suas) respostas. Arrastam-se numa crise interna cometendo absurdos que chega ao caricato da hipocrisia,  dissonância cognitiva, da burrice seletiva pelo autoritarismo, atavismo ideológico, que parece reforçado durante essa pandemia. Insistem no erro de avaliação e na prática de seu plano, se é que existe algum, ao querer criar um "terceiro turno" orquestrado em narrativas geradoras de golpe, sem exército ou apoio popular, na gana de retirar, impedir, um presidente eleito democraticamente por 57 milhões de brasileiros.


O "mecanismo" é o que considero a reunião de todos que atuam e buscam a manutenção da política de coalização, da convivência com a corrupção, do aparelhamento partidário das instituições, do Estado protetor e dominado por um estamento burocrático composto de uma casta de privilegiados, funcionários públicos regiamente remunerados, gestores políticos agarrados aos costumes da "boquinha", da capilar propina, do fisiologismo e do nepotismo. Esses soberbos da impunidade, viventes com o aval e suporte de prestigiada banda intelectual de certa matiz ideológica (universidades e imprensa), artistas aquinhoados pelos afagos do capital progressista, uma elite forjada nessa orquestração irresponsável, inescrupulosa, manipuladora de direitos fundamentais e princípios constitucionais. 


Esses parasitas de benesses que privilegiam os seus iguais numa simbiose de usos e costumes caóticos, errática, suicida, que perderam muito, já não garantem aos seus apadrinhados, apoiadores, as fontes e o enriquecimento espúrio à custa do cidadão, dos que trabalham e pagam impostos. Esses parasitas, uma elite sem ética, de propósitos egoístas, se encontraram fora da realidade. Caiu-lhe da boca o fruto de um grande esquema predador e de exploração por desvios da função primordial do dinheiro público: atender as necessidades, a segurança e liberdade da população.


 Esse era e ainda é o mecanismo do golpe, uma onerosa organização criminosa, protegida por uma casta de corruptos, uma gangue de resistentes à democracia, uma panelinha de ativistas do judiciário e os epífitas do legislativo, parasitas fixos a ação  predatória em todos os níveis das instituições por décadas.


 Meu meteoro


Uma tarde quente se estendia na rua de terra até o mar. A brisa soprava o cheiro das ondas e o salitre, criando as coisas num dia ensolarado, barrufando toda a localidade com o bocejo morno de Deus. Grão a grão ia se deslocando as brancas dunas, a areia fina assobiava sob os pés do menino que pulava nas poças de chuva da Aminadab Valente. Horácio, ainda um menino que usava calça curta, calção, ficava sentado imóvel, o corpo em estado de paralelepípedo, solitário, com a mente solta em aventuras na Terra do Nunca, bem ali na soleira do portão da casa de praia da sua avó Abigail.

Horácio mirava sereno, impressionado, com o Alto, comunidade humilde em suas dimensões humanas e materiais; imaginava às vezes penetrando àquelas ruelas medievais, sustentando-se em suas pinguelas instáveis, passagens apertadas completadas por degraus de troncos, tábuas sem pregos, barracos construídos de galhos secos e barro, frágeis construções de pau-a-pique cobertas com palha, folhas de zinco, poucas com telhas, com serviço público de energia e nenhum saneamento básico. 


O menino observava de longe a passagem das lavadeiras, o prêmio das marés sendo carregado em puçás pelos pescadores e marisqueiras, e sabia com uma visão de estudioso dos girinos escondidos na água escura da grande lagoa, de aroma forte, salobra, que em dada estação cobria-se das jibóias bem verdes, de brilho oleoso, matéria que preenchia metade daquela infindável cuia negra, rica de mistérios e seres, sombras flutuantes, profundamente misteriosa.

A sua curiosidade era atiçada pelas formas adotadas nos fifós de lata, as tintas em cores generosas e nas ranhuras bordadas nos porrões fundos e de bojo largo, o odor levantado no vapor do ferro de passar a carvão esticando as linhas das calças engomadas do militar, o seu pai, e as camisas de punhos fechados que não usavam abotoaduras douradas. Ele via anjos buliçosos nos lençóis de algodão brancos de cegar ao sol, longos espelhos estalando de tão secos, alvos do anil, bandeando nos varais de arames pensos e esticados. Como de costume gostava de ficar observando a vida das gentes de lá, da vida do Alto, dos que apanhavam água em latas carregadas sobre rodilhas de cabeça, geralmente mulheres, admirando tudo que se movia como a um quadro vivo naturalmente pintado que despertava toda arte e ciência precoces. Um conjunto de casebres e tantas palafitas levantados sobre um elevado morro próximo da margem da grande Lagoa que despertava nele uma atitude rara para sua idade, se comparada a sua motivação de conhecer as coisas de outra realidade, a do Alto, com a energia de seus irmãos e colegas entretidos nas brincadeiras de rua, que gritavam por ele convidando para completar o grupo da amarelinha, do esconde-esconde, garrafão, jogos de bola de gude que iam até a hora do pôr do sol quando eram gritados para o banho.

Foi numa dessas tarde, de repente, como se apontado por alguém ou chamando de longe, ele suspendeu seus olhos para o céu, e viu claramente num rápido compasso, um meteoro, uma luz de  surpresa, não foi uma coisa que o assustasse, apenas viu um diamante riscando o céu duro, azulado, sem nuvens sobre sua cabeça, e que correu de um lado a outro, firme, desenhando um rastro de fogo frio encantado, levando sua cauda esticada continuando num trajeto sem fim até se perder de vista entrando no horizonte aberto, largo do Alto, indo tão longe quanto as pernas da imaginação de Horácio também queria ir, mas ainda não alcançava. Uma imagem gravada em sua simples cabeça de jovem navegante, uma rocha em chamas se movimentando, havia começado a marcar seu caminho para outro mundo.

Para o menino de calça curta, de pernas incansáveis, aquilo representou um acontecimento de um significado especial, um breve sinal, um vínculo estabelecido entre ele, o meteoro, e aquelas pessoas do outro mundo do Alto. E desse dia em diante, todas as sensações vindas do entardecer viriam com o brilho do seu meteoro e jamais se desmancharia. Ainda surgem latentes, radioativas, revitalizando suas memórias.

 O que a realidade tem da verdade e muitos querem negar


A leitura dos verdadeiros filósofos tem sido uma tarefa muito recompensadora, não apenas para completar meus estudos sobre os fundamentos da ciência econômica, em sua evolução, mas por ter a confiança de ser a referência essencial do pensador, daquele que busca sabedoria e o caminho da verdade. Os filósofos acadêmicos, os teóricos da área das ciências sociais tem se debatido no ativismo sem refletir sobre os fatos, prestar atenção nas condições objetivas inerentes às mudanças ocorridas no mundo real desde a segunda metade do século passado e nesses vinte anos do século XXI.


O momento traz uma questão primordial para o entendimento da efetividade da vida em sua profundidade filosófica, que não é simplesmente conhecer o sistema, obra, esquema ou diagrama da realidade, mas é o conhecimento da alma humana, da que está na estrutura da experiência do mundo real, da verdade de uma realidade, e que poucos parecem se dar conta. A guerra ideológica está sendo carregada à qualquer parte, através do "marxismo cultural", do mundo, e está sendo desenvolvida, injetada na cabeça da jovem manada para seja maior que ontem, e a distorção da realidade para dar suporte a essa onda desesperada cresce por indução e impulso, se necessário no grito, pela violência, em todos os planos, mantida pela impunidade, e passa livremente com suas narrativas de folhetim de rodoviária calçado numa paralax cognitiva embalada na propaganda de uma imprensa marrom, pronta para inibir as opiniões, as críticas e as manifestações contrárias dos que apenas pareçam ser diferente das ações e pensamento que eles defendem e querem impor à todos.


A verdade que nos chega está na realidade vivenciada, percebida, experimentada e obedecida, sem mais nem menos, e que independe da opinião e mesmo da falta de substrato da percepção do observador, da sua capacidade e base de formação do  pensamento, nem se resume na tentativa de criação de outra realidade, da construção de fatos ou em sua negação, não está na superficial sustentação de pós-verdade ou da força dos que são incapazes do entendimento e aceitação do contraditório, da verdade, essa existente na unidade do real, da simples percepção. Esses, os desprovidos do benefício dúvida, alheios à lei do retorno, marginais da verdade transparente, negam a função seminal do pensamento, recusam a própria consciência humana que luta contra a complexidade dos dados do mundo que os cerca buscando pela reflexão pegar o fio da meada da verdadeira realidade.


 (A propósito dos dois risos)


6


“Eu também dancei em roda. Isso foi em 1948; os comunistas acabavam de triunfar em meu país, os ministros socialistas e democrata-cristãos tinham se refugiado no estrangeiro, e eu segurava pela mão ou pelos ombros outros estudantes comunistas; nós dávamos dois passos no lugar, um para frente e levantamos a perna direita de um lado, depois a esquerda do outro, e fazíamos isso quase todos os meses, porque tínhamos sempre alguma coisa para celebrar, um aniversário ou no acontecimento qualquer; as velhas injustiças foram reparadas, novas injustiças foram cometidas, as fábricas foram nacionalizadas, milhares de pessoas foram presas, os tratamentos médicos eram gratuitos, os donos de tabacaria tiveram seus negócios confiscados, os velhos operários iam pela primeira vez passar as férias nas casas de campo desapropriadas e nós tínhamos no rosto o sorriso da felicidade. Depois, um dia, eu disse algo que não devia dizer; fui expulso do partido e tive de sair da roda.

Foi então que compreendi a significação mágica do círculo. Quando nos afastamos da fila, ainda podemos voltar a ela. A fila é uma formação aberta. Mas o círculo torna a se fechar e nós o deixamos sem retorno. Não é por acaso que os planetas se movem em círculo e que pedra que se desprende de um deles afasta-se inexoravelmente levada pela força centrífuga. Semelhante a um meteorito arrancado de um planeta, eu saí do círculo e, até hoje, não parei de cair. Existem pessoas a quem é dado morrer no turbilhão e existem outras que se arrebentam no fim da queda. E estes outros (entre os quais estou) guardam sempre consigo uma tímida nostalgia da rota perdida, porque somos todos habitantes de um universo onde todas as coisas giram em círculo.” (KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. Círculo do Livro, 1978).


 Desconhecer a história ou ignorá-la é repetir os piores erros

Passamos mais de dois séculos com uma convicção sobre a “verdade” e a “ética” do propósito finalístico e teleológico do “compromisso classista”, e o que ficou claro dessa experiência foi o desastre humano magnífico, que isso, essa certeza de princípios e virtudes causaram, não apenas na vida de centenas de pensadores e milhares de militantes embebidos da ideologia da gloriosa revolução libertadora dos homens, do mundo, que parecia inevitável sob a liderança do proletariado com a instauração da sua ditadura, e que de maneira hedionda, foram levadas a cabo com o sacrifício de milhões de seres inocentes.
Hoje se pode confirmar que é mesmo ilimitada a “capacidade do homem para negar contradições flagrantes por meio de racionalizações, desde que lhe convenha, e dificilmente poderia ser melhor demonstrada” quando observamos que no caminho da busca da “emancipação e libertação dos grilhões do determinismo econômico, sua reintegração como ser humano, sua aptidão para encontrar a unidade e harmonia com seus semelhantes e com a natureza” o que nos livraria da pré história da humanidade, isso tudo que se diz do capitalismo; na realidade representa uma ideologia que orquestrou exatamente eliminar a integridade do indivíduo e a liberdade, experiência de milhões de homens, mulheres e crianças, que foram eliminados nos genocídios sustentados por uma elite de políticos e lideranças da esquerda, intelectuais, acadêmicos, empresários e artistas, na eliminação oficial de seus dissidentes e opositores.
Os rótulos fascistas, nazistas, comunistas, socialistas, podem ser considerados parte de uma coleção de estados em trânsito, de exceção, e referências ideológicas; populistas, fascistas, nazistas, "reacionários" por definição de "direita" (que não é apenas um conceito), “revolucionários” de esquerda (que não é apenas uma práxis), todos, indistintamente defensores de regimes, governos autoritários, modelos totalitários, indiferentes às necessidades reais e históricas, condições objetivas definidoras do padrão civilizacional do bem-estar obtido por sociedades que historicamente e de fato, conquistaram para grande parcela de sua população. São sociedades que se estruturaram, foram organizadas econômica, social e politicamente em democracias, com relações sociais garantidoras da liberdade individual e direitos fundamentais explícitos em leis e costumes ao longo dos dois últimos séculos.

 A fraqueza do mau-caráter 

Compreender essa pandemia me parece apropriado andar com o olhar ampliado, para poder enxergar os planos que compõem o quadro geral em suas várias dimensões, tanto pelo lado da saúde, como do seu impacto social e político que se confundem no momento atual com um processo grotesco de choques de intenções, pressões particulares da fria oposição, representada por rapinas burocratas, uma casta judiciária e por um punhado de parlamentares, corruptos com título de impunidade e alcunha, distanciados dos anseios da população agarrados ao galho do Centrão, e ao que resta da coluna do modus operando da política do "toma-lá-dá-cá", moeda de troca, fraturado pela Lava Jato.  


O olho torto intelectual de buteco, o que só revela uma dialética negativa de alma putchista, de pavões intelectuais sem perspectiva de bom propósito para o país, esvoaçantes corvos aliados a parasitas empoleirados em instituições, uma grande mídia extrema e obtusa, infelizes artistas, não-pensantes militantes de inegável referência, bastiões tardios do chato bate panelas, deambulam, incansáveis pés esquerdos do anacronismo, dia a dia numa batalha de caolhos recheada de fake News e narrativas cegas pelo caos da governabilidade e tomada do poder por quem seja do seu agrado. Ignorando e, degenerando a Constituição, levantando como ordem do dia o autoritarismo falsamente combatido pela hipocrisia de democratas.


 Visto isso, me parece apropriado lançar uma ideia que vem, digo pesquei, ao lembrar de um filme que assisti sobre uma pandemia na qual a humanidade se perde, no sentido da sua essência, e disso ocorre uma grande tragédia dizimando a maior parcela de vidas humanas em todos os continentes. 


Pensar que o sentimento de preservação é o primeiro que se apresenta em circunstâncias como a que vivemos, parece ser o óbvio com o começo da busca de ajuda mútua e  convivência racional, porém o mal existe em resistência, através de interesses com discrepâncias de percepção do real e viez ideológicos presente em um cenário que prospera o bizarro, com perdas, dor e com um temor que reduz a esperança, onde se manifestam vozes de histeria, conspiração, ódio e falsa indignação, muitas delas vindo apenas expor os seus representantes em suas verdadeiras aspirações e delírios de podres poderes aflorando autoritarismos.


E às vezes, o que achamos ser o seu aspecto mais brutal, nada mais é que sua vulnerabilidade se mostrando. É que adoram disfarçar fraqueza em força. É muito mau-caráter.


quarta-feira, setembro 16, 2020

Essa, a nossa esquerda!


O plano da oposição: Negar invalidando os seus crimes, impedir a liberdade de expressão calando os outros e tomar o poder mesmo sem eleições


O preconceito positivista marca a pretensão da esquerda em ignorar as evidências de crimes na sua ação política. No Brasil é evidente os erros inerentes à militância partidária numa patente hipocrisia é teimar em considerar uma heresia a observação da relação direta entre crime e política, ideologia e militância, empregando um esforço na negação desse vínculo histórico. 


Podemos constatar como exemplo desse viés a presença do ativismo judicial nas decisões do STF. Também existente no ódio do bem destilado, até publicamente, sem temer represálias, e tantas vezes revelado nos discursos dos famosos da classe artística e de jornalistas da extrema imprensa, visto no claro ranço oposicionista de âncoras da grande mídia, na fala polarizada de intelectuais progressistas, no velho vício da nova esquerda engasgada por jargões da resistência nas redes sociais, e no falso perfume democrático dos coronéis políticos regionais, nas personalidades charmosas e limpinhas da filosofia acadêmica, e nos cardeais do estamento burocrático, aventureiros políticos de alma empoeirada de populismo e autoritarismo copiados por novas raposas do pretensamente novo da nova esquerda. 


O que acontece nos bastidores do poder não é mais nenhum segredo. Tardou e custou desmascarar um "cavalo de tróia", Moro herói de todos, chamado para um cargo relevante no staff, desmoronou, ao retirar a máscara, posou de não alinhado ao programa de governo e bateu contra os fatos comprovaram reforçar os vazamentos de informação e as tramas dos infiltrados nas instituições da justiça e polícia federal.


Na raiz dos grandes problemas que o governo enfrenta, desde a sua posse, está a canalhada do Centrão, a faceta cínica articulada do Botafogo Maia, crápula que tenta incorporar o primeiro-ministro, aliado a farta arrogância do Batoré Alcolumbre, ervas daninhas do mecanismo parlamentar azeitado de aparente boas intenções, agindo  como triturador e como resistência na aprovação dos projetos do Executivo. 


Aliados da pandemia, apoiadores do governo e vírus chinês, aderem à desafinada banda de isentos, democratas de auditório que juntos maquinam golpes de todo tipo, sem trégua, munidos de instrumentos de uma nota só, de quanto pior, melhor, com o aval do ativismo judicial e o berro insuflador do presidiário de nove dedos. Uma resistência irritada que persiste em canibalizar todas as iniciativas voltadas para o bem do país com um único objetivo: tomar o poder. 


Um coral de soneto fúnebre tenta evitar a reeleição do seu maior inimigo, Bolsonaro, representante de uma perspectiva de governo diferente daquela dos que quebraram o país, culturalmente, com a monopolização do pensamento, politicamente, nos aspectos moral e ético, e na destruição da economia.


A crise é organizada tendo o caos como meta, assim praticados no dia a dia, e os que continuam fazendo parte dessa orquestração só buscam provocar situações críticas por meio de falsas narrativas, pregando fake news, mas invertendo papéis ao acusar ou outros de suas ações, para fazermos acreditar estarem ajudando o Brasil em defesa da democracia. 


Fazem com isso, mais que impedir alguma solução e o que for do interesse da população gerando potenciais instabilidades institucionais e o descalabro para o futuro do país. As vantagens que auferem chega através dos prejuízos impostos em impedir o governo de governar, tudo que os urubus querem é se manter se revezando no parlamento e ocupando posições de poder que assegurem sua impunidade.


Quem são os verdadeiros criminosos? São os que ao judicializar a política imputam ilegalidades aos que os criticam, ativistas que negam as prerrogativas do poder executivo e cobram no presente todas as soluções de erros do passado, conspiram  com mãos contaminadas pela "negociação" do toma-lá-dá-cá, pelo aparelhamento por loteamento de cargos, tudo sem qualquer contrapartida nem responsabilidade fiscal, comprometendo o orçamento público e sendo indiferente às recorrentes necessidades da população. Agindo supostamente na forma da lei investem segundo interesses próprios e paroquiais usando da falsa honestidade sabidamente corrupta e eleitoreira. 


O ex-ministro Sérgio Moro ainda que negando-se um "carbonário" foi contraditório na sua saída do governo, dando forma seletiva a sua surpreendente e planejada delação, ignorando a existência de interferência política na Polícia Federal por governos petistas e apontando inexistentes do atual, presumindo e expondo motivos alheios à exigida imparcialidade da liturgia. Preferiu esquecer que fez vista grossa aos pedidos do Presidente referente às ações autoritárias de governadores e prefeitos oportunistas no clima da Pandemia, sobre informações do andamento do caso Adélio, deixando na hora da sua despedida perigosas críticas que só reforçaram o desatino ao criar instabilidades para o governo, dando asas à imaginação do ouvinte popular. 


Para a maioria atenta da sociedade organizada e das redes sociais não passou de uma atitude pensada voltada para a construção de futuros arranjos políticos, ainda nebulosos, com uso de jogo de palavras e fundamentos vagos com propósito de macular as ações do presidente e entregar munição para a organização criminosa, em uma condenação inegável da ideologia inerente às decisões do governo federal, de natureza política, e do projeto do seu superior hierárquico transformado-o em objeto oponente. 


As acusações apresentadas são falsas e mostram algo acima da superfície, que indo um pouco mais fundo logo são desacreditadas em sua origem, porém até consideradas possíveis em sua materialidade devido a forte influência  ideológica de seus militantes, o que desorienta e corrompe a tudo e a todos que toca em sua tenaz busca por sua volta ao poder.


A democracia é um regime de poder frágil, pendular, se relaxar, nos é roubada.


Os interessados assumidamente liberais e democratas deveriam se prender menos aos rastilhos inconsequentes de excessos dos radicais, tanto da direita como da esquerda, os fanáticos, os odiosos reacionários, esses cuspidores de cultura abstrusa, de ironia rasa, toscos no manejo da palavra crítica, os impulsivos na ação atabalhoada, raivosos de pensamento, os que ignoram os anseios da população, eles temerão o povo, e se desgastarão na presunção que os levará ao limbo no longo percurso da prova de capacidade, onde se exige resiliência na rota  imprevisível da política, essas virtudes exigidas pela dinâmica pendular da democracia como regime de governo, eles vão pesar e cair. Esses acabarão esquecidos na vala de egos da história. 


 Os verdadeiros interessados na transformação do país para sair dessa fase  infinda de crise, devem ater-se ao necessário e urgente, às mudanças ansiadas, recorrentes, prioridades de sempre, a pauta essencial, o debate possível e inteligente, objetivo do democrático, elevado nos pilares republicanos, debate sobre propostas viáveis, projetos e políticas efetivas de Estado.


 Investimentos em uma agenda de longo prazo, ou seja, a antiga e ao mesmo tempo nova, alternativa à rançosa percepção da resistência da esquerda, que por incapacidade e dissonância cognitiva, procura antecipar catástrofes, não encontra bússola ou o bom senso em nada, e nunca encontrará, pois não se colocam em termos reais, nem possibilidades de respostas ou solução.


Quando chegamos ao ponto de saber o real valor da vida, nos conhecer como somos e estamos, é que descobrimos que o mundo não muda facilmente. Então, é ainda mais complexo, assim, quando muitos que ainda desejam uma mudança, tomam iniciativa, mesmo no vazio, fazem algo decisivo com esse objetivo, enquanto outros, resistem à ela, utilizando-se de armadilhas, traições e falsos pensamentos. Enquanto não se consegue chegar a essa estação de partida para um futuro melhor, nada acontecerá fora do aparente.


 Além de mim


Então não é palavra fácil,

uma construção finita, espiral mental da complexidade, duvidosa, não fala de filosofia, arma midiática, nada de inspiração.

É sobra de um roteiro esquisito, um filme comercial sem cor.


É algo de fazer as coisas, de mover-se com muita gente, põe-se a girar nas cordas, seus sinais cardeais, sem sentido nos versos, retorce os nervos de metal e amor líquido.


Por nada, afasta-se ao mesmo lugar, faz a sua mesma viagem diferente, na memória celular.


Pote de barro, presa e demônio, o mancar tristonho, o achar graça na goteira, a existência da guerra cínica, o ir sem fim da roldana, a praga biológica, o acima e o abaixo dos princípios, o frio seco do subordinado, o ar condicionado das secretarias, o buraco negro na economia.


Uma medida é feita na sombra, o saber sob o assoalho em um mundo assustado.


Podem bater na porta, comer pela borda, respirar fundo por um tubo, até o que não se espera chegar gorado, e quando acordar o canto dos inocentes, a raspa da trama, a mudança na regra no meio do jogo, usar a régua da sociedade do risco, a chama das iniquidades, a beira da impunidade, o tosco no imundo da política.


Quero que seja infernal na cama, o sentar à mesa da alma imoral, e ir ao sol de espirrar e as línguas de veneno. Vou subir até o manto do céu bordado por cometas.


Por notar a corrida do tempo em sua confusa espiral, o espaço espinhoso do ninho familiar se abrir, as marcas da pele, o salto da pulga prenha noiva, o trigo sem as abelhas, o orgulho caído dos novos, o que flutua do naufragar.


Vêem as folhas mortas, as luvas de nuvens, e as cores das escolas com marcas de chumbo e sangue.


Esses demônios tramam contra o novo, levam foices e martelos, tomam a forma do bem mas continuam distante do povo, sobem ricos nos altos muros, tem as armas que nunca enferrujam, crivam a esperança no centro do  corpo dos outros.


Loucos, derramam o magma na carta, a que nunca assinaram, tantos são vazios de risos, instigam as agonias, desprezam coisas da sabedoria, ignoram o choro na alegria. Infectam-se da cólera.


Essa minúscula gente, adicta e elevadas na crítica, reclamam uma revolução infinda e invadem o planalto travestidos de togas. 


Vagam nos labirintos das teorias, bebem nas taças dos golpes, empunham peças de pano tingidas de vermelho e se enrolam em velas flocadas com seus lábios acesos. No gritar da derrota vão visitar o santo emoldurado com hálito de hiena sarnenta.


Querem a dura hora da ditadura, o queimar do óleo do pneu no asfalto, contam os entes no supremo, no projeto de ego, arrotam empinando o nariz orientado para o abismo dos asnos.


O impulso dialético é negativo, a emoção que choca no real, a gravidade no prumo incerto, uma  navegação por estrelas mortas, na escuridão do pensamento deserto.


É imprevisível o que transita na paisagem desse caos, páginas de ilegíveis letras, mil 

cabeças completas de instintos imaturos, sem civilização, uma imaginação jogada pela janela.


Parecem clarinetes quando gritam, repuxam o branco da pele até a noite, frequentam a igreja usando máscaras rachadas, com a sujeira nas unhas trazida de navios, e fica estendida nas praias. Foro de crimes, antro de corruptos, instituto plantado na cidade, jogo baixo, carregam o pesadelo de um século.


Testam criar conceitos, engenharia que quebra arestas de pensamentos, infantaria que avança com seus corpos de inseto, pisando sobre coberturas de acácias.


Espero ler mais livros, ter soluços da vida ao  escrever, fazer um café fresco, beber na caneca que deixo sobre a mesa, deixar na ponta do grafite a tese, ficar leve, ser índio, flexível como bolhas de sabão no banho sem pressa. 


De manhã bate uma esperança, de estar no banco da praça, ter quinze minutos do pôr do sol, esperar o retorno de quem se ama.

Com o espírito que levanta ao paraíso acima da terra. Tem a mira certa na ponta da flecha.


Nela, gestos acompanham o conhecimento. Tem isso tudo, tem começos, os meio e tantos fins. O saber fazer da roda d'água, o freio ruim, o cheiro do pão de centeio, a força da palma da mão, o ir ladeira abaixo sem freio.


 The Gift


Consegue ouvir a voz da Terra?


A Terra tem sua própria memória, um idioma específico. E se você fala esse idioma, ele tem muito a lhe dizer.


A eternidade, não é ter tempo infinito, significa atemporalidade. Nem se fixar no passado, nem se afligir com o futuro, mas viver no presente, isso é eternidade.


 Do inesperado ponto cego (retalhos da ausência de sentido)


Recuso a agonia de achar defeito em tudo e julgar em um ato, de chofre, o que vejo ou leio. Nas atitudes alheias não ignoro observar que ainda há verdade para acreditar. Parte de mim acha graça, outra parte enxerga a armadilha. Em última instância, perceber que se aquecer no amor é não adoecer, independente do tempo de convivência com a companhia.


Tentei e saí da ilha frágil, viajando nos livros, não levando dicas de ideias com sinais trocados, sublinhando frases com grafite e caneta que nunca pode ser de uma cor, navegar nas palavras-chave, ascender nas experiências como pintor de muitas pontes ainda não construídas, em pura ousadia. 


Passaram-se mais de vinte e cinco anos.


Antever o que iria acontecer na vida, até que visse o ontem, sentir que os desejos aparecem num trilho e irem da maneira simples mais adiante. Entender o porquê de nossas contas no vermelho serem peças contínuas de um quebra-cabeças, o risco infernal que sobe e desce, as rugas que se mostram no espelho, o sonho deixado ao lado como querendo ser o mesmo, e perder o prumo no desequilíbrio sem os instrumentos necessários para se manter no jogo. Nossos desorganizados desejos que a realidade não corresponde, assim eles beiram as tentações irresistíveis que mais nos traem, inconsequentes, repetitivos, doze mil vezes ao ano.


Como responder ao senão, às queixas e os inadiáveis compromissos, às vezes indesejados, porque capazes ou não, invadem… como pesadelos, nos mudam. Indistintamente à nossa  origem, o sorriso quer ser aberto, latente, o sofrimento recorrente, pesam os esqueletos varridos para baixo do tapete, e a hipocrisia dos que são íntimos quando ouvem o som unânime abaixo do assoalho das redes.

Continente de vícios, epidemia de gêneros com suas paixões virtuais, midiáticos, pautam inexistências que desarmam seus corpos, fodem o social, querem ser eternos, dementes que dançam e seguem um líder imaginário, intocável em seu descanso cósmico que  gargalha dos embaraços de dependentes, dos que recebem benefícios, condescendente aos anseios do investidor, a indiferença da troca, o consumismo inútil e predador, dos que rezam as dores e seus paliativos em doses de alegria e tristeza, crenças, que plantam terapias infinitas, com pílulas douradas, em pó e placebos.


No significado da vida vem o susto do aloprado, os resultados ingratos, a irritação do devir, as revoltas sazonais, a retomada insustentável dos bons de espírito, tudo vai respirar no pífio sucesso, escrever textos rejeitados, na demora do mel gotejado do paraíso. E gasta-se o oxigênio em ser revelado o prêmio da sorte, o inesperado bilhete, os que fogem da iluminação,  os bichos da meia-noite.

Abrem-se as escolas do naufrágio. A política sai do meio para ser estreita por outros fins e o estado fenece, no negócio transnacional, remete ao papel do financista, do plano em teste fracassado. Querem esquecer o fôlego do pensamento, o ciclo acabado, o inevitável reverso do pêndulo histórico, revendo os movimentos tardios do liberal, o escrito e não lido do capital, a prática do mercado líquido, o reino do lucro obtuso, a gana a qualquer custo, concentrados, seguir na resistência do que não é perfeito, o mal do passado tornando-se forçosamente prolongado.

Considerando os problemas daqueles projetos malfadados, do enganoso contrato, as falsas narrativas de todos os dias, as perplexidades e perpétuas contradições que espreguiçam, a gastança que mata a periferia, a esperança tardia dos filhos desenhada a giz, como fractais de vidro jogados ao vento, com prazo de validade nanicos e dedos sedentos de abuso.


 Querem chegar ao futuro recorrendo a um mal menor, escondidos na complexa representação democrática, na contagem de uma maioria, a metade mais um de garantia, sem perdão aos demais que sobraram na disputa infernal. A democracia custa caro, mais ainda ao populista, mesmo saindo como o melhor de todos os modelos na pós modernidade.


O que se faz no século presente é desacreditar de tudo, tudo que foi criado na idade iluminista, 

a consciência fechou os olhos, envelhecemos feito móveis de antiquário, pensando sem entender a questão, olhando o ponto cego da razão.


Nunca entrar no sagrado, separado no espaço da imensidão do trabalho a recriar valor, um valor vazio de humanidade.


E nesse momento fundamental da falta de princípios perde-se a noção do tempo e a sua dimensão sem qualquer finalidade, tentando dar sentido, procurando fabricar espaço para as coisas sem sentido, dar significado ao que não tem mais conserto nem merecer a força de um suspiro.


Sem orientação, perdidos no caminho, faltam a experiência de significado, ocupam sem qualquer compromisso de permanência, há movimentos totalitários e falha de identidade, sem saber fazer as perguntas vagam na ressaca da razão, e em sua mecânica canina vai mordendo o próprio rabo. Não descansam, semi técnicos, praticam no ranso sem parar, sem enxergar vagas estacionam nem refletir, afundam em retóricas, mentem caindo no buraco onde oculta a luz, restam na matéria e nos pensamentos dos maus.


Os maus por si se destroem.


É logo ali que os maus se encontram, nos extremos. Seus pensamentos são movidos em círculos até uma posição de confronto, acesos por uma lucidez infernal, alienados por uma interpretação que lhes chega ininterrupta e tóxica, negativa, e desperta o ódio na fala e com uma organização atabalhoada, torpe,  carregada das armas dos que já foram derrotados.


A última utopia pulou do lado esquerdo para o lado avesso ao direito, à lei, travestiu-se de hipocrisias, antes imaginários dos fins, perdidos nos meios, agora, reacionários que correm vendados sem modos, destilando impulsos insanos até o poço dos pesadelos autoritários. Querem de volta o trono, rastejam para encontrar-se sem paladar em um banquete de venenos.


A última utopia pula do lado esquerdo para o lado direito, corremos vendados, insanos, sem paladar em um banquete de venenos.


Uma resenha primorosa. Leitura imperdível.

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Nelson Rodrigues - Tempos de debates e inocência

por Mércio Gomes


O Óbvio Ululante contém 81 artigos escritos entre novembro de 1967 e agosto de 1968. Foi um período quentíssimo da sociedade brasileira e mundial, tempo da nova ˜Revolução Francesa”, em maio, tempo dos assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy, tempo dos protestos contra a Guerra do Vietnam, tempo de grandes debates dentro da esquerda mundial, tempo da visita de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ao Brasil, tempo enfim da Passeata dos 100.000 no Rio de Janeiro.


Aqui temos Nelson Rodrigues com a sua língua afiadíssima desafiando os dogmas das Esquerdas brasileiras - Stalin, Guerra do Vietnam, imperialismo norte-americano, marxismo, filosofia libertária, juventude, sim, o “complexo do jovem”, e a dominante (não tinha chegado ainda o termo hegemônico) participação aparentemente alienada da chamada Esquerda Festiva no cenário jornalístico e intelectual brasileiro.


Em certo momento Nelson Rodrigues se assume uma reacionário avant la lettre. Quer a volta do Brasil ao aconchego da vida suburbana carioca, dos dramas pessoais dos habitantes do Meier, Cascadura e Tijuca. Quer fugir do reboliço moderninho de Copacabana, então no seu auge de fascínio cultural. Quer a moral tradicional brasileira, ao invés das novas normas trazidas por uma ética pretensamente universal.


Quem já leu Nelson Rodrigues sabe que ele bate sempre no prego, nunca na ferradura. Isto é, não dá colher de chá, não contemporiza com quem é criticável para ele, nem mesmo com os amigos. É até espantoso que Nelson Rodrigues tenha o carinho e o cultivo da amizade pelo tanto que ele ironiza e esculhamba seus diletos amigos. Em O Óbvio Ululante, seus amigos mais citados são: o mineiro e psicanalista Hélio Pellegrino, por quem se desvela em carinhos e apreço/; Otto Lara Rezende, que, em certa crônica diz que é amigo dele, mas não sabe se ele o tem como amigo; Antonio Callado, o “doce radical”, o único inglês que jamais existiu, mesmo na Inglaterra; Cláudio Mello e Souza, que surge como uma espécie de sparring para discutir algum ponto interessante; e Abdias do Nascimento, o único negro brasileiro. Com todos eles Nelson se desvanece, mas também pega nos seus pontos aparentemente fracos e os descasca, sobretudo quando discute política. Desses amigos, exceto pelo Cláudio Mello e Souza e Walter Fontoura (este último se declara um reacionário e ponto), os demais são amigos esquerdistas que estão sempre falando algo sobre o Vietnam, um elogio ao Sartre, um impropério ao imperialismo e coisas assim.


Nelson Rodrigues leva a sério suas amizades e seus debates. Tão a sério que é chamado pelos amigos “flor da obsessão”.  De fato, a toda hora Nelson está achando motivos para criticar os esquerdistas, as passeatas infantilizadas, o falso compromisso com a política (esquerdista vai a praia de manhã para se bronzear e à noite ao bar Antonio’s para discutir aos berros estratégia revolucionária até cair de bêbado.


As crônicas não aparecem sempre numa ordem cronológicas, não sei por quê, pois confesso que se perde um pouco com esse salteado. Em momentos os temas se seguem e se desenvolvem, mas depois mudam para outros temas e em seguida voltam, de modo que o leitor tem que fazer atento ao que foi dito em crônicas anteriores para seguir o raciocínio do autor. Ao final, senti falta de crônicas sobre a Passeata dos 100.000, em junho de 1968. Nelson ironiza a falta de público no 1* de Maio, que fora convocada pelas esquerdas cariocas, mas se exime de falar sobre a grande passeata um mês depois. Ou talvez essa crônica esteja em outro de seus livros.


Nelson sente imenso prazer em descascar a adoração que a esquerda tinha à época por Sartre. Sua obsessão é descrever Sartre comendo jaboticaba numa recepção dada por “grã-finos”, sem qualquer sinal de estar ou não gostando e, em certo momento, perguntar a algum intelectual que o esteja bajulando; “E os negros, onde estão os negros? “Aí Nelson não perdoa e fica a soltar frases como o único negro brasileiro que conheço é Abdias do Nascimento, que reclama que Pelé tinha se casado com uma branca (anos depois, Abdias do Nascimento iria se casar com uma branca americana no seu exílio nos Estados Unidos - não sei se Nelson Rodrigues acompanhou esse feito).


O Óbvio Ululante não é um livro datado. Ao contrário, lê-lo ou relê-lo nesse momento é como trazer Nelson Rodrigues para nossa atualidade. Suas palavras sardônicas, seu raciocínio implacável está ainda na ordem do dia. Nelson certamente acharia a esquerda brasileira a mesma de 51 anos atrás, com seus mesmos mitos (exceto talvez pelo declínio da reverência a Stalin), suas mesmas apologias, seus mesmos impasses. 


Nesses últimos dias, relendo Nelson Rodrigues, conversei com diversos amigos velhos que conheceram Nelson em pessoa. Todos falam dele como um doce de pessoa, cordato, sensível, quase pegajoso - um nordestino manhoso como Gilberto Freyre ou Gilberto Amado. E era por isso queridíssimo, apesar dos venenos que diluía pelos cantos de suas crônicas. 


Conclusão: por tudo que escreveu, por tudo que se opôs, por tudo que foi a favor, por tanto debate, tanta ironia, o tempo de Nelson Rodrigues ainda guardava em si a possibilidade de diálogo entre esquerda e direita, entre posicionamentos políticos distintos, mesmo sob a espada da ditadura. Estranho pensar que havia uma certa inocência em tudo isso.


 O ex-covarde

Nelson Rodrigues


Entro na redação e o Marcelo Soares de Moura me chama. Começa: - "Escuta aqui, Nélson. Explica esse mistério." Como havia um mistério, sentei-me. Ele começa: - "Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?" Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: - "Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas "confissões". É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: - Por quê?"


Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcelo foi apanhar um duas mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: - "É uma longa história." O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do Couto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o Marcelo me fustigava: - "Por quê?" Quero saber: - "Você tem tempo ou está com pressa?" Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcelo já estava insuportável.


Começo assim a "longa história": - "Eu sou um ex-covarde." O Marcelo ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a tv. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.


Marcelo interrompe: - "Somos todos abjetos?" Acendo outro cigarro: - "Nem todos, claro." Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia que se salve e só Deus sabe como. "Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." E por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira? Claro que não é de graça nem por acaso.


O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens. Diria Marcelo que estou fazendo uma caricatura até grosseira. Nem tanto, nem tanto. Mas o medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a "Razão da Idade". Somos autores da impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total.


Sim, os pais têm medo dos filhos, os mestres dos alunos. o medo é tão criminoso que, outro dia, seis ou sete universitários curraram uma colega. A menina saiu de lá de maca, quase de rabecão. No hospital, sofreu um tratamento que foi quase outro estupro. Sobreviveu por milagre. E ninguém disse nada. Nem reitores, nem professores, nem jornalistas, nem sacerdotes, ninguém exalou um modestíssimo pio. Caiu sobre o jovem estupro todo o silêncio da nossa pusilanimidade.


Mas preciso pluralizar. Não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário. É o medo que faz o Dr. Alceu renegar os dois mil anos da Igreja e pôr nas nuvens a "Grande Revolução" russa. Cuba é uma Paquetá. Pois essa Paquetá dá ordens a milhares de jovens brasileiros. E, de repente, somos ocupados por vietcongs, cubanos, chineses. Ninguém acusa os jovens e ninguém os julga, por medo. Ninguém quer fazer a "Revolução Brasileira". Não se trata de Brasil. Numa das passeatas, propunha-se que se fizesse do Brasil o Vietnã. Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o negam até como valor plástico.


Eu falava e o Marcelo não dizia nada. Súbito, ele interrompe: - "E você? Por que, de repente, você mergulhou na política?" Eu já fumara, nesse meio-tempo, quatro cigarros. Apanhei mais um: - "Eu fui, por muito tempo, um pusilânime como os reitores, os professores, os intelectuais, os grã-finos etc, etc. Na guerra, ouvi um comunista dizer, antes da invasão da Rússia: - "Hitler é muito mais revolucionário do que a Inglaterra." E eu, por covardia, não disse nada. Sempre achei que a história da "Grande Revolução", que o Dr. Alceu chama de "o maior acontecimento do século XX", sempre achei que essa história era um gigantesco mural de sangue e excremento. Em vida de Stálin, jamais ousei um suspiro contra ele. Por medo, aceitei o pacto germano-soviético. Eu sabia que a Rússia era a antipessoa, o anti-homem. Achava que o Capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor do que o Socialismo e sublinho: - do que a experiência concreta do Socialismo,


Tive medo, ou vários medos, e já não os tenho. Sofri muito na carne e na alma. Primeiro, foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era "filho de Mário Rodrigues". E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: - "Essa bala era para mim." Um mês depois, meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante 15 dias, no Sanatório de Correias, ouvi a sua dispneia. E minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: - "Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário." Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, a sua sogra, D. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio.


Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o Dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato. Mas disse tudo. Minha filha era cega.


Eis o que eu queria explicar a Marcelo: - depois de tudo que contei, o meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: - "Sou um ex-covarde." É maravilhoso dizer tudo. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das Esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Velho ou de Mao Tsé-tung, ou de Guevara. Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho. E se há rapazes que, nas passeatas, carregam cartazes com a palavra "Muerte", já traindo a própria língua; e se outros seguem as instruções de Cuba; e se outros mais querem odiar, matar ou morrer em espanhol - posso chamá-los, sem nenhum medo, de "jovens canalhas".


RODRIGUES, Nélson. In A cabra vadia (novas confissões), Livraria Eldorado Editora S.A., Rio de Janeiro, s/data, págs. 7-10.


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