Uma resenha primorosa. Leitura imperdível.
_______________
Nelson Rodrigues - Tempos de debates e inocência
por Mércio Gomes
O Óbvio Ululante contém 81 artigos escritos entre novembro de 1967 e agosto de 1968. Foi um período quentíssimo da sociedade brasileira e mundial, tempo da nova ˜Revolução Francesa”, em maio, tempo dos assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy, tempo dos protestos contra a Guerra do Vietnam, tempo de grandes debates dentro da esquerda mundial, tempo da visita de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ao Brasil, tempo enfim da Passeata dos 100.000 no Rio de Janeiro.
Aqui temos Nelson Rodrigues com a sua língua afiadíssima desafiando os dogmas das Esquerdas brasileiras - Stalin, Guerra do Vietnam, imperialismo norte-americano, marxismo, filosofia libertária, juventude, sim, o “complexo do jovem”, e a dominante (não tinha chegado ainda o termo hegemônico) participação aparentemente alienada da chamada Esquerda Festiva no cenário jornalístico e intelectual brasileiro.
Em certo momento Nelson Rodrigues se assume uma reacionário avant la lettre. Quer a volta do Brasil ao aconchego da vida suburbana carioca, dos dramas pessoais dos habitantes do Meier, Cascadura e Tijuca. Quer fugir do reboliço moderninho de Copacabana, então no seu auge de fascínio cultural. Quer a moral tradicional brasileira, ao invés das novas normas trazidas por uma ética pretensamente universal.
Quem já leu Nelson Rodrigues sabe que ele bate sempre no prego, nunca na ferradura. Isto é, não dá colher de chá, não contemporiza com quem é criticável para ele, nem mesmo com os amigos. É até espantoso que Nelson Rodrigues tenha o carinho e o cultivo da amizade pelo tanto que ele ironiza e esculhamba seus diletos amigos. Em O Óbvio Ululante, seus amigos mais citados são: o mineiro e psicanalista Hélio Pellegrino, por quem se desvela em carinhos e apreço/; Otto Lara Rezende, que, em certa crônica diz que é amigo dele, mas não sabe se ele o tem como amigo; Antonio Callado, o “doce radical”, o único inglês que jamais existiu, mesmo na Inglaterra; Cláudio Mello e Souza, que surge como uma espécie de sparring para discutir algum ponto interessante; e Abdias do Nascimento, o único negro brasileiro. Com todos eles Nelson se desvanece, mas também pega nos seus pontos aparentemente fracos e os descasca, sobretudo quando discute política. Desses amigos, exceto pelo Cláudio Mello e Souza e Walter Fontoura (este último se declara um reacionário e ponto), os demais são amigos esquerdistas que estão sempre falando algo sobre o Vietnam, um elogio ao Sartre, um impropério ao imperialismo e coisas assim.
Nelson Rodrigues leva a sério suas amizades e seus debates. Tão a sério que é chamado pelos amigos “flor da obsessão”. De fato, a toda hora Nelson está achando motivos para criticar os esquerdistas, as passeatas infantilizadas, o falso compromisso com a política (esquerdista vai a praia de manhã para se bronzear e à noite ao bar Antonio’s para discutir aos berros estratégia revolucionária até cair de bêbado.
As crônicas não aparecem sempre numa ordem cronológicas, não sei por quê, pois confesso que se perde um pouco com esse salteado. Em momentos os temas se seguem e se desenvolvem, mas depois mudam para outros temas e em seguida voltam, de modo que o leitor tem que fazer atento ao que foi dito em crônicas anteriores para seguir o raciocínio do autor. Ao final, senti falta de crônicas sobre a Passeata dos 100.000, em junho de 1968. Nelson ironiza a falta de público no 1* de Maio, que fora convocada pelas esquerdas cariocas, mas se exime de falar sobre a grande passeata um mês depois. Ou talvez essa crônica esteja em outro de seus livros.
Nelson sente imenso prazer em descascar a adoração que a esquerda tinha à época por Sartre. Sua obsessão é descrever Sartre comendo jaboticaba numa recepção dada por “grã-finos”, sem qualquer sinal de estar ou não gostando e, em certo momento, perguntar a algum intelectual que o esteja bajulando; “E os negros, onde estão os negros? “Aí Nelson não perdoa e fica a soltar frases como o único negro brasileiro que conheço é Abdias do Nascimento, que reclama que Pelé tinha se casado com uma branca (anos depois, Abdias do Nascimento iria se casar com uma branca americana no seu exílio nos Estados Unidos - não sei se Nelson Rodrigues acompanhou esse feito).
O Óbvio Ululante não é um livro datado. Ao contrário, lê-lo ou relê-lo nesse momento é como trazer Nelson Rodrigues para nossa atualidade. Suas palavras sardônicas, seu raciocínio implacável está ainda na ordem do dia. Nelson certamente acharia a esquerda brasileira a mesma de 51 anos atrás, com seus mesmos mitos (exceto talvez pelo declínio da reverência a Stalin), suas mesmas apologias, seus mesmos impasses.
Nesses últimos dias, relendo Nelson Rodrigues, conversei com diversos amigos velhos que conheceram Nelson em pessoa. Todos falam dele como um doce de pessoa, cordato, sensível, quase pegajoso - um nordestino manhoso como Gilberto Freyre ou Gilberto Amado. E era por isso queridíssimo, apesar dos venenos que diluía pelos cantos de suas crônicas.
Conclusão: por tudo que escreveu, por tudo que se opôs, por tudo que foi a favor, por tanto debate, tanta ironia, o tempo de Nelson Rodrigues ainda guardava em si a possibilidade de diálogo entre esquerda e direita, entre posicionamentos políticos distintos, mesmo sob a espada da ditadura. Estranho pensar que havia uma certa inocência em tudo isso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário