por Paulo Kliass
Tá certo, eu sei que existe muita
polêmica acerca das possíveis interpretações sobre a proposição de Sérgio
Buarque de Holanda quanto à natureza cordial do jeito brasileiro de ser. Mas o
fato é que há elementos de ordem sociológica e cultural que parecem comprovar
esse nosso lado de sempre querer agradar, de ser o bonzinho. Nelson Rodrigues
falava do complexo de vira-lata e muitas vezes nos deixamos flagrar por uma
conduta que se encaixa bem nessa expressão.
Por outro lado, é amplamente
conhecido o fato de que nossas elites guardaram, desde sempre, uma postura
servilista face aos interesses e as pressões das elites dos países do chamado
“centro do mundo”. E essa forma de encarar a nossa posição nas relações internacionais
continua muito presente até os tempos recentes. Uma citação em qualquer revista
ou jornal dos Estados Unidos ou da Europa é considerada como muito mais
importante do que qualquer outro meio de comunicação daqui de dentro. E as
observações ali contidas devem ser levadas “a sério”! Muitas vezes confunde-se
o necessário ”aprender com a experiência internacional” com simples e vulgar
“copiar os caminhos e os modelos” adotados pelos países que maior influência
exercem sobre nossas classes dominantes.
E esse tipo de subserviência vale
para as esferas da cultura, da política, da sociologia e, principalmente, da
economia. Nesse último domínio, então, a coisa é terrível! E um elemento que
agrava as conseqüências é que pegamos o mau exemplo a seguir com uma defasagem
temporal – uma cópia pirata mal feita, no momento inadequado. É o velho
problema de querer ser mais realista do que o rei! E a história recente está
cheia de fatos. Os sucessivos acordos com os organismos internacionais (Fundo
Monetário Internacional – FMI e Banco Mundial – BM) desde os anos 80, a aceitação dos modelos
de ajuste macro-eocnômico incluindo privatização e liberalização irresponsável
da nossa economia, a abertura sem controle de nosso sistema financeiro e nossa
conta de capitais aos operadores do resto do mundo, entre outros.
Do passado recente, o caso mais
emblemático foi, sem dúvida alguma, a decisão anunciada pelo governo em 2003,
logo depois da posse de Lula. O Ministro Palocci veio a público, sem que
houvesse nenhuma pressão a exigir uma medida dessa natureza, anunciar a boa
vontade do Brasil em assegurar o pagamento dos juros e serviço da dívida
pública. Para tanto, anuncia, em cerimônia de muita pompa, a elevação
unilateral do superávit primário de 3,75% para 4,25% do PIB. Um exemplo de bom
mocismo para o mundo das finanças! Nesse mesmo momento, por exemplo, a nossa
vizinha Argentina estava em pleno processo de renegociação de sua dívida
externa e chegou a entrar em “default” (termo do financês para o não pagamento
de um compromisso financeiro) até que os credores externos aceitaram uma
redução do valor nominal da dívida. Já os nossos neo-convertidos à
responsabilidade fiscal do Planalto Central acusavam o falecido presidente
Kirchner de demagogia e populismo. No entanto, o futuro mostrou o acerto da via
adotada por ele. O catastrofismo não colou. Apesar da negociação dura dos
“hermanos” e da perda imposta aos credores espalhados pelo mundo, o capital
internacional não deixou de se dirigir para aquele país. Muito pelo contrário!
Pois bem, parece que as raízes da
cordialidade e do servilismo são mais profundas do que se imaginava. A tradição
continua firme e forte.
Na semana passada muita gente se
animou com a disposição da Presidenta Dilma em - finalmente! - receber as
centrais sindicais e as entidades do movimento pela reforma agrária. Afinal, já
havia muita reclamação de que ela estava com seus ouvidos mais voltados para o
capital (em especial, o financeiro) e pouco sensível às demandas dos
trabalhadores. Porém, parece que o otimismo durou pouco. A grande surpresa foi
a natureza do anúncio mais importante do encontro: péssimas notícias para o
País e para a maioria da população.
Dilma anunciou em alto e bom tom,
para quem quisesse ouvir: o governo vai aumentar, ainda mais, a meta do
superávit primário de 3% para 3,5% do PIB para o ano em curso! Uma loucura! Não
bastasse a previsão de pagamento superior a R$ 200 bilhões de recursos públicos
para pagamento de juros da dívida pública, a Presidenta anuncia que vai
reservar ainda mais valores do Orçamento para essa destinação estéril do gasto
público. E ainda tem a desfaçatez de chamar isso de “responsabilidade fiscal”!
Seja por estar mal assessorada no
assunto, seja por estar mesmo com segundas intenções, o fato é que a proposta
de Dilma não se sustenta nem mesmo de acordo com os argumentos apresentados até
agora. Senão, vejamos. O governo apresentou três razões para tal decisão: i) a
necessidade de apresentar uma postura de responsabilidade no trato da questão
fiscal; ii) abrir espaço para redução da taxa de juros no Brasil; iii) evitar
que a crise nos países desenvolvidos afete ainda mais nossa economia. Então,
vamos lá, analisando um por um.
Superávit primário, recordemos,
nada mais é do que um eufemismo (ou uma enganação) do economês para dizer que
todas as despesas públicas são iguais, mas para lembrar que algumas são mais
iguais do que outras. Uma situação de equilíbrio fiscal faz referência a alguma
forma de igualdade entre o total arrecadado pelo Estado e o total de suas
despesas. Numa situação de superávit, as receitas são maiores que as despesas e
o Estado pode dispor de mais recursos para, por exemplo, realizar investimentos
não previstos. O pulo do gato veio com a criação desse conceito de “superávit
primário”. Nesse caso, todo o esforço fiscal vai ser realizado para preservar
apenas um tipo de despesa: os gastos financeiros, com o pagamento de juros da
dívida pública. Ou seja, os demais gastos (pessoal, saúde, educação,
investimentos, etc) são contidos e apenas os gastos com juros permanecem
“imexíveis”.
Ora, parece estranho aparecerem de
novo com o discurso encomendado da seriedade no trato da questão fiscal, quando
o Estado esteve justamente com uma política de redução de arrecadação, em
função das isenções e deduções concedidas às empresas e ao capital em geral ao
longo dos últimos 3 anos. Aliás, essa foi uma das medidas acertadas para evitar
o aprofundamento da crise por aqui, desde o seu recrudescimento em 2008. Mas
parece que não se consegue sair da lógica viciada dos interesses das classes
dominantes. Cortam-se as receitas por meio da isenção de impostos devidos pelas
empresas e depois repassam a conta da “necessária responsabilidade fiscal” à
maioria da sociedade por meio de cortes na previdência social, nas áreas
sociais e nos investimentos. Seriedade na condução da contabilidade pública?
Estamos todos de acordo. Porém, que tal começarmos a reduzir despesas inúteis,
como os gastos com a dívida pública? Nesse caso, o caminho é justamente o
oposto do praticado desde há muito e anunciado agora outra vez: é necessário
reduzir o superávit primário e aumentar os gastos com investimento público!
E ainda no campo da arrecadação, a
cordialidade e o servilismo tupiniquins poderiam bem se espelhar um pouco na
postura das elites de alguns dos países tão levados em conta. O triliardário
norte-americano Warren Buffet acaba de declarar publicamente ser favorável à
taxação sobre as grandes fortunas como sendo uma forma de contribuição dos
muito ricos para a saída da crise. E o ultraconservador Presidente Sarkozy
acabou de aprovar um aumento no Imposto das Grandes Fortunas na França, com o
mesmo intento. Por mais que se possa discutir a respeito das verdadeiras
intenções por trás das iniciativas de tais personalidades do mundo da política
e das finanças, no mínimo elas poderiam servir como argumento para implementar
algo similar aqui em nossas terras. A Constituição Federal aguarda desde 1988
pela regulamentação do artigo 153, que cria o Imposto sobre as Grandes
Fortunas! Haja espírito cordial e de subserviência!
Felizmente parece que o governo se
deu conta da necessidade de que a taxa SELIC seja reduzida. Mas causa
estranheza o anúncio público que tenta condicionar a possibilidade de baixar os
juros ao aumento do superávit primário. É só mesmo prá confundir! Ora, o
governo pode decidir baixar os juros na hora que quiser. Basta vontade
política! Porém, até agora a postura sempre tem sido de cordialidade e
servilismo com o capital financeiro. A Presidenta da República é quem nomeia os
integrantes do COPOM (diretoria do BC). Ora se a preocupação (mais do que
justificada, diga-se de passagem!) é evitar uma elevação descontrolada do
consumo e as possíveis pressões inflacionárias, o Banco Central tem à sua
disposição outros instrumentos, a exemplo da elevação do depósito compulsório
dos bancos [1].
Provoca o mesmo efeito de reduzir a demanda e não tem o altíssimo custo do
pagamento de juros. Os únicos prejudicados serão as instituições financeiras,
que reduzirão seus ganhos fáceis e sem risco de mamar nas tetas abundantes do
Tesouro Nacional.
Ou então, os responsáveis pela
economia estão envergonhados de dizer publicamente que mudaram de idéia. E
agora acham que a razão de nossa taxa de juros ser elevada é porque nossa
dívida pública é grande e que o esforço de política econômica deve ser toda
para reduzir a dívida. Essa é outra falácia do discurso liberal, mas que saiu
de moda nos últimos anos, em razão da crise generalizada pelo mundo ter
mostrado que a realidade é bem mais complexa que seus “modelitos” possam
sugerir. É claro que a taxa de juros de um país sempre guarda alguma relação
com o risco de se emprestar para aquele Tesouro – por exemplo, comprando
títulos da sua dívida. Mas isso não tem nada a ver com o Brasil ostentar taxas
estratosféricas há décadas, mesmo depois de muita gente já ter festejado nossa
cotação como “investment grade” pelas agências de risco internacional. Podemos
baixar nossa SELIC para níveis de 6% ao ano sem problemas – e ainda assim
estaremos na lista dos “top ten” mais altos. Reduzimos os juros e ainda
ganhamos como bônus da operação a desistência de uma boa parcela do capital
especulativo que vem para cá. Com isso, a taxa de câmbio pode ficar num nível
mais realista e haverá uma queda nas despesas financeiras do orçamento. Ou
seja, basta não querer ser tão cordial assim, bem como recuar um pouco na taxa
de servilismo ao capital financeiro internacional. Só teremos a ganhar com
isso.
O terceiro argumento fala da
necessidade de se evitar que a crise internacional nos afete de forma negativa.
Perfeito! Ninguém quer que sejamos prejudicados pela recessão nos Estados
Unidos e na Europa, com suas repercussões sobre a China, Índia e demais países
de peso na cena mundial. Mas o que isso tem a ver com o aumento do superávit
primário? Nada ou muito pouco! Muito pelo contrário! A solução passa pelo
reforço do mercado interno, com a recuperação da capacidade de investimento do
Estado e pela manutenção do nível de renda por meio de programas importantes
como o salário mínimo, benefícios da previdência social, Bolsa Família e demais
projetos na área social. E como os recursos orçamentários são finitos, a
escolha deve recair sobre a redução das despesas com juros. Além disso, por via
indireta, a redução da SELIC permite trazer a taxa de câmbio a níveis menos
fantasiosos, com o fim dessa valorização artificial atualmente em vigor. Com uma
desvalorização no real, as exportações ficam estimuladas e as importações ficam
mais responsáveis. Ou seja, aponta-se no caminho inverso da atual tendência à
desindustrialização. Essa é forma de evitar um contágio negativo da crise
externa sobre nós.
E me despeço aqui com uma frase de
Paul Krugman, economista que pode ser acusado de tudo, menos de ser esquerdista
ou sonhador. Escreveu ele recentemente: “Logicamente, os suspeitos habituais
chamaram essas ideias de irresponsáveis. Mas eles sabem o que é, de fato,
irresponsável? Sequestrar o debate sobre a crise para conseguir as mesmas
coisas que defendiam antes da crise, e deixar que a economia siga sangrando.” [2]
[1] http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4896
[2] http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18253
[2] http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18253
Paulo
Kliass é Especialista em Políticas Públicas
e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Debate
Aberto, 01/09/2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário