José María Aguirre Oraá fala sobre o pensamento de autores como Miguel de Unamuno, Ortega y Gasset e José Luis Aranguren
Durante
a primeira fase do Ciclo de Estudos Perspectivas do Humano, promovido pelo IHU,
nos dias 16, 17 e 18 de agosto, esteve à frente dos debates o professor José
María Aguirre Oraá, catedrático de Filosofia Moral da Universidade de La Rioja,
Espanha. Na ocasião, ele apresentou o pensamento de Miguel de Unamuno,
filósofo, reitor da Universidade de Salamanca, exilado da ditadura de Franco e
morto na França. Depois, expôs o pensamento de José Ortega y Gasset,
catedrático de filosofia de Madri; e por último apresentou o pensamento de José
Luis Aranguren, que foi catedrático de ética na Universidade Complutense,
Madri.
Sobre
o pensamento desses autores, José María Aguirre Oraá concedeu uma entrevista pessoalmente à IHU
On-Line, quando falou também sobre Ignacio Ellacuría. Aguirre
explica que “a concepção do humano em Unamuno é a de que o homem tem uma
consciência angustiada e trágica, porque realmente há o fim da vida. A vida
acaba na morte, e o homem se rebela contra essa realidade. E o faz com razão,
pois não pode encontrar uma resposta à morte, afinal a razão nos diz que
começamos e acabamos”. O professor ainda destaca que “uma sociedade realmente
humana é aquela em que é preciso construir não um estado de bem-estar, mas um
estado de justiça”. E continua: “o fundamental não é construir um estado formalmente
de direito, mas um estado de justiça no qual realmente a democracia política
acompanhe a democracia econômica, cultural e social. Mais do que um sistema
concreto de governo, a democracia deve ser composta por valores democráticos do
povo, que devem ser soberanos, com participação política genuína, espaços de
debate político, determinação de valores solidários e fraternos”.
José
María Aguirre Oraá é professor de Filosofia
Moral na Universidade de La Rioja desde 1996. Na Universidade de Lovaina, Bélgica,
estudou Filosofia, doutorando-se em 1990. É autor de livros como La philosophie
en Amerique Latine (Lovaina: Ciaco, 1986); Pensamiento crítico, ética y
Absoluto (Vitoria: Eset, 1990); Filosofía: historia y presente (Vitoria: Eset,
1993); Raison critique ou raison herméneutique? Une analyse de la controverse
entre Habermas et Gadamer (París; Cerf, 1998); e Pluralismo y tolerancia. Un
desafío a las sociedades liberales (Logroño; Claridad, 2004). Seus campos de
pesquisa estão centrados na Filosofia Moral, Filosofia Política, Filosofia da
Religião e na Antropologia Filosófica. Confira
a entrevista.
IHU
On-Line – Qual é a concepção do humano em Miguel de Unamuno?
José
María Aguirre Oraá – A concepção do humano em
Unamuno é a de que o homem tem uma consciência angustiada e trágica,
porque realmente há o fim da vida. A vida acaba na morte, e o homem se rebela
contra essa realidade. E o faz com razão, pois não pode encontrar uma resposta
à morte, afinal a razão nos diz que começamos e acabamos. A razão questiona
nossa existência e só nesse sentido a fé permite uma abertura ao mistério de
Deus. Diante da situação trágica da existência humana, para querer crer em
Deus, é preciso deixar que Deus seja importante em nossa vida.
IHU
On-Line – Qual é a atualidade desse pensador para refletirmos sobre o humano em
nosso tempo?
José
María Aguirre Oraá – Talvez a concepção das
pessoas anônimas, que são quem realmente constroem a história, é algo que
continua sendo atual, apesar de tanto glamour e fachada política ou econômica.
Menos mal que existem homens e mulheres que, todos os dias, vão para o trabalho
e estudam. São os que sustentam a sociedade. As sociedades ocidentais,
inclusive a América Latina, possuem um forte sentimento religioso, e Unamuno
continua nos inquietando sobre essa situação humana de que somos limitados e
finitos. E a questão de que sentido tem nossa existência diante da dor, da
doença e da morte, continua sendo atual, apesar de que o estado de bem-estar
nos permite que vivamos bem.
IHU
On-Line – De que forma essa concepção dialoga e debate com o pós-humano que se
delineia atualmente?
José
María Aguirre Oraá – Sou um tanto crítico com
relação a essa concepção de pós-humanismo, pós-modernidade. O positivo da
crítica pós-moderna é que tem se dedicado a criticar as concepções totalizantes
de visões como o hegelianismo, o marxismo, o cristianismo. No entanto, não
podemos cair no relativismo de que “tudo vale” ou de que uma coisa é igual à
outra. É preciso ter critérios de valor para que uma coisa valha mais do que
outra. Nesse sentido, Unamuno pode continuar nos provocando a pensar que a
partir da existência humana é preciso ter em conta as questões de vida, de
mortalidade, de sentido. E essa pode ser uma questão de ontem, antes de ontem,
que o homem está sempre a buscar e precisa encontrar uma resposta. Unamuno é
muito crítico com o racionalismo e com a tecnologia desenfreada. Inclusive ele
fala que na Europa se tem usado muito a “Kultura”, com “k”, no sentido de ser
muito bárbara, muito forte, anulando essa inquietude humana e trágica de
perguntar pelo sentido da existência. Ele não está contra a ciência, a técnica,
mas contra essa absorção e essa anulação das questões vitais humanas.
IHU
On-Line – Em que medida o sentimento trágico da vida ajuda a compreender nossa
finitude e nossa importância cosmológica?
José
María Aguirre Oraá – O sentimento trágico
significa reconhecer duas coisas. Uma é nossa finitude, nossa limitação, nossa
situação humilde como humanos no cosmos. E a outra é o potencial de superação
que implica em querer viver ao máximo a vida, em querer ser imortal, a partir
de um “prolongamento” por intermédio da fama, do poder, dos filhos, dos
escritos, deixando algo para a história. No entanto, Unamuno aponta aqui o
problema do “meu eu” e da minha consciência que se acaba na essência da
imortalidade. Essa luta para o sustento da existência é algo que precisamos ter
em conta. Entre nós há pessoas que sofrem muito durante a vida pensando nisso,
pois não podem aspirar à fama, ao poder, refletindo o sentimento trágico da
existência.
IHU
On-Line – Como podemos compreender a perspectiva raciovitalista de Ortega y
Gasset?
José
María Aguirre Oraá – Ortega y Gasset
insiste precisamente contra o racionalismo, o idealismo, e creio que às vezes
de maneira um tanto parcial, mas escreve de maneira estupendamente bem do ponto
de vista literário. Trata da insistência de que a filosofia que parte da
existência humana – um pouco como Unamuno, mas com outro sentido – significa
partir da vida humana, no sentido de tudo o que a vida é. Para alguns, a
existência está na circunstância de terminar. E daí temos a frase “eu sou eu e
minhas circunstâncias”; “tenho uma vida, mas com uma circunstância cultural,
social, econômica”. A partir disso, a razão começa a mobilizar e a perguntar,
porque a vida necessita de explicações, de ciência, de sentido. Daí a expressão
“raciovitalismo”: partir da vida para que a razão esclareça a quantidade de
questões vitais que a nós surgem.
IHU
On-Line – Em que medida esse raciovitalismo aponta para as possibilidades e as
fronteiras do humano?
José
María Aguirre Oraá – Essa é uma pergunta
difícil, pois aponta para uma fronteira que se divide em dois pontos: a razão
não é o fundamental no homem (nesse sentido, se critica Descartes , que diz
“penso, logo existo”; não, não, não. O correto seria “existo, logo penso”); e
em segundo lugar também a razão é uma doutrina do perspectivismo, ou seja, cada
um tem uma perspectiva da realidade, e não a perspectiva da realidade. A
realidade seria aquilo que atribuiríamos a Deus, porque Deus é aquele que vê
tudo, mas o homem não. Talvez nós sejamos os diferentes olhos de Deus que veem
a realidade. A razão tem muitas possibilidades: ciência, tecnologia, estética,
ética, mas elas surgem da lógica da vida, ou seja, a razão não é o fundamental
no homem; e ela tem seus limites enquanto cerceada do ponto de vista das
diversas perspectivas.
IHU On-Line – Como ética e
política se unem no pensamento de José Luis Aranguren?
José
María Aguirre Oraá – Aranguren é um estudioso da
moral e, nesse sentido, da ética, de filosofia moral. Um descobrimento que ele
faz a partir do que lhe foi transmitido por Xavier Zubiri é que o homem é
constitutivamente moral. A moral não é um ornamento da existência humana; não é
um luxo. A existência humana não é como a existência animal. Podemos raciocinar
de diferentes maneiras diante de uma mesma situação, porque não temos um
comportamento determinado. Evidentemente o homem não é um indivíduo: é um ser
social. Ao se comportar moralmente, deve justificar suas preferências. Ao
desejar algo não basta dizer “porque sim”. Deve justificar por determinadas
razões. E na lógica social e política do homem, enquanto ser social, entra a
questão ética. É preciso ver que estruturas sociais e políticas são adequadas
para a existência humana. Nesse sentido, surge a democracia e toda a lógica da
sociedade. Por isso ética e política são diferentes, mas estão unidas.
IHU
On-Line – Qual é o nexo entre esses dois aspectos e as perspectivas do humano
nesse pensador?
José
María Aguirre Oraá – Uma sociedade realmente
humana é aquela em que é preciso construir não um estado de bem-estar, mas um
estado de justiça. É preciso saltar de um estado de bem-estar, o que com
frequência é defendido pelas perspectivas liberais. O fundamental não é
construir um estado formalmente de direito, mas um estado de justiça no qual
realmente a democracia política acompanhe a democracia econômica, cultural e
social. Mais do que um sistema concreto de governo, a democracia deve ser
composta por valores democráticos do povo, que devem ser soberanos, com
participação política genuína, espaços de debate político, determinação de
valores solidários e fraternos.
IHU
On-Line – Esses valores surgem onde? O ser humano os aprende onde?
José
María Aguirre Oraá – São valores que os homens
aprendem e desaprendem em todos os lugares onde se socializam: escola, bairro,
família, meios de comunicação, igrejas, universidades. Tudo depende dos pontos
de vista com os quais se depara. As boas famílias são aquelas onde se aprendem
valores humanos importantes; o mesmo ocorre com as boas igrejas, boas escolas,
boas sociedades. Os poderes econômicos dirigem e dominam nossas vidas e os
poderes midiáticos também. Não acreditamos mais no que diz o pai, a mãe, a
igreja, o governo, apenas por serem o que são. O sentido crítico e ético do ser
humano avançou mais. Não somos mais ingênuos. O que temos é uma crise da
autoridade moral das instituições.
IHU
On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
José
María Aguirre Oraá – Estou muito contente pela
oportunidade de proferir palestras na Sala Ignacio Ellacuría, aqui na Unisinos,
pois eu conheci Ellacuría. Estive com ele em dois congressos, já que ele era
amigo do meu orientador de tese. Ellacuría me enviou um artigo, que publiquei
num livro coletivo em 1989. Creio que foi o último artigo que ele escreveu
antes de ser assassinado. Ellacuría conseguiu “latino-americanizar” Xavier
Zubiri, seu orientador de tese, porque era seu discípulo. Zubiri dizia que o
homem é um “animal de realidades”. Ele busca a realidade, que é complexa,
afetiva, com sentido intelectivo. Ellacuría concordou, mas reelaborou a ideia
de seu mestre. Para ele, primeiramente era preciso se dar conta da realidade;
mas isso seria muito “externo”, como se a realidade estivesse lá e eu aqui.
Além de se dar conta, seria preciso incorporar e internalizar essa realidade,
afinal, essa realidade é minha. E, em terceiro lugar, colocar-se a serviço
desta realidade, ou seja, o que eu posso fazer para modificá-la, no sentido de
que essa realidade depende de mim para sua transformação. Ellacuría desenvolveu
essas três lógicas de maneira muito criativa. Por isso também o assassinaram,
porque ele estimulava as pessoas a se darem conta e a se comprometerem com a
justiça e com os pobres.
Fonte: IHU On-line, 373 Ano XI 12.09.2011
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