por Paulo Kliass
Ao longo do processo de
reconstrução da ordem político-institucional, no período que sucedeu ao fim da
ditadura militar, o Brasil ofereceu ao mundo um exemplo significativo de
arranjo na ordem social. Caminhando na contracorrente de todo o movimento
desregulamentador e mercantilizador que se apoiava nas idéias e propostas do
chamado neoliberalismo, os consensos construídos para a votação do texto da nova
Constituição no final da década de 1980 tentavam recuperar as propostas de um
Estado de Bem Estar Social.
No caso específico da saúde, o
processo também chama a atenção, principalmente se analisado numa perspectiva
histórica e levando em consideração as dificuldades ideológicas daquele
momento. Mas o fato é que a defesa de um modelo de saúde que fosse público e de
atendimento universal ultrapassou os muros da polêmica político-partidária, em
função da atuação fundamental de uma articulação que passou a ser conhecida
como “PS” - o chamado “partido dos sanitaristas”.
Reunindo políticos de diversas
orientações e filiações, sua ação unitária dava-se na defesa do modelo que veio
a ser incorporado ao texto constitucional, entre os capítulos 196 e 200, que
trata justamente da Seção da Saúde, no Capítulo da Seguridade Social. O Brasil
apresentava ao mundo o Sistema Único de Saúde - SUS, com base naquilo que havia
sido construído a partir da articulação de distintos setores da sociedade
interessados em montar um sistema de natureza pública, com um amplo
atendimento, com financiamento público e fundado num sistema federativo de
repartição de atribuições e recursos. Apesar de sintético, o texto dos 5
capítulos é bastante claro quanto às intenções dos representantes na Constituinte.
A seguir, alguns exemplos:
“A saúde é direito de todos e dever
do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação.”
“O sistema único de saúde será
financiado (...) com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes” [1]
Porém, as dificuldades começaram
já mesmo a partir da implementação do modelo do SUS. Havia - e ainda há! - uma
série de questões complexas a serem solucionadas, tais como:
i)
a garantia de fontes orçamentárias de
financiamento;
ii)
a definição clara da repartição entre as
atribuições e as origens de recursos entre União, Estados e Municípios;
iii)
os limites e as tangências entre a presença do setor privado e o setor público
na oferta de serviços de saúde; entre outras. Exatamente por estar sendo
construído num período em que o paradigma hegemônico da ordem social e
econômica no mundo era baseado na idéia da supremacia absoluta do privado sobre
o público e na tentativa de reduzir a presença do Estado a uma dimensão mínima,
o SUS já nasceu sendo bombardeado por setores comprometidos com tal visão
reducionista das políticas públicas.
Os conceitos teóricos que algumas
correntes da economia haviam criado em torno da idéia de bens públicos (saúde,
educação, saneamento, etc) sofreram forte oposição e a idéia de transformar
todos esses direitos da cidadania em simples mercadoria passou a ganhar força.
O mercado privado atuante na área da saúde recebeu grande impulso, a partir da
idéia de “complementaridade” ou “suplementaridade” à ação do Estado. Ao lado
das antigas e tradicionais instituições da filantropia, cresceu bastante a
atuação de grupos empresariais privados, que passam a operar no setor com a
lógica pura e simples da acumulação de capital e da obtenção de lucros. E o
acesso a esses hospitais, maternidades, laboratórios, centros clínicos passa a
contar com a sofisticação dos planos privados de saúde e os seguros de saúde.
Tudo baseado em preços, contratos, condições, exceções, carências e outros
elementos que confluem para reduzir a despesa e aumentar a receita. A saúde
deixa cada vez mais de ser um direito e se transforma numa mercadoria.
O espaço de disputa desse novo
campo de negócio, obviamente, dá-se com a própria rede do SUS. Colabora para
tanto um processo de sucateamento do sistema público, cujo principal
instrumento de atuação ocorre por meio de redução de seus recursos
orçamentários. Com isso, a rede pública não consegue avançar a contento em
termos de equipamentos e de pessoal. E os meios de comunicação complementam com
seu papel de desconstruir o modelo, apontando as falhas e as ineficiências de
atendimento da população, com a mensagem sub-reptícia de que isso ocorre em
função de sua natureza pública, estatal.
Mas o fato é que pouco a pouco vão
sendo reduzidos os gastos estatais com a saúde, enquanto que os gastos privados
passam a crescer a cada ano. A política de ajustes fiscais a qualquer custo -
que se tornou mais evidente a partir do Plano Real, em 1994 - terminou por
estrangular os orçamentos da seguridade social como um todo, aí incluído o
drama da saúde. Assim, em 1997 o governo federal acaba por lançar mão de um
tributo específico e emergencial para dar conta da falta de recursos
orçamentários para essas áreas. Foi aprovada a Contribuição Provisória sobre
Movimentação Financeira (CPMF), mas parte dos recursos ficava retida para
contingenciamento e outros dribles com objetivo de contribuir para o superávit
primário. Após compartilhar a dotação com previdência e assistência social,
menos da metade dos recursos ficava com a área da Saúde.
Esse tributo resistiu por quase 10
anos, quando foi finalmente suspenso em 2007, em votação ocorrida no âmbito do
Congresso Nacional. O discurso generalizado dos setores ligados ao mundo
empresarial e das forças conservadoras em geral acabou prevalecendo, na figura
da falsa imagem da “elevada carga tributária”. Na verdade, o grande incômodo do
sistema financeiro era mesmo a possibilidade de rastreamento de todas as suas
operações, uma vez que a contribuição incidia sobre as mesmas. E isso permite
ao poder público uma maior capacidade de controle e fiscalização, inclusive
para reduzir a prática de operações ilegais, Tendo perdido essa fonte de
recursos, o SUS voltou a sofrer ainda mais o risco do sucateamento. Desde 2008
tramita no legislativo um projeto para recriar uma fonte específica para a Saúde
(não mais para o conjunto da Seguridade Social). O princípio é bastante
semelhante à CPMF: trata-se da Contribuição Social para a Saúde (CSS). Tal
tributo incidiria sobre as transações financeiras, a exemplo da anterior, mas
teria uma alíquota inferior: 0,10% ao invés de 0,38%.
Alguns especialistas já apontam a
necessidade de um índice mais elevado, dada a urgência de recursos para o SUS.
De qualquer maneira, o mais importante é assegurar que as verbas sejam
direcionadas para o gasto na ponta do sistema e não fiquem esquentando o caixa
do Tesouro Nacional para formar o superávit primário e pagar os juros da
dívida. Além disso, faz-se necessário criar algum mecanismo para atenuar a
regressividade implícita na CSS. Isso porque todas as camadas de renda da população
sofrem a incidência do tributo, pois vivemos em um mundo marcado pela
generalização das atividades bancárias e financeiras. Assim, seria importar
promover uma medida de justiça tributária e isentar as faixas de renda mais
baixa.
A situação é de extrema urgência!
Caso contrário, corre-se o risco da saúde sofrer processo análogo ao do ensino
fundamental e médio. Ao longo das últimas décadas, em razão do sucateamento da
rede pública de ensino, setores expressivos da classe média passaram a optar
por estabelecimentos privados de educação para seus filhos. A rede pública,
salvo raras exceções, padecia de falta de verbas, com baixo investimento na
construção, equipamento e, principalmente, no estímulo aos professores. Estes
setores médios tendem a ser vistos como “caixa de ressonância da opinião
pública” e com maior capacidade de pressão sobre os representantes políticos.
Como eles deixaram de pressionar pela melhoria da qualidade do ensino público
pré-universitário, isso contribuiu para a situação ter chegado ao quadro atual
de difícil e urgente recuperação.
O momento atual é defesa do SUS
como modelo inspirador para uma rede pública para a saúde, com atendimento
universal e gratuito. Um direito de cidadania, um dever do Estado. É claro que
muito ainda há para ser realizado no sentido de aperfeiçoar a sua gestão, com o
intuito também de reduzir as perdas do sistema. O mesmo vale para a necessidade
de redefinir os cálculos dos gastos com saúde, tal como previsto pela famosa
Emenda Constitucional n° 29, que estabelece percentuais orçamentários mínimos
para que os governos federal, estaduais e municipais apliquem no sistema. E
também para introduzir maior grau de justiça social na forma de apropriação dos
recursos, inclusive físicos do SUS. E aqui entram aspectos como a atual
renúncia tributária para setores que gastem com saúde privada, o uso
descontrolado da rede privada dos setores de excelência da rede pública nas
áreas de alta complexidade a baixo custo, as facilidades de isenção tributária
para os grupos empresariais que operam no sistema privado de saúde, entre
tantos outros aspectos.
Enfim, as tarefas são muitas e
complexas. Mas a urgência do momento é assegurar, no mínimo, condições para o
funcionamento do SUS. E para tanto, torna-se essencial a aprovação de uma fonte
específica de recursos orçamentários para a Saúde.
Paulo
Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior |
Colunistas | Debate Aberto, 15/09/2011
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