sexta-feira, agosto 06, 2010

pressão sobre a floresta

Quando a tendência vira fato
Governo anuncia queda no desmatamento da Amazônia antes de fechar análise anual. Ainda que o corte raso diminua, a extração de madeira se mantém.
No fim da última semana, a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, chamou a imprensa para divulgar "dados parciais" da taxa de desmatamento na Amazônia. Com números do sistema Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), ela afirmou que, entre agosto de 2009 e maio de 2010, o desmatamento na região caiu 47% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Na festa propagada pelo governo, no entanto, pouca voz foi dada a quem entende de monitoramento. Dalton Valeriano, chefe da Divisão de Sensoriamento Remoto do Inpe, foi categórico no jornal Folha de S.Paulo: "Afirmar que o país está desmatando menos ainda é mera especulação".
Valeriano se refere à imprecisão do Deter em medir o tamanho das áreas devastadas. Criado em 2004 pelo Inpe, o sistema veio com o objetivo de, mensalmente, alertar os órgãos de fiscalização quando algo estivesse errado pela floresta. Usando imagens de satélite, o sensor Modis é capaz de "enxergar" cortes rasos e processos de degradação por extração de madeira, mas somente em áreas maiores que 25 hectares. As derrubadas menores que isso ficam de fora. O que não é pouca coisa. De acordo com o próprio pesquisador, hoje os desmatamentos menores representam 60% de toda a devastação.
"Quando o governo começou a usar o Deter e a mandar equipes de fiscalização para os locais que estavam sendo desmatados, os grandes desmatadores entenderam a lógica. Agora, em vez de desmatar uma extensão enorme, eles desmatam várias áreas menores, para que o Deter não pegue", explica André Muggiati, da Campanha da Amazônia do Greenpeace, acrescentando que a imprecisão também ocorre por conta das nuvens: quando o céu está coberto – o que não é incomum na região – nem todas as áreas são identificadas. "Qualquer dado que se refira à área desmatada é equivocado se for gerado por esse sistema. O Deter não foi feito para medir o tamanho do desmatamento".
Dados imprecisos
Por se tratarem de números falhos, o anúncio feito pelo MMA acaba gerando interpretações equivocadas, de que as estatísticas indicam que a agricultura e a pecuária seguem trilhas mais saudáveis, ao mesmo tempo em que a extração predatória de madeira mingua. Ledo engano.
Se o agronegócio está, aos poucos, diminuindo sua pressão sobre a floresta, não se pode falar o mesmo do setor madeireiro. Quem o diz é também o Inpe, com dados do sistema Degrad, criado há dois anos para medir, aí sim, o tamanho de áreas em processo de degradação por extração predatória de madeira.
O gráfico mostra a diferença entre os números do Deter e do Prodes. Os dados de 2010 do Deter ainda não estão completos, e o Prodes ainda não saiu.
Enquanto o desmatamento demonstra queda nos últimos anos, o Degrad mostra que a degradação na floresta seguiu o caminho inverso. Enquanto, em 2007, quase 16 mil quilômetros quadrados foram identificados em estágio de degradação, a taxa subiu para mais de 27 mil km2 no ano seguinte. Os números de 2009, que já deveriam ter ido para a rua, o MMA ainda não soltou.
Para calcular as áreas degradadas, o Inpe utiliza imagens do satélite Landsat, muito mais preciso que o usado pelo Deter. É a partir do que ele aponta que são geradas as taxas anuais de desmatamento na Amazônia. A metodologia adotada para se fazer essa análise ganhou o nome de Prodes (Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia).
Muito mais refinado que o Deter, esse sistema consegue identificar desmatamentos a partir de 6,25 hectares, deixando de fora uma fatia muito menor da devastação.
Para exemplificar a diferença na precisão entre os dois sistemas, não é preciso ir muito longe. Em 2009, o Deter apontou cerca de 4 mil quilômetros quadrados de desmatamento na Amazônia. Pouco tempo depois, saíram os números do Prodes, que havia identificado muito mais: quase 7.500 quilômetros quadrados derrubados. Nesta terça-feira, a ONG Imazon também soltou seus números de monitoramento mensal.
Contrapondo os dados do Deter, o instituto afirma que, de agosto de 2009 a junho de 2010 houve, não declínio, mas um aumento de 8% no desmatamento, em comparação com o mesmo período do ano anterior. Portanto, todo cuidado é pouco na hora de falar de números, ainda mais se tratando de ano eleitoral. "Uma série de fatores levou à tendência de redução do desmatamento nos últimos anos. A moratória da soja e o compromisso público assumido pelos grandes frigoríficos de não comprar mais gado de áreas devastadas influenciaram bastante, assim como as ações de fiscalização", diz Marcio Astrini, da Campanha Amazônia do Greenpeace. "No ano passado, com crise financeira mundial, o que caiu foi a procura pelas commodities. Com menor demanda, os setores que produziam pressionando a floresta diminuíram o ritmo, e isso teve reflexo na queda do desmate".
Tendências à parte, a atenção deve ser redobrada. Julho é quando começa o período de seca e as motosserras são ligadas a todo vapor. Quantas árvores vão cair nos próximos meses, ainda não se sabe. Mas elas têm de entrar na conta antes que qualquer anúncio seja feito.
Fonte: Greenpeace.org.br - Notícia - 27/07/2010.

quinta-feira, agosto 05, 2010

água: fronteira de paradigmas

A apropriação da água*

por Luisa Tovar**

A sutíl propriedade da água

A relação do homem com a água expressa-se, como a relação com a terra, na organização das sociedades desde os tempos mais remotos.  As relações sociais, o exercício do poder, o desenvolvimento humano, científico e tecnológico, o próprio clima e ocupação da terra, a concepção do mundo - em suma, a história dos povos, reflete-se na "história da água".
Uma componente muito relevante desta relação é o estatuto de "propriedade" e "direito de uso" que tomou formas muito diversas nas diferentes civilizações da antiguidade e se exprime actualmente de formas muito distintas na cultura, no "sentido de direito" e nas legislações dos diversos países[i].
O poder sobre a água esteve sempre associado à forma de poder sobre as pessoas e sobre o território. É assim "normal" que o assalto à água tenha um papel significativo na investida capitalista para o poder absoluto.
Mas o ataque directo e aberto, a "privatização" e mercantilização pura e simples dos recursos hídricos e serviços associados, encontra mais resistências que outros ataques semelhantes - aos recursos minerais, à energia e à poluição do ar, por exemplo.
O sentido cultural de "direito" à água, de "bem comum", os sistemas instituídos e com raízes antiquíssimas de direito da água nos diversos países, a própria ligação, ainda muito viva, entre as pessoas e a água "da natureza", constituem obstáculos a contornar.
Assim, o ataque é feito evitando a todo o custo o termo "propriedade" e transformando o conteúdo de designações em uso ("gestão", "direito de uso", "concessão", "prestação de serviços", por exemplo) para uma apropriação de fato da água.
Em simultâneo, devido à muito diferenciada organização jurídico-administrativa dos Estados em relação à água e, sobretudo, à diversidade de conceitos culturais (e éticos) de "direito da água", esta incursão depara-se com obstáculos, diferentes de país para país, que condicionam a celeridade de penetração e, por vezes, as táticas e prioridades específicas.
Coexistem assim e conjugam-se várias formas de apropriação heterogéneas, algumas das quais camufladas, mas não menos eficazes.
A água está em constante movimento, transita entre as fases sólida, líquida e gasosa, tornando-se de fácil acesso por períodos mais ou menos curtos para seguidamente se tornar inacessível e voltar a reaparecer noutro local. E é, não exatamente "renovável", mas reutilizável, isto é, em períodos de tempo mais ou menos longos a água que foi utilizada uma vez volta de novo ao sistema global.
Terão sido estas características, e não qualquer conceito ético ou de equidade, que inviabilizaram historicamente a aplicação à água do regime de propriedade que foi aplicado à terra por quase todo o mundo, em séculos de conquistas territoriais, de invasões, de domínio senhorial, de subjugação de povos, de ocupação colonial e de construção de impérios.
A terra, sem água, é estéril. E a propriedade da terra de nada serve sem água. O domínio da terra e dos povos implica o domínio da água. Não há autodeterminação nem liberdade - ou sequer vida - sem garantia de acesso quotidiano à água.
Ao longo dos séculos o homem aplicou uma criatividade e um trabalho imenso à interação com a água. Inventou - e inventa ainda - processos cada vez mais eficientes de reter a sua acessibilidade fugaz, de chegar às formas mais inacessíveis, de transportá-la a longas distâncias, de armazená-la, de purificá-la. A história das ciências da terra e do clima, da agricultura, das engenharias, da matemática, está profundamente ligada à história da relação do homem com a água.
A forma de "regular" o acesso à água estabeleceu-se em paralelo com o domínio sobre a terra.  Mas, na incapacidade física de tomar pela força e vedar o acesso à água da mesma forma que se fazia com a terra, as organizações sociais baseadas no regime de propriedade foram estabelecendo sistemas legais e de controle de acesso á água que, de alguma forma, se lhe assemelhavam.
Todos os sistemas de direito da água que chegaram aos nossos dias incorporam uma componente (mais ou menos vaga) relativa às relações entre Estados, diretamente associada ao território.
E outra componente, muito mais extensa e intrincada, aplicável essencialmente à água "doce" - de rios, lagos, aquíferos subterrâneos ou nascentes, que regula a separação entre "águas privadas" e "águas públicas" (comuns, administradas pelo Estado) e a apropriação" de "partes" da água "comum".
Naturalmente, uma parcela de água individualizada e destacada da "massa" ou "corpo" em que circularia no ciclo hidrológico - natural ou modificado - é um "objeto " passível de ser apropriado; em caso limite, um copo de água é um bem que não só é passível de ser apropriado, como obviamente de utilização privada e particular.
No outro extremo estaria a "propriedade" de "toda a água" - os oceanos e glaciares, as nuvens e a humidade atmosférica, os rios e os lagos, os aquíferos subterrâneos, a humidade do solo, toda a enorme energia desse constante movimento, as substâncias dissolvidas e suspensas em constante transformação, toda a fauna e a flora que a habitam ...
As "fronteiras idealizadas" entre "toda a água" e a "água passível de ser apropriada" divergem de sistema para sistema, contrariando mesmo nalguns casos as leis da física.  É o caso do direito português, que mantém a absurda herança romana de estabelecer que a água subterrânea e as nascentes são propriedade privada associada à posse da terra, como se a geohidrologia, a recarga e o nível piezométrico dos aquíferos, o escoamento no sub-solo, se regulassem por "marcos", "extremas" ou registos notariais.
O direito moderno da água, próprio de cada país, estabelece a delimitação entre as "águas públicas" e as "águas privadas", regras de utilização das "águas privadas" e um conceito muito relevante no processo de apropriação, que é o "direito de uso" das "águas públicas".
O "direito de uso" tem a forma de um contrato entre o Estado e um privado, permitindo a esse privado o "usufruto" de "águas públicas" em condições estabelecidas, e que o Estado se compromete a fiscalizar.
O objectivo do processo de apropriação capitalista da água é a obtenção do "domínio" da água e a sua rentabilização (transformação em capital produtor de renda) na forma de títulos passíveis de comercialização e especulação financeira.
Tem formas múltiplas, simultâneas e conjugadas, mas focam-se aqui apenas alguns aspectos essencialmente relacionados com:
- a apropriação das "águas públicas";
- a apropriação das infraestruturas públicas;
- a apropriação dos serviços essenciais da água.
A apropriação das "águas públicas"
O processo de apropriação privada das águas públicas é de uma importância tão crucial que se torna uma pedra chave na apropriação da água e na conquista do poder político resultante.
Decorre no campo legal, atuando simultaneamente nos múltiplos órgãos supranacionais que, a pretexto de regulamentação, interferem ativamente nos diversos sistemas de direito nacional[ii], muito especialmente no direito econômico e no direito "ambiental", bem como no intricado e opaco articulado legislativo que forma o tecido jurídico-institucional da administração da água de cada país.
Apontam-se aqui apenas duas vertentes simultâneas desta atuação:
- a alteração do estatuto do "direito de uso", transformando-o em "cotas de propriedade".
- a substituição da administração pública, estatal, das "águas públicas" por órgãos controlados pelo poder do capital.
O "direito de uso", que consiste na permissão de alteração do estado e do comportamento das "águas públicas" pode tomar a forma, entre outras menos significativas, de "direito de poluição"[iii], que não se trata aqui apesar da sua importância, ou de "direito de captação". O "direito de captação" permite retirar continuamente uma "parte" da água pública - determinado volume -  para utilização privada numa atividade. Isto é, o "direito de captação" consiste na forma legal de apropriação de determinada parte das "águas públicas".
O "estatuto legal" da água altera-se no processo de captação: deixa de ser "domínio público" para se tornar "domínio privado".
Na ausência de restrições legais específicas, este "direito" é independente da variabilidade hidrológica da ocorrência da água. Isto é, no verão, ou durante uma seca, os concessionários dos "direitos de captação" servem-se da "sua parte", deixando no rio, ou no aquífero, "o que sobrar" - "se sobrar".
Como é evidente, a instalação de múltiplos utilizadores com os seus "direitos de uso" em qualquer massa de água pública é conflituosa num período de escassez ou de "menor abundância"; e esta competição, ultrapassando determinados limites, provoca danos no funcionamento da "massa de água pública" - na sua função como suporte de vida aquática, nos equilíbrios hidráulicos e sedimentares, nos processos físicos químicos e biológicos e em toda a fruição "não consuntiva", isto é, "sem captação", da massa de água.
O usufruto de "direitos de uso" tem, por isso, de ser condicionado.
A limitação e hierarquização dos "direitos" é estabelecida, em Portugal como noutros países com raízes no direito romano, por um critério da "importância pública" da finalidade da água. Por esse critério o abastecimento público é legalmente priorizado, "cessando" temporariamente os "direitos" de outros utentes conflituosos com este. A lei define uma hierarquização entre os restantes usos, incluindo o "espaço ambiental", numa filosofia que tenta conciliar a "importância social" do objetivo com a "gravidade da falha" para o utilizador.  O Estado é árbitro "e decide" em caso de omissão ou dúvida de interpretação da lei.
Na legislação dos EUA prevalece o direito do "primeiro a chegar", isto é, a hierarquia é estabelecida por data de aquisição do "direito". O primeiro instalado é dono de todas as gotas de água disponíveis até perfazer a sua quota. Pode usá-las, desperdiçá-las ou vendê-las.
Este exemplo apenas ilustra um dos muitos "detalhes" que distinguem dois conceitos de "direito de uso", e que representam, de facto, hierarquizações muito diversas entre "direitos de cidadania" e "direitos de propriedade".
O primeiro pilar da apropriação da "água pública" incide nesta zona legislativa, e tem como objetivo a transformação dos "direitos de uso" da água em "quotas" de propriedade da "água pública".
Para além da remoção dos condicionamentos hierárquicos entre usos pretendem-se substituir os critérios legislativos de "interesse público" e "direito de cidadania" por mecanismos de mercado - "pagamento de uso" e "leilão de direito de uso".
E ainda:
 - tornar o "direito de uso" permanente, independente da finalidade a que se destina, hereditário e comerciável;
- responsabilizar o Estado pela garantia de usufruto do "direito de uso" pelos seus detentores, e por indenizações caso não haja condições materiais do seu pleno gozo.
Isto é, transformar as "águas públicas" numa propriedade por cotas de um ou mais investidores, que se ocuparão "eficientemente" da sua "venda a retalho".  Ficando o Estado como "guarda-portão" e "segurador" dessa propriedade .
Em alguns países, destacando-se os EUA, o mercado de "cotas de propriedade" das águas públicas, ou "direitos da água" - "water rights" - é já uma realidade instituída[iv].
O segundo pilar desta estratégia de apropriação é a transferência da administração pública da água, baseada num sistema de direito público e com objectivo de melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, para sociedades privadas reguladas pelo direito privado e mecanismos de mercado, orientadas para a maximização da renda de capital dos acionistas.
Neste sentido são conjugadas duas linhas simultâneas:
-    a transição gradual das funções de administração do Estado para a "gestão" de sociedades anônimas, com o que se consuma a transição de funções do âmbito do direito público para o do direito privado e a mutação de objetivos concomitante. Esta transição processa-se através da "concessão" da gestão de empreendimentos[v] ou de "massas de água"[vi].
-    a "gestão" das bacias hidrográficas e/ou grandes empreendimentos públicos por órgãos exteriores à administração direta do Estado, com administração  "participada" pelos "interessados".
Mais sutil que a técnica das sociedades anônimas, este formato é muito desenvolvido nas recomendações dos organismos internacionais influenciados pelos interesses de capital.
Trata-se, de fato, de constituir "entidades gestoras" de fachada pública cujos órgãos decisores são conselhos de administração de fato dominados pelos interesses privados da zona de influência.
O eufemismo utilizado para entregar formalmente as decisões públicas aos interesses privados é a "participação dos interessados". A teoria é amplamente desenvolvida em documentação da UE, do Banco Mundial e outros órgãos, representando uma transição do público ao privado alternativa à solução das sociedades anônimas.[vii]
Estas duas formas de "alijamento" de funções do Estado representam fases de transição para um modelo mais ou menos disfarçado de grupo econômico privado.  Sublinha-se que todos os processos ficam facilitados, porque deixando de ser abrangidos pela legislação que obriga à transparência da administração pública, se tornam opacos e inacessíveis ao acompanhamento pelo sistema político e pelos cidadãos.
Em suma:
- As "águas públicas" são transformadas em propriedade de uma sociedade por cotas.  São comercializadas a retalho pelos acionistas como "matéria prima transformada", "mercadoria embalada" ou "depósito de lixo".
- A administração pública é substituída por um órgão que funciona como conselho de administração dos proprietários.
- Reserva-se ao Estado a "responsabilidade" pelo bom exercício do direito de propriedade e pela garantia do permanente lucro dos investidores.
Isto é, a função do Estado passa a ser a proteção da renda das "cotas" de propriedade da massa de água, ao invés do papel de garantidor e promotor do bem-estar da População, da sustentabilidade, da preservação e desenvolvimento da natureza, do território e dos recursos comuns.
O processo de privatização das águas públicas é bem real, está em curso pela forma que se delineou. Viola o espírito e pode passar ao lado da letra das Constituições - sobretudo, quando é promovido e incentivado por fortíssimas maiorias parlamentares.
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(*)Trecho do artigo A Fronteira da Água, escrito para a Revista "Poder Local",Número com o tema central "Desenvolvimento Sustentável e Cúpula de Joanesburgo"
** Luisa Tovar, Engenheira Civil, Mestre em Engenharia do Ambiente.

[i] Não é possível expor adequadamente neste espaço a complexidade do tema. Ver, sobre a "história" antiga e muito recente: Caponera, Dante A., Principles of Water Law and Administration (Rotterdam: Balkema Publishers, 1992); Realça-se a diferenciação entre as sociedades sedentárias, em territórios abundantes de água", fonte de riqueza agrícola, como a egípcia e a babilônica, em que é predominante a componente da hierarquia de poder sobre o "recurso estratégico" e as infraestruturas, e as civilizações de escassez, parcialmente nômades, como a islâmica e a israelita, em que o direito se centra na garantia de acesso à água potável - uma expressão de "direito humano" fundamental, que assume características por vezes religiosas. O "direito romano", associado ao império e á propriedade da terra, ainda fortemente patente nas legislações atuais de muitos países, como Portugal, Holanda e França. O "direito de garimpeiro", de conquista pela força, proveniente das tribos germânicas, que ainda hoje marca o sistema inglês e, muito fortemente, o dos EUA. A única legislação moderna "de raiz", a Lei da Água da URSS de 1972, incorporando conceitos completamente inovadores, como a noção de "corpo de água" e a integração no sistema de planeamento, hoje "formalmente" assumidas na discussão sobre a gestão da água. E também as múltiplas formas de "protecção" legal contra a poluição.
[ii] Ver: Luís Sá, 1995, "A crise das Fronteiras - Estado, Administração Pública e CE", Tese de doutoramento defendida ISCSP, UTL; Volume II - "O caso do Ambiente"; não publicado; ver especialmente as pags 1028-1062, dedicadas à política da água.
[iii] Sobre "direito de poluição" e interferência da UE ver Luís Sá, obra referida na nota anterior.
[iv] A dimensão do mercado de "cotas" da água levou já ao surgimento de empresas que atuam como intermediárias nestas transações; Ver "waterbank" (o banco da água) em http://www.waterbank.com
[v] Em Portugal é o que se passa em relação aos grandes aproveitamentos hidroelétricos, com particular destaque para o Cávado e o Lima; com a gestão de alguns aproveitamentos hidroagrícolas por associações de regantes; e, mais significativamente, com a concessão à EDIA (em preparação) da gestão do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva.
Em todos os casos se trata de entidades de direito privado que gerem, fatualmente, os rios.   Poderá não ser "ainda" a privatização completa e formal da água, mas a orientação é clara.
[vi] Tem vindo a ser aventada a hipótese da gestão das bacias hidrográficas por "sociedades anônimas".  O caso da EDIA, referido em nota anterior, parece mostrar uma inclinação por essa opção.
[vii] Várias propostas que vieram à luz, incluindo o articulado das versões para consulta pública dos planos de bacia hidrográfica e do plano nacional da água, indicavam esta modalidade, eventualmente combinada com o estatuto de Sociedade anônima.

quarta-feira, agosto 04, 2010

vem no pensamento

Borboletas
.
Por dançar a vida achei uma pista em ampla clareira
No pisar corrente arranquei as unhas e as penas
Ignorando os domínios ia somando as trilhas
Ao escolher um curso ainda sem padrão nem eira
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Entreguei-me às marés ainda mal acostumadas
Às tábuas de horas e regras moldadas à mão
Atravessei no peito as ondas tracejadas de sal
Conspirando para as águas virem numa cheia
.
Dadas as circunstâncias era movido pela emoção
Abrindo o coração que transitava sem amarras
Em sintonia com a música soltei o que guardava
Réstias de festejos bem combinadas com maçãs
.
Encontro o vestido de uma história incompleta
Tantos sonhos deixados como jogos de armar
Suspenso em finas hastes de giz da memória
Equilíbrio solto em rota riscada por labaredas
.
Bela borboleta roxa atraída pela luz em colapso
Aprende a aceitar o desencanto das mudanças
Um valioso selo guardado numa caixa de segredos
Retrato três por quatro dobrado em lembranças

ponto de encontro cultural

21ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo | 12-22 Agosto 2010 - Anhembi - São Paulo, SP - das 10 as 22hs
12 a 22 de agosto - ANHEMBI - SP - das 10 às 22 hs

Programe-se para visitar o grande evento cultural: 21ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo!
Além da larga oferta de livros, a Bienal oferece uma intensa programação cultural, desenvolvida para despertar o gosto pela leitura em mais de 700 mil pessoas, entre crianças, jovens e adultos.
Algumas atividades estão previstas para personalizar ainda mais a programação, durante os 11 dias do evento, com mais de 1000 horas de atividades culturais.
A organização da 21ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo convidou um grupo de profissionais de expressivo conhecimento na área para enriquecer ainda mais a programação cultural do evento. Para o Conselho de Curadores, foram convidados o sociólogo Danilo Santos de Miranda, diretor do SESC (Serviço Social do Comércio); o físico e engenheiro Hubert Alquéres, diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; e o poeta, jornalista e professor universitário Augusto Massi. A programação cultural da feira terá como principais temas: Monteiro Lobato, Clarice Lispector, Livro Digital e Lusofonia.

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flipFesta Literária
Internacional de Paraty
2010
de 4 de agosto, quarta-feira
até domingo, 8 de agosto

terça-feira, agosto 03, 2010

hora de decidir

A escolha de um futuro
.
O que acontece com você sempre é o resultado das suas escolhas, ainda que inconsciente e mais, quando as consequências se tornam fruto de uma decisão consciente que muda o curso das coisas em que esteja envolvido, por mais indesejável que seja, irá se perguntar depois sobre o que teria ocorrido depois sem ela, e decerto observará se ela teria sido mesmo importante naquelas circunstâncias, e porque se tornou uma extraordinária experiência na sua vida e parte das responsabilidades que teve de assumir.
Então você dará boas risadas, caso tenha feito a melhor escolha, a que te colocou em paz consigo mesmo, dignidade na tua existência do ponto de vista prático, através do teu trabalho, sobretudo por ser justo aquela que lhe trouxe melhores benefícios (espirituais, emocionais, materiais) ao invés de te parar numa continuidade de incômodos, somatizações, patologias e erros recorrentes. O aprendizado com nossas escolhas é que nos aproxima da real dimensão da vida humana; que tem sede, tem fome, apaixona-se e tem esperança de se tornar melhor, criando instrumentos de poder, de formas de luta na busca das liberdades de expressão, das artes e da incansável satisfação de suas necessidades.
Depois de certas escolhas tudo se revela como uma guinada para o rumo de casa, um ato investido de poesia e prazer, uma conquista que se torna aprendizado e parte do seu modo de ser, uma prova de existência renovada. Qualquer de suas escolhas (inconsciente ou consciente, ética, ideológica) define o seu modo e curso de vida, e serão seus pesadelos ou seus sonhos. Não é o trabalho que fazes, mas antes os sonhos e a ação realizada por você que definem a sua identidade e a vida que tens. A sua vida é em qualidade a sua identidade respeitando a sua natureza.
Aquela outra opção, descartada, que lhe pareceu um rumo impossível, não desejado, logo poderá ser revista, avaliada com autocrítica, como uma coisa tão simples (agora) lhe parecia tão complicada? Uma barbárie. Porém, significava uma via de sentido único e de qualidades desconhecidas, que você seguiria do seu jeito, aprendendo do mesmo jeito, caso houvesse decidido por ela. Quem sabe até desfrutando de imprevistos enriquecedores, algum sufoco sem medida, uns vícios de passagem pelo descontrole, pelo caos, que te sacudiria para uma superação. Enfim, talvez uma eventual mudança de vôo curto te levasse a algum lugar. Ainda assim, seria igualmente vivida como uma variante das múltiplas escolhas que temos, mais uma, outra dura realidade tanto quanto previsível.
Ninguém vive realmente sem fazer escolhas, senão só viverá por conta da sorte ou por conta do humor alheio. Afinal, quem não toma suas próprias decisões, algo ou alguém as tomará nas mãos, por algum tempo, até que num futuro mais à frente você se defina por si mesmo. As escolhas são formadoras dos caminhos que estruturam toda nossa finita vida.
O lance sobre o futuro, é que ele muda toda vez que você olha para ele. Só porque você olhou para ele.

segunda-feira, agosto 02, 2010

alunos treinados em avaliação

'Nota mais alta não é educação melhor'
Uma das principais defensoras da reforma educacional americana - baseada em metas, testes padronizados, responsabilização do professor pelo desempenho do aluno e fechamento de escolas mal avaliadas - mudou de ideia. Após 20 anos defendendo um modelo que serviu de inspiração para outros países, entre eles o Brasil, Diane Ravitch diz que, em vez de melhorar a educação, o sistema em vigor nos Estados Unidos está formando apenas alunos treinados para fazer uma avaliação.
A entrevista é de Simone Iwasso e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 02-08-2010.
Secretária-adjunta de Educação e conselheira do secretário de Educação na administração de George Bush, Diane foi indicada pelo ex-presidente Bill Clinton para assumir o National Assessment Governing Board, instituto responsável pelos testes federais. Ajudou a implementar os programas No Child Left Behind e Accountability, que tinham como proposta usar práticas corporativas, baseadas em medição e mérito, para melhorar a educação.
Sua revisão de conceitos foi apresentada no livro The Death and Life of the Great American School System (a morte e a vida do grande sistema escolar americano), lançado no mês passado nos EUA. O livro, sem previsão de edição no Brasil, tem provocado intensos debates entre especialistas e gestores americanos.
Eis a entrevista.
Por que a senhora mudou de ideia sobre a reforma educacional americana?
Eu apoiei as avaliações, o sistema de accountability (responsabilização de professores e gestores pelo desempenho dos estudantes) e o programa de escolha por muitos anos, mas as evidências acumuladas nesse período sobre os efeitos de todas essas políticas me fizeram repensar. Não podia mais continuar apoiando essas abordagens. O ensino não melhorou e identificamos apenas muitas fraudes no processo.
Em sua opinião, o que deu errado com os programas No Child Left Behind e Accountability?
O No Child Left Behind não funcionou por muitos motivos. Primeiro, porque ele estabeleceu um objetivo utópico de ter 100% dos estudantes com proficiência até 2014. Qualquer professor poderia dizer que isso não aconteceria - e não aconteceu. Segundo, os Estados acabaram diminuindo suas exigências e rebaixando seus padrões para tentar atingir esse objetivo utópico. O terceiro ponto é que escolas estão sendo fechadas porque não atingiram a meta. Então, a legislação estava errada, porque apostou numa estratégia de avaliações e responsabilização, que levou a alguns tipos de trapaças, manobras para driblar o sistema e outros tipos de esforços duvidosos para alcançar um objetivo que jamais seria atingido. Isso também levou a uma redução do currículo, associado a recompensas e punições em avaliações de habilidades básicas em leitura e matemática. No fim, essa mistura resultou numa lei ruim, porque pune escolas, diretores e professores que não atingem as pontuações mínimas.
Qual é o papel das avaliações na educação? Em que elas contribuem? Quais são as limitações?
Avaliações padronizadas dão uma fotografia instantânea do desempenho. Elas são úteis como informação, mas não devem ser usadas para recompensas e punições, porque, quando as metas são altas, educadores vão encontrar um jeito de aumentar artificialmente as pontuações. Muitos vão passar horas preparando seus alunos para responderem a esses testes, e os alunos não vão aprender os conteúdos exigidos nas disciplinas, eles vão apenas aprender a fazer essas avaliações. Testes devem ser usados com sabedoria, apenas para dar um retrato da educação, para dar uma informação. Qualquer medição fica corrompida quando se envolve outras coisas num teste.
Na sua avaliação, professores também devem ser avaliados?
Professores devem ser testados quando ingressam na carreira, para o gestor saber se ele tem as habilidades e os conhecimentos necessários para ensinar o que deverá ensinar. Eles também devem ser periodicamente avaliados por seus supervisores para garantir que estão fazendo seu trabalho.
E o que ajudaria a melhorar a qualidade dos professores?
Isso depende do tipo de professor. Escolas precisam de administradores experientes, que sejam professores também, mais qualificados. Esses profissionais devem ajudar professores com mais dificuldades.
Com base nos resultados da política educacional americana, o que realmente ajuda a melhorar a educação?
As melhores escolas têm alunos que nasceram em famílias que apoiam e estimulam a educação. Isso já ajuda muito a escola e o estudante. Toda escola precisa de um currículo muito sólido, bastante definido, em todas as disciplinas ensinadas, leitura, matemática, ciências, história, artes. Sem essa ênfase em um currículo básico e bem estruturado, todo o resto vai se resumir a desenvolver habilidades para realizar testes. Qualquer ênfase exagerada em processos de responsabilização é danosa para a educação. Isso leva apenas a um esforço grande em ensinar a responder testes, a diminuir as exigências e outras maneiras de melhorar a nota dos estudantes sem, necessariamente, melhorar a educação.
O que se pode aprender da reforma educacional americana?
A reforma americana continua na direção errada. A administração do presidente Obama continua aceitando a abordagem punitiva que começamos no governo Bush. Privatizações de escolas afetam negativamente o sistema público de ensino, com poucos avanços de maneira geral. E a responsabilização dos professores está sendo usada de maneira a destruí-los.
Quais são os conceitos que devem ser mantidos e quais devem ser revistos?
A lição mais importante que podemos tirar do que foi feito nos Estados Unidos é que o foco deve ser sempre em melhorar a educação e não simplesmente aumentar as pontuações nas provas de avaliação. Ficou claro para nós que elas não são necessariamente a mesma coisa. Precisamos de jovens que estudaram história, ciência, geografia, matemática, leitura, mas o que estamos formando é uma geração que aprendeu a responder testes de múltipla escolha. Para ter uma boa educação, precisamos saber o que é uma boa educação. E é muito mais que saber fazer uma prova. Precisamos nos preocupar com as necessidades dos estudantes, para que eles aproveitem a educação.
Fonte: IHU, 02/08/2010.

água: um direito à vida

Finalmente, água é direito humano

por Roberto Malvezzi


[EcoDebate] Dia 28 de Julho de 2010 a água potável e o saneamento ambiental foram reconhecidos pela ONU como um direito humano. Uma aberração necessária para os tempos atuais.
Muito dessa conquista se deve à Bolívia. Desde a “Guerra pela água de Cochabamba”, quando uma multidão ocupou as ruas da cidade e retomou o serviço público de água das mãos de uma transnacional, criou-se na Bolívia um bloco de forças que seria decisivo para a chegada de Evo Morales ao poder. Evo criou o Ministério das Águas e nomeou Pablo Solón como ministro, agora embaixador junto à ONU. Foi ele quem apresentou a proposta de resolução na ONU, ratificada por vários países, finalmente aprovada com muitas abstenções.
Mas a luta não foi só Boliviana. Aqui no Brasil temos insistido nessa questão desde a Campanha da Fraternidade da Água de 2004. Desde então, várias Igrejas, ONGS, Movimentos Sociais, tem feito essa luta no Brasil e articuladamente pelo mundo afora.
Porém, reconhecer o direito é apenas um passo. Torná-lo efetivo para um bilhão de pessoas que não tem acesso à água potável ao redor do mundo, ou aos 2,6 bilhões que não tem acesso ao saneamento, é um desafio monumental e sombrio. A crise da água se alastra pelo seu sobre uso no mundo inteiro, particularmente na agricultura irrigada, além da poluição e depredação de mananciais de superfície e subterrâneos.
O Brasil é um dos países mais ricos em água no globo terrestre e todos os dias chegam novas notícias, como a descoberta do Aquífero Alter do Chão, no subsolo amazônico, maior que o Guarani. Portanto, temos água em abundância. Não precisávamos ficar na retranca, lutando ao lado dos que sempre combateram o direito à água. O Brasil sempre foi uma vergonha nos Fóruns Mundiais da Água, aliando-se ao mundo das transnacionais e governos que querem fazer da água apenas uma mercadoria.
Enfim, uma boa nova e um desafio oceânico pela frente.
.
Roberto Malvezzi (Gogó), Assessor da Comissão Pastoral da Terra – CPT, é articulista do EcoDebate.

em qualquer lugar

Quantos Haitis?
por José Saramago
No Dia de Todos os Santos de 1755 Lisboa foi Haiti. A terra tremeu quando faltavam poucos minutos para as dez da manhã. As igrejas estavam repletas de fiéis, os sermões e as missas no auge… Depois do primeiro abalo, cuja magnitude os geólogos calculam hoje ter atingido o grau 9 na escala de Richter, as réplicas, também elas de grande potência destrutiva, prolongaram-se pela eternidade de duas horas e meia, deixando 85% das construções da cidade reduzidas a escombros.
Segundo testemunhos da época, a altura da vaga do tsunami resultante do sismo foi de vinte metros, causando 600 vítimas mortais entre a multidão que havia sido atraída pelo insólito espectáculo do fundo do rio juncado de destroços dos navios ali afundados ao longo do tempo. Os incêndios durariam cinco dias. Os grandes edifícios, palácios, conventos, recheados de riquezas artísticas, bibliotecas, galerias de pinturas, o teatro da ópera recentemente inaugurado, que, melhor ou pior, haviam aguentado os primeiros embates do terramoto, foram devorados pelo fogo. Dos 275 mil habitantes que Lisboa tinha então, crê-se que morreram 90 mil. Conta-se que à pergunta inevitável “E agora, que fazer?”, o secretário de Estrangeiros Sebastião José de Carvalho e Melo, que mais tarde viria a ser nomeado primeiro-ministro, teria respondido “Enterrar os mortos e cuidar dos vivos”. Estas palavras, que logo entraram na História, foram efectivamente pronunciadas, mas não por ele. Disse-as um oficial superior do exército, desta maneira espoliado do seu haver, como tantas vezes acontece, em favor de alguém mais poderoso.
A enterrar os seus cento e vinte mil ou mais mortos anda agora o Haiti, enquanto a comunidade internacional se esforça por acudir aos vivos, no meio do caos e da desorganização múltipla de um país que mesmo antes do sismo, desde gerações, já se encontrava em estado de catástrofe lenta, de calamidade permanente. Lisboa foi reconstruída, o Haiti também o será. A questão, no que toca ao Haiti, reside em como se há de reconstruir eficazmente a comunidade do seu povo, reduzido não só à mais extrema das pobrezas como historicamente alheio a um sentimento de consciência nacional que lhe permitisse alcançar por si mesmo, com tempo e com trabalho, um grau razoável de homogeneidade social. De todo o mundo, de distintas proveniências, milhões e milhões de euros e de dólares estão sendo encaminhados para o Haiti. Os abastecimentos começaram a chegar a uma ilha onde tudo faltava, fosse porque se perdeu no terramoto, fosse porque nunca lá existiu.
Como por acção de uma divindade particular, os bairros ricos, em comparação com o resto da cidade de Porto Príncipe, foram pouco afectados pelo sismo. Diz-se, e à vista do que aconteceu no Haiti parece certo, que os desígnios de Deus são inescrutáveis. Em Lisboa as orações dos fiéis não puderam impedir que o tecto e os muros das igrejas lhes caíssem em cima e os esmagassem. No Haiti, nem mesmo a simples gratidão por haverem salvo vidas e bens sem nada terem feito para isso, moveu os corações dos ricos a acudir à desgraça de milhões de homens e mulheres que não podem sequer presumir do nome unificador de compatriotas porque pertencem ao mais ínfimo da escala social, aos não-ser, aos vivos que sempre estiveram mortos porque a vida plena lhes foi negada, escravos que foram de senhores, escravos que são da necessidade.
Não há notícia de que um único haitiano rico tenha aberto os cordões ou aliviado as suas contas bancárias para socorrer os sinistrados. O coração do rico é a chave do seu cofre-forte. Haverá outros terramotos, outras inundações, outras catástrofes dessas a que chamamos naturais. Temos aí o aquecimento global com as suas secas e as suas inundações, as emissões de CO2 que só forçados pela opinião pública os governos se resignarão a reduzir, e talvez tenhamos já no horizonte algo em que parece ninguém querer pensar, a possibilidade de uma coincidência dos fenómenos causados pelo aquecimento com a aproximação de uma nova era glacial que cobriria de gelo metade da Europa e agora estaria dando os primeiros e ainda benignos sinais. Não será para amanhã, podemos viver e morrer tranquilos. Mas, di-lo quem sabe, as sete eras glaciais por que o planeta passou até hoje não foram as únicas, outras haverá.
Entretanto, olhemos para este Haiti e para os outros mil Haitis que existem no mundo, não só para aqueles que praticamente estão sentados em cima de instáveis falhas tectónicas para as quais não se vê solução possível, mas também para os que vivem no fio da navalha da fome, da falta de assistência sanitária, da ausência de uma instrução pública satisfatória, onde os factores propícios ao desenvolvimento são praticamente nulos e os conflitos armados, as guerras entre etnias separadas por diferenças religiosas ou por rancores históricos cuja origem acabou por se perder da memória em muitos casos, mas que os interesses de agora se obstinam em alimentar.
O antigo colonialismo não desapareceu, multiplicou-se numa diversidade de versões locais, e não são poucos os casos em que os seus herdeiros imediatos foram as próprias elites locais, antigos guerrilheiros transformados em novos exploradores do seu povo, a mesma cobiça, a crueldade de sempre. Esses são os Haitis que há que salvar. Há quem diga que a crise económica veio corrigir o rumo suicida da humanidade. Não estou muito certo disso, mas ao menos que a lição do Haiti possa aproveitar-nos a todos. Os mortos de Porto Príncipe foram fazer companhia aos mortos de Lisboa. Já não podemos fazer nada por eles. Agora, como sempre, a nossa obrigação é cuidar dos vivos.
Esta entrada foi publicada em Fevereiro 8, 2010 às 9:52 pm e está arquivada em O Caderno de Saramago.

direitos

... do Homem
“tenho o direito a ser igual sempre que a diferença me inferioriza; e tenho o direito a ser diferente sempre que a igualdade me descaracteriza” (Boaventura de Sousa Santos)

na tela ou dvd

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  • A Árvore da Vida
  • A Bússola de Ouro
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  • A Endemoniada
  • A Espada e o Dragão
  • A Fita Branca
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  • A Ilha do Medo
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  • A Invenção de Hugo Cabret
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  • A Pele do Desejo
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  • A Praia
  • A Prostituta e a Baleia
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  • A Rainha
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