Na
Antiguidade, o labor exercia-se na oikia ou casa, onde se reconhecia o
governo de um só; era o reino da necessidade, ligado às exigências da condição
animal do homem, com alimentar-se, repousar, procriar. Era, portanto, a esfera
privada (de privus, estar privado
de), em que o homem, como animal laborans,
buscava os meios necessários à sobrevivência. O labor tinha a ver com o
processo ininterrupto da produção de bens de consumo, isto é, daqueles bens que
eram integrados ao corpo após a sua produção e que não tinha permanência no
mundo. Na casa, o anseio de sobrevivência dominava de tal forma que a vida era
limitada ao seu próprio processo biológico.
Os
cidadãos tinham o privilégio de libertar-se dessa condição, exercendo na polis sua atividade. Assim, só os
cidadãos exerciam a ação. O labor era visto com desprezo. Arendt (2001, p.91)
declara:
O desprezo pelo labor,
originalmente resultante da acirrada luta do homem contra a necessidade e de uma
impaciência não menos forte em relação a todo esforço que não deixasse qualquer
vestígio, qualquer monumento, qualquer grande obra digna de ser lembrada
generalizou-se à medida em que as exigências da vida na polis consumiam cada vez mais o tempo dos cidadãos [...]
O
governo de um só, típico da esfera privada, era incompatível com a esfera
pública. Nela se reconhecia o governo de muitos. O cidadão era visto como um
igual entre iguais e, na esfera pública, sua atividade era fruto de uma
pluralidade.
Entre
a ação e o labor se achava o trabalho, dominado pela relação meio e fim, com
objetivo previsível à criação do bem de uso – produto inconsumível. Ao
contrário do labor, esse produto adquire permanência no mundo. “Em outras
palavras, contra a subjetividade dos homens ergue-se a objetividade do mundo
feito pelo homem”.[1] Conforme
sintetiza Arendt (2001, p.15), distinguindo e caracterizando cada uma das
atividades marcantes do homem:
O labor é a atividade que
corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento
espontâneo, metabolismo e eventual declínio tem a ver com as necessidades
vitais produzidas pelo labor no processo da vida. A condição humana do labor é
a própria vida.
O trabalho é a atividade
correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não
necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade
não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo “artificial” de
coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas
fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a
sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do
trabalho é a mundanidade.
A ação, única atividade que
se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria,
corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o
Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana
tem alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a
condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de
toda vida política. Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político
que conhecemos – empregava como sinônimas as expressões “viver” e “estar entre
os homens” (inter homines esse), ou
“morrer” e “deixar de estar entre os homens” (inter homines esse desinere).
Adeodato
(1989, p.119), tratando da diferença entre labor e trabalho, afirma verbis:
Através da fabricação o ser
humano se converte em homo faber e
adquire suas características especificas, já que enquanto meramente trabalha
ele nada mais é que o animal mais desenvolvido do planeta. Então, o primeiro
aspecto essencial do homo faber é
produzir objetos que, juntos, constituem o mundo humano.
A vita
activa vinculada ao trabalho – atividade do homo faber -, relaciona-se diretamente à destruição do meio
ambiente e à criação de novo ambiente. Tal análise perpassa toda a obra
“Condição humana” de Arendt (2001, p.149-180), embora encontre especial ênfase
no Capitulo IV – Trabalho. Conforme destaca Arendt (2001), no trabalho há
sempre um elemento de violência à natureza. A transformação dos recursos
consiste em reificação.[2]
O animal laborans que, com o próprio corpo e a ajuda de animais
domésticos, nutre o processo da vida, pode ser o amo e senhor de todas as
criaturas vivas, mas é ainda servo da natureza e da terra; só o homo faber se porta como amo e senhor da
terra. Como a sua produtividade vista à imagem de um Deus Criador – de sorte
que, enquanto Deus cria ex nihilo, o homem cria a partir de
determinada substância -, a produtividade humana, por definição, resultaria
fatalmente numa revolta prometéica, pois só pode construir um mundo humano após
destruir parte da natureza criada por Deus (ARENDT: 2001, p.15).
A
sensação da violência de transformação da Natureza coloca o Homem na posição de
ser supremo da criação e não de mera criatura servil. O trabalho passa a gerar
satisfação, ao contrário do labor que produz desprezo (ARENDT: 2001, p.153).
Outro
aspecto destacado refere-se à durabilidade das coisas feitas pelo homo faber. Essa durabilidade permite
que as coisas do mundo tenham uma “relativa independência dos homens que as
produziram e as utilizam, a ‘objetividade’ que os faz resistir, ‘obstar’ e
suportar, pelo menos durante algum tempo, as vorazes necessidades de seus
fabricantes e usuários” (ARENDT, 2001, p.150).
O homo faber é o construtor do mundo; por
isso, a condição da existência humana que corresponde ao trabalho é a
mundanidade. Conforme Arendt (2001, p.152), a palavra “faber” relaciona-se com
a palavra latina facere, no sentido
de produção. O animal laborans não
afeta de forma significativa a Natureza; já o homo faber, sim.
A
reificação, termo costumeiramente usado por Arendt (2001, p.156), destaca o
fato de que o homem dissocia o produzir, que lhe é próprio, do produto, de tal
modo que o pode conhecer, tornando-o objeto da sua consciência:
[...] o labor também produz
para o fim de consumo, mas como esse fim, a coisa a ser consumida, não tem
permanência mundana dos produtos do trabalho, o fim do processo não é
determinado pelo produto final e sim pela exaustão do “labor power”, enquanto que, por outro lado, os próprios produtos
imediatamente voltam a ser meios de subsistência e reprodução do “labor power”. No processo de fabricação,
ao contrário, o fim é indubitável: ocorre quando algo inteiramente novo, com
suficiente durabilidade para permanecer no mundo como unidade independente, é
acrescentado ao artifício humano.
Conforme
assinala Arendt (2001, p.156), no processo do homo faber há a
instrumentalização da Natureza e do Mundo, na clara distinção entre meios e
fins:
A coisa fabricada é um
produto final no duplo sentido de que o processo de produção termina nela (“o
processo desaparece no produto”, como dizia Marx), e de que é apenas um meio
para produzir esse fim.
O
trabalho, portanto é inteiramente dominado pela categoria de meios e fins. O
trabalho se distingue das outras atividades da vita activa porque tem um fim definido e previsível, enquanto a
ação, embora tenha um começo, não tem um fim previsível. O labor, por sua vez,
“prezo, à engrenagem do movimento cíclico do processo vital do corpo, não tem
começo nem fim” (ARENDT, 2001, p.156). Daí a grande confiabilidade do trabalho;
o processo de fabricação não é irreversível. Nesse sentido, Arendt afirma que:
O homo faber é realmente amo
e senhor, não apenas porque é o senhor ou se arrogou no papel de senhor de toda
a natureza, mas porque é o senhor de si mesmo e de seus atos. Isto não se
aplica ao animal laborans, sujeito às necessidades de sua existência, nem ao
homem de ação, que sempre depende de seus semelhantes. A sós, com a imagem do
futuro produto, o homo faber pode produzir livremente; e também
a sós, contemplando o trabalho de suas mãos, pode destruí-lo livremente.
O homo faber reduz a “natureza e o mundo a
simples meios, privando-os de sua dignidade independente”. A verdade é que o
significado do mundo, meio para a construção de um novo mundo, acaba
tornando-se um objeto sem valor, pela infindável cadeia de meios e fins que se
forma no processo de fabricação:
“Se o homem-usuário é o mais
alto de todos os fins, “a medida de todas as coisas”, então não somente a
natureza, que o homo faber vê como
material quase “sem valor” sobre o qual ele trabalha, mas até mesmo as coisas “valiosas”
tornam-se simples meios, e, com isto, perdem seu próprio “valor” intrínseco”. (ARENDT:
2001, p.169).
Na
visão antropocêntrica da Natureza, a mesma é instrumentalizada, perdendo o seu
valor intrínseco, pois passa a ser sempre meio. Arendt (2001, p.169) afirma:
Na medida em que é homo
faber, o homem “instrumentaliza”; e este emprego das coisas como instrumentos
implica em rebaixar todas as coisas à categoria de meios e acarreta a perda do
seu valor intrínseco e independente; e chega um ponto em que não somente os
objetos da fabricação, mas também “a terra em geral e todas as forças da
natureza” - que evidentemente foram criadas sem o auxílio do homem e possuem
uma existência independente do mundo humano – perdem seu “valor por não serem
dotadas de reificação resultante do trabalho”.
Conforme
destaca Arendt, esse problema da instrumentalização do mundo, não se constitui
em novidade contemporânea, já havendo tal preocupação no berço da filosofia
ocidental – a Grécia. Citando o famoso argumento de Platão contra o dito de
Protágoras[3], de que – o
homem é a medida de todas as coisas de uso, da existência das que existem e da
inexistência das que não existem. Arendt (2001, p.11) ressalta que Platão “percebeu
desde logo que quando se faz do homem a medida de todas as coisas de uso
está-se correlacionando o mundo com o homem-usuário e fazedor de instrumentos
[...] E como é da natureza do homem-usuário e fabricante de instrumentos ver em
tudo um meio para um fim – ver em cada árvore determinado potencial de madeira
-, isto, fatalmente significaria fazer do homem não só a medida de todas as
coisas cuja existência dele depende, mas de literalmente tudo o que existe”.
[1] ARENDT, Hannah. A
condição humana . Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001.
[2] “A
fabricação, que é o trabalho do homo faber,
consiste em reificação.
A solidez, inerente a todas as coisas, até mesmo às mais
frágeis, resulta do material que foi trabalhado; mas esse mesmo material não é
simplesmente dado e disponível, como os frutos do campo e das árvores, que
podemos colher ou deixar em paz sem que com isso alteremos o reino da natureza.
O material já é um produto das mãos humanas que o retiraram de sua natural
localização, seja matando um processo vital, como no caso da árvore que tem que
ser destruída para que se obtenha a madeira [...] O trabalho de fabricação
propriamente dito é orientado por um modelo segundo o qual se constrói o
objeto” (ARENDT: 2001, p.152-153).
[3] Protágoras
“iniciou uma de suas obras com as seguintes palavras: ‘O homem é a medida de
todas as coisas, das coisas que são que elas são, das coisas que não são que
elas são’”. (LAERTIOS, 1977, p.264). Essa visão humanista foi retomada
intensamente no Iluminismo, neste sentido, vale a pena lembrar o que disse o ‘primeiro
dos modernos e o último dos antigos’, Bacon, que: “Se procuramos as causas
finais, o homem pode ser visto como o centro do mundo, de tal forma que se o
homem fosse retirado do mundo todo o resto pareceria extraviado”.
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