A demonização da classe trabalhadora britânica
por Marcelo Justo
Londres - A demonização
da classe trabalhadora britânica tem uma sigla indecifrável: “Chavs”. Ninguém
sabe o que significa, mas em páginas web, em programas de televisão e em
análises midiáticas populares ou “sérias”, serve para estigmatizar os jovens
que vivem em moradias municipais e têm um tipo específico de sotaque e aspecto
físico. “Na realidade é uma maneira oblíqua de definir o conjunto da classe
trabalhadora e responsabilizar os pobres de ser pobres”, escreve Owem Jones,
autor de “Chavs”, um livro chave sobre o tema. Em meio à atual crise, a
justificativa cai como anel no dedo. A pobreza não se deve aos problemas da economia,
mas às falhas do próprio indivíduo ou de sua família: aos lares deslocados, à
falta de ambição ou inteligência.
As três décadas de neoliberalismo, inauguradas por Margaret
Thatcher com uma drástica desindustrialização nos anos 80, marcaram o triunfo
de um individualismo que afundou o sistema de valores solidários da classe
trabalhadora. Em 1979 havia sete milhões de operários com um forte peso de
mineiros, portuários e do setor automotivo. Hoje há dois milhões e meio, as
minas desapareceram e só a empresa automotiva, em mãos estrangeiras, está
crescendo.
Neste vazio de identidade, de uma classe operária em retirada,
surgem os “chavs”. Objeto de escárnio na imprensa ou de piada em programas de
televisão e cenas de classe média, os “chavs” são apresentados como parasitas
encravados no tecido social. Segundo o estereotipo são desempregados crônicos,
adolescentes que engravidam para receber auxílio-maternidade, responsáveis pelo
déficit fiscal e moral, virtuais delinquentes com um coeficiente de inteligência
pelo chão e uma família disfuncional. “O que chamávamos de respeitável classe
trabalhadora praticamente desapareceu. Hoje a classe trabalhadora na verdade
não trabalha nada e está mantida pelo estado de bem-estar”, assinala o
comentarista conservador Simom Heffer.
O estereótipo ajudou a justificar o draconiano ajuste fiscal da
coalizão conservadora liberal-democrata encabeçada pelo primeiro ministro David
Cameron, mas também tem servido de base para propostas reacionárias, de limpeza
social. Em 2008, o vereador conservador, Johm Ward, propôs a esterilização
obrigatória das pessoas que tiveram um segundo ou terceiro filho enquanto
recebiam benefícios sociais, medida apoiada com entusiasmo pelos leitores do
jornal conservador “Daily Mail”, escandalizados com “estes aproveitadores e
sem-vergonhas que estão afundando o país”.
A obsessão classista e o estereótipo levaram a confusões
tragicômicas. Em um panfleto para as eleições de 2010, os conservadores
asseguraram que em algumas zonas pobres “a gravidez de adolescentes menores de
18 anos é de 54 %”. Na verdade era 5,4%, cifra que representava uma queda com
respeito ao que acontecia durante o Thatcherismo. No departamento de imprensa
conservador ninguém percebeu o erro tipográfico. Apesar de se referir a mais da
metade das menores de 18 anos dessas zonas, o fenômeno já havia sido
naturalizado pelo preconceito.
Uma das curiosidades é que se usa o término Chavs com certeza de
conceito sociológico, mesmo que ninguém possa dizer com certeza o que significa
o acrônimo. O dicionário de oxford na internet define o “Chav” como “um jovem
de classe baixa de conduta estridente, que anda em grupo e usa roupas de marca,
reais ou imitadas”. Outro dicionário, de 2005, o define como “jovem de classe
trabalhadora que se veste com roupa esportiva” Um mito popular o faz passar
como “Council Housed and Violent” (violento que vive em casas municipais).
Esta vacuidade permite englobar amplos setores sociais. Em um
livro que já está na nona edição e vendeu mais de 100 mil exemplares, “The
Little book of Chavs”, se identificam os típicos trabalhos “chavs”. A
“chavette” – mulher chav – é aprendiz de cabeleireiro, faxineira ou camareira
enquanto os homens são guardas de segurança ou mecânicos e encanadores
“cowboys” (“especialistas” em reparações que destroem tudo). Segundo o livro,
“chavs” de ambos os sexos costumam ser 'caixas' nos supermercados ou empregados
de lanchonetes.
Esta tipificação ocupacional corre paralela às mudanças que a
classe trabalhadora britânica viveu nos últimos 30 anos. Hoje um quarto da
força de trabalho tem uma jornada precária e mais de um milhão e meio se
encontra em empregos temporários. O salário médio de 170 mil cabeleireiras
(“chavettes”) está pouco acima da metade da média salarial da população, medida
que define a linha de pobreza no Reino Unido. Em cidades que alguma vez giraram
em torno à atividade manufatureira ou mineira, os escassos trabalhos que
existem são em supermercados ou farmácias. “Não só são trabalhos mais
inseguros. Estão muito pior pagos.
Quando a Rover faliu em Birmingham com a perda de 6500 postos de
trabalho, a remuneração média que receberam aqueles que conseguiram trabalho
era um quinto menor do que ganhavam na automotiva”, aponta Owem Jones.
O paradoxo é que em uma sociedade tão classista como a britânica,
na qual o sotaque e a universidade (Oxford, Cambridge) definem o futuro de uma
pessoa, conservadores e novos trabalhistas propagam o mito de que hoje todos os
britânicos são de “classe média”, salvo essa pequena subclasse disfuncional e
patológica, para a qual falta ambição ou fibra moral: os Chavs. Em 1910 Winstom
Churchill, então ministro do interior do Partido trabalhista propôs a
esterilização de mais de 100 mil pessoas que considerava “débeis mentais e
degenerados morais” para salvar o país da decadência. Um século mais tarde a
decadência continua ameaçando o Reino Unido, mas a fórmula é mais “civilizada”:
um estigma que nega a existência e o significado social da classe trabalhadora.
Tradução: Libório Junior
Fonte: Carta Maior | Internacional,
20/01/2012
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