O florescente mercado das ‘desordens psicológicas’
Surgido há 50 anos, o uso de
antipsicóticos, a despeito de seus pobres resultados, tornou-se maciço na
medicina psiquiátrica norte-americana. Na população geral, 1.100 pessoas (850
adultos e 250 crianças) se unem todos os dias à lista dos destinatários da
ajuda financeira federal por motivo de problema mental severo
por
Olivier Appaix, no Le Monde Diplomatique Brasil
Criada em 2008, em Denver
(Colorado), a empresa de exames médicos de imagem CereScan pretende
diagnosticar os problemas mentais por meio de imagens do cérebro. Um documentário
exibido no canal Public Broadcasting Service (PBS)1 mostra seu funcionamento. Sentado
entre os pais, um menino de 11 anos espera, silencioso, o resultado da IRM2 de seu cérebro. A assistente social
pergunta se ele está nervoso. Não, ele responde. Ela mostra então as imagens à
família: “Vocês estão vendo? Aqui está vermelho, e aqui, alaranjado. Mas
deveria estar verde e azul”. Tal cor sinaliza depressão; outra, os problemas
bipolares ou as formas patológicas da angústia.
A CereScan satisfaz as
demandas crescentes de uma sociedade que parece suportar cada vez menos os
sinais de desvio. A empresa afirma que um em cada sete norte-americanos com
idade entre 18 e 54 anos sofre de uma “‘desordem’ ou ‘problema’ patológico
ligado à angústia”, ou seja, 19 milhões de pessoas.3Um mercado para
o qual ela vê um futuro brilhante: CereScan prevê abrir vinte novos centros nos
Estados Unidos. Antes de partir para a conquista dos cérebros do resto do
mundo?
As normas que definem o
comportamento esperado não são claramente estabelecidas, mas os critérios de
diagnóstico dos desvios ou transtornos considerados patológicos − como o
“déficit de atenção” − são, esses sim, muito precisamente enunciados e
classificados pelo Manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais (DSM,
na sigla em inglês). Referência absoluta dos profissionais nos Estados Unidos,
e cada vez mais em outros lugares do mundo, esse manual permite identificar os
“transtornos patológicos” em idades cada vez menores. Nos Estados Unidos, desde
o começo dos anos 2000, 1 milhão de crianças foram diagnosticadas com
transtorno bipolar. Abaixo dos 16 mil em 1992, o número de autistas entre 6 e
22 anos passou para 293 mil em 2008, ou para 338 mil se incluirmos as crianças
de 3 a 6
anos – uma categoria de idade que passou a figurar nas estatísticas em 2000.
Na população geral, 1.100
pessoas (850 adultos e 250 crianças) se unem todos os dias à lista dos
destinatários da ajuda financeira federal por motivo de problema mental severo.
O pente fica cada vez mais fino. E, no entanto, os testes clínicos realizados
nos adultos se revelam bem pouco conclusivos quanto aos benefícios a longo
prazo da resposta farmacoterapêutica às doenças mentais. Se, em algumas
semanas, reações positivas podem aparecer (geralmente equivalentes, no entanto,
àquelas provocadas pelos placebos), os efeitos por um período mais longo
incluem alterações irreversíveis do cérebro e discinesias tardias.4
A resposta
farmacoterapêutica às doenças mentais apareceu nos anos 1950, a partir dos
trabalhos de um médico francês, Henri Laborit, sobre o paludismo, a tuberculose
e a doença do sono. No último, ele constata a “quietude eufórica” provocada
pela prometazina. Em 1951, ele qualifica de “lobotomia medicinal” a intervenção
cirúrgica que destrói as conexões do córtex pré-frontal5 inventada pelo neurologista português
Egas Moniz, Prêmio Nobel de Medicina em 1949. A utilização do primeiro antipsicótico
(nomeado mais tarde de Largactil) se espalhou rapidamente pelos asilos
psiquiátricos, depois atravessou o Atlântico, assim como a lobotomia.
Introduziu-se então a ideia de que os transtornos mentais resultam de um
desequilíbrio químico do cérebro. Por isso, os efeitos “miraculosos” do lítio e
das fórmulas que o sucederam, do Prozac (colocado no mercado em 1988) ao
Zoloft, passando pelo Zyprexa, são então exaltados pela mídia em geral ao grande
público.
A aparição dos
antipsicóticos dá aos psiquiatras, e depois ao pessoal de enfermagem e
assistência social, um status de prescritores de medicamentos dos quais eles
estavam amplamente desprovidos, marginalizando a resposta psicoterapêutica e as
outras numerosas soluções possíveis: exercício, melhor nutrição, socialização
etc. A partir de então, tem início a escalada farmacológica. O campo da
patologia é compreendido e densificado com o DSM, e a resposta farmacêutica se
intensifica, com a bênção das autoridades sanitárias.
Os laboratórios se tornaram
mestres na arte da comunicação, e na maior parte das vezes não revelam tudo o
que sabem sobre os efeitos dos remédios. A mensagem dirigida aos pais, às
crianças ou aos jovens afetados por um episódio de transtorno mental se resume
ao seguinte: “Você precisa de medicamentos como o diabético necessita de
insulina”. Tendo se beneficiado por anos da generosidade da indústria
farmacêutica, da qual ele era um dos mais fiéis promotores, o doutor Daniel Carlat
atualmente denuncia sua influência:6 “Dizem aos pacientes que eles têm um
desequilíbrio químico no cérebro, porque é preciso tornar medicinalmente
plausível a seus olhos o fato de que estão doentes. Mas sabemos que isso não
foi provado”.7
Críticos são deixados de
fora
Os estudos longitudinais
(que não são feitos pelos laboratórios) mostram que os efeitos dos
antipsicóticos param com o tempo, que as crises reaparecem, frequentemente mais
fortes, e que os sintomas se agravam, ainda mais que nos pacientes tratados com
placebos. Os profissionais concluem, com base nisso, que as doses são…
insuficientes, ou a terapia é inapropriada; passam então para algo mais forte.
Os transtornos se agravam e a deficiência se aprofunda. Milhões de pessoas nos
Estados Unidos sucumbem a essa engrenagem infernal, que se assemelha com
frequência às “lobotomias medicinais” descritas por Laborit desde 1951.
Diante dessas incômodas
constatações, laboratórios e pesquisadores não hesitam às vezes em deturpar os
testes clínicos ou a apresentação de seus resultados, ou até mesmo a mentir por
omissão. Uma equipe da Universidade do Texas publicou assim falsos resultados
sobre o medicamento Paxil, administrado em adolescentes, omitindo o grande
aumento do risco de suicídio dos pacientes estudados. Os profissionais seguiram
a linha, louvando a tolerância do medicamento pelos adolescentes.
GlaxoSmithKline, o fabricante, tinha inclusive reconhecido num documento
interno que seu remédio não valia mais que um placebo. Acusada judicialmente de
promoção fraudulenta, a empresa preferiu pagar uma indenização: um processo
implicaria o risco de macular consideravelmente sua imagem e seus lucros.8 Uma prática corrente nessa indústria,
que nisso lembra a do tabaco.
Alguns pesquisadores
demonstraram a ineficiência dos antipsicóticos ou até mesmo sua contribuição
para o aumento das taxas de suicídio das pessoas tratadas; eles foram
marginalizados.9 Em
grande parte financiados pelos laboratórios, os departamentos universitários de
psiquiatria vivem um conflito de interesses patente e correm o risco de sofrer
com o descrédito lançado sobre os medicamentos e seus fabricantes. Assim, entre
2000 e 2007, o chefe do Departamento de Psiquiatria da Escola de Medicina da
Universidade Emory (Atlanta) recebeu – sem declarar – mais de US$ 2,8 milhões
como consultor para companhias farmacêuticas, em retribuição a centenas de
conferências. Um antigo diretor do Instituto Americano de Saúde Mental (NIMH,
na sigla em inglês) recebeu US$ 1,3 milhão da GlaxoSmithKline entre 2000 e 2008
para promover os “estabilizadores de humor”. Ele também era apresentador de um
programa de rádio muito popular numa emissora de rádio pública (NPR).
Interrogado sobre essas práticas, ele respondeu ao New
York Times que “todo
mundo [na sua área] faz isso”.10 Se
a declaração das fontes de financiamento e dos valores recebidos é obrigatória,
pelo menos no caso dos cientistas, as fraudes são numerosas.
Sem remédios, resultados
melhores
Os laboratórios, e junto
com eles um bom número de médicos, encorajam um consumo cada vez mais intenso,
prolongado e diversificado de psicotrópicos e outros antipsicóticos. A Novartis
foi condenada a pagar uma multa de US$ 422,5 milhões por ter levado, entre 2000
e 2004, ao consumo de Trileptal (um remédio contra a epilepsia) para o
tratamento de transtorno bipolar e dores nervosas – indicações não aprovadas
pela Food and Drug Administration (FDA). São corriqueiras as conferências em
que médicos que prescrevem muito certo medicamento são generosamente pagos para
discorrer a seu respeito diante de uma plateia de colegas também paga para
escutar. O custo astronômico desse marketing, em última análise, repercute no
custo dos medicamentos e, portanto, no bolso dos doentes.
Como fixar as fronteiras do
que é considerado patológico? A modalidade da resposta ilustra os excessos de
um sistema de saúde que leva ao superconsumo de medicamentos e até mesmo ao
diagnóstico exagerado, com a multiplicação das categorias de “transtornos”. O
sistema encoraja, ainda por cima, um cuidado menos personalizado (o objetivo
são os “números”, principalmente nos sistemas de pagamento imediato), a
utilização de testes de diagnósticos pesados e uma resposta química automática.
No entanto, são cada vez mais numerosos os estudos longitudinais a estabelecer a
superioridade do tratamento de doenças mentais sem produtos farmacêuticos,
incluindo a esquizofrenia – exceto em casos muito minoritários e por tempo
limitado.11 A longo
prazo, o exercício, a socialização e o trabalho tornam a vida das pessoas
afetadas por transtornos mentais bem mais suportável. A ruptura do vínculo
social, a discriminação no seio da família ou da comunidade são as primeiras
causas da loucura. Estudos transculturais realizados pela Organização Mundial
da Saúde (OMS) dos anos 1970
a 1990 sobre a esquizofrenia e a depressão em todo o
mundo mostraram que as pessoas não submetidas a uma farmacoterapia seriam
beneficiadas com um “melhor estado de saúde geral” a médio e longo prazo.12
Mas os antipsicóticos
contribuíram em grande escala para o crescimento espantoso das vendas e dos
lucros das companhias farmacêuticas. Esse setor é um dos mais rentáveis dos
Estados Unidos nos últimos cinquenta anos. As legislações atuais são favoráveis
a eles. Durante a discussão do projeto de lei da reforma do sistema de saúde em
2009, US$ 544 milhões foram gastos para garantir, junto aos legisladores, os
interesses dos planos de saúde, das empresas farmacêuticas e dos fornecedores
de tratamentos. Os que ganham muito veem com maus olhos, historicamente, a
intervenção do poder público em seu território. A saúde mental representa o
primeiro lugar nos gastos com a saúde, com US$ 170 bilhões em 2009. Um número
que deve aumentar para US$ 280 bilhões em 2015.13
Paradoxalmente, se a
farmacoterapia dos transtornos mentais se massifica, centenas de milhares de
pessoas sofrendo desses problemas não são beneficiadas por nenhum tipo de
assistência: as que não têm cobertura médica (16% da população) – a reforma
iniciada por Barack Obama só vai começar de fato em 2014 – e aquelas que estão
encarceradas. Estima-se que meio milhão de detentos tenham necessidade de
ajuda, ainda mais porque o aprisionamento e as condições de encarceramento
agravam os transtornos. Mas as instituições carcerárias não estão preparadas
para isso de jeito nenhum. Uma vez em liberdade, esses presos se voltam ao uso
de drogas como forma de terapia e, num círculo vicioso, caem de novo na
delinquência.
Olivier Appaix é economista da saúde.
Ilustração: Daniel Kondo
1 The medicated child, documentário do programa Frontline, Boston , jan. 2008.
2 Sigla de imagem por
ressonância magnética. Nos Estados Unidos, uma IRM do cérebro custa de US$ 1.500 a mais de US$ 3.000
por um procedimento que dura de quarenta a sessenta minutos.
3 “Anxiety disorder”, 2009.
Disponível em: www.brainmattersinc.com
6 Daniel Carlat, Unhinged, the trouble with psychiatry. A doctor’s revelations
about a profession in crisis [Desequilibrado, o problema da psiquiatria.
Revelações de um doutor sobre uma profissão em crise], Free Press, Nova York,
2010.
7 Entrevista de Daniel
Carlat em Fresh Air, National Public Radio, 13 jul. 2010.
8 “When drug companies hide
data” [Quando farmacêuticas escondem dados], New York Times, 6 jun. 2004. A mesma empresa acaba
de pagar US$ 3 bilhões para encerrar uma série de processos
relativos a seus produtos, entre eles o Paxil. Cf. New York Times, 3 nov. 2011.
relativos a seus produtos, entre eles o Paxil. Cf. New York Times, 3 nov. 2011.
9 Robert Whitaker, Anatomy of an epidemic. Magic bullets, psychiatric
drugs, and the astonishing rise of mental illness in America [Anatomia de uma epidemia. Balas mágicas, drogas
psiquiátricas e o impressionante crescimento de doenças mentais nos Estados
Unidos], Crown, Nova York, 2010, p.304-307.
10 New York Times, 22 nov. 2008.
11 Robert Whitaker, op. cit.
12
Estudos citados por Whitaker. O estado de saúde segundo a OMS inclui a saúde
física, mental e social.
13 Centers for Medicare and Medicaid Services (www.cms.gov).
13 Centers for Medicare and Medicaid Services (www.cms.gov).
Fonte: EcoDebate, 25/01/2012
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