A atividade econômica e o intercâmbio orgânico (metabolism)
Tomo a liberdade de citar um famoso ditado “a necessidade é a mãe da
invenção”, que expressa uma idéia comum, como um ponto de partida da discussão
sobre o surgimento e evolução da tecnologia dentro da sociedade capitalista
geradora de necessidades não satisfeitas pelo mercado, fica evidente que as
perspectivas de ganhos ou fama se tornam fatores essenciais como busca de
preenchimento das necessidades do proprietário do capital. “A sociedade adota a
solução se ela for compatível com seus valores e com outras tecnologias”.[1]
A compreensão da lógica imposta pelos movimentos da industrialização e
da acumulação do capital nos mostra uma outra face dessa idéia, que para uma
dada época tinha um sentido ingênuo, mas sob as intenções do mercado passou a
significar o contrário: a invenção passa a ser a mãe da necessidade. Uma
verdade que solapou e invadiu os continentes ao descobrir que as invenções em
suas utilizações incluem a maioria das inovações tecnológicas que alavancaram o
crescimento das economias nacionais através do desenvolvimento da atividade
industrial e dos mercados. Para cada avanço, novas necessidades surgiram, e
continuam a serem incentivadas pelas inovações e técnicas de marketing objetivando
unicamente a conquista de novas e variadas “insatisfações” dos consumidores,
criando utilidades, usos diversos e invariavelmente fúteis, condição necessária
para a ampliação dos mercados e simultaneamente uma maior escala de produção
necessária ao apetite insaciável do capital.
Os
objetivos do trabalho dependem, por um lado, das necessidades e desejos
subjetivos do homem e, por outro, das leis do material de que dispõe para
atingir a satisfação. No entanto, nem o sujeito é o princípio de seus próprios
desejos e necessidades, nem as leis da natureza são imanentes e estáticas, nem
a ciência é em si mesma uma via de libertação. Marx apresenta o conhecimento do
processo histórico que condiciona o desejo humano, para transformá-lo
em uma demanda crescente por mercadorias, e que opera sobre o desejo de saber
que determina o processo de produção de conhecimentos científicos; não para
submeter a matéria e a natureza aos “objetivos do homem”, mas sim à lógica do
capital. A práxis no mundo moderno não está guiada por processos de cognição
nem pela emergência de uma consciência do mundo dentro de uma fenomenologia
biologista, mas se inscreve dentro do ordenamento ontológico e epistemológico
que configura uma racionalidade social determinada.[2]
“[...] Na dialética da história,
o capitalismo rompe com a unidade entre a sociedade e a natureza; a sociedade
se separa de sua organicidade originária e o modo de produção instaura a
racionalização do domínio da natureza” (LEFF: 2006, 56).
Para
construir um mundo próprio, a vida moderna precisa repousar sobre um
dispositivo econômico peculiar, coerente na subordinação, sujeição ou subsunção
do processo “social-natural” de reprodução da vida humana sob um processo
“social-artificial” apenas transitoriamente necessário: o da reprodução do
valor mercantil das coisas na modalidade de uma “valorização do valor” ou
“acumulação do capital”. Na base da vida moderna, atua, de maneira
incansavelmente repetida, um mecanismo que subordina sistematicamente a “lógica
do valor de uso”, o sentido espontâneo da vida concreta, do trabalho e do
desfrute humanos, da produção e do consumo dos “bens terrenos”, e “lógica”
abstrata do “valor” como substância cega e indiferente a toda concreção e
apenas necessitada de validar-se com uma margem de lucro em qualidade de “valor
de troca”. É a realidade implacável da alienação, da submissão do reino da
vontade humana à hegemonia da “vontade” puramente “coisificada” do mundo das
mercadorias habitadas pelo valor econômico capitalista (Echeverria, 1998: 53). [3]
O modo
de produção capitalista submete a natureza à lógica do mercado e às normas de
produção de mais-valia, ao mesmo tempo que as potencialidades da natureza e do
ser humano se convertem em objetos da apropriação econômica. Mas isso não anula
os processos organizativos e produtivos da natureza e os sentidos das culturas.
O fenômeno da vida e os processos neguentrópicos de organização ecológica,
dominados pela racionalidade da produção capitalista, estão latentes, esperando
ser incorporados a uma nova racionalidade produtiva.[4]
A
revolução científico-tecnológica, desencadeada pela dinâmica do capital, levou
a dissolução do principio que deu fundamento à teoria do valor, quer dizer, o
trabalho simples e direto como determinante quantitativo da produção de mercadorias.
Este fato tem duas repercussões fundamentais para o pensamento marxista. A
primeira se refere à relação orgânica entre teoria e práxis, entre
racionalidade e ação social; a segunda, à especificidade epistemológica da
ciência da história. As condições de sustentabilidade da produção apresentam a
necessidade de se dar novo significado aos conceitos do materialismo histórico
para entender as determinações do processo de produção e de reprodução do
capital na inovação e na aplicação de conhecimentos científicos e tecnológicos,
assim como para poder conceituar a função produtiva do trabalho intelectual e
da natureza no processo de produção-transformação do capital.
Mas,
mesmo gerando esses avanços teóricos[5] para integrar as funções manuais e
intelectuais do trabalho produtivo às potencialidades produtivas da natureza, o
condicionamento social da produção de conhecimentos não poderá reduzir-se às
determinações que lhe são impostas pela formação cada vez mais indeterminada do
valor no processo de reprodução ampliada e ecologizada do capital. O poder
explicativo do conceito de valor e da teoria da produção nas condições de
produção de conhecimentos vai se esfumando, não obstante o fato de que as leis
científicas e os meios tecnológicos sejam de fato os maiores suportes de
desenvolvimento das forças produtivas.[6]
O
conhecimento das determinações socioeconômicas da produção de conhecimentos em
sua função produtiva é deslocado, assim, para o condicionamento histórico a
respeito da produção de conhecimentos em sua função teórica de apreensão do
real e na forma como o conhecimento transforma o mundo. Isso haverá de levar à
indagação sobre a construção da teoria econômica e da racionalidade que dali se
desprende em relação ao conhecimento e à transformação do mundo real. Esta
indagação, fundamental para se compreender a crise ambiental como uma crise do
conhecimento, ultrapassa as capacidades de compreensão que o materialismo
histórico pode aportar e haverá de levar à sua desconstrução para construir uma
nova racionalidade social e produtiva.[7]
As
práticas sociais transformam a realidade social e modificam dessa forma suas
leis internas. Por isso não existem leis absolutas que comandem a práxis, mas
esta não se realiza alheia às determinações e condições que configuram uma
racionalidade social. A revolução científico-tecnológica está operando uma
transformação do processo de trabalho e intervindo na natureza. As forças da
natureza, magnificadas pela ciência, converteram-se nas forças predominantes da
produção da riqueza, ao mesmo tempo que o equilíbrio dos sistemas ecológicos se
apresenta como uma condição de sustentabilidade do processo econômico. A
complexidade ambiental que articula os processos de produtividade ecológica e
de inovação tecnológica e que aninha na constituição de identidades culturais e
de sentidos existenciais substitui, progressivamente, o tempo de trabalho como
determinante da produção de valores de uso e de mercadorias. A produtividade da
natureza, o desenvolvimento cientifico, o equilíbrio ecológico, a inovação
tecnológica e os valores culturais constituíram-se em condição sistêmica do
processo econômico.
A
produção e a distribuição de riqueza dependem de estratégias de produção e
apropriação do conhecimento. Esses processos naturais e cognoscitivos não são
determinados pela lei do valor. Sem dúvida, as descobertas científicas tampouco
são produzidas simplesmente, como se fossem o efeito de uma lógica interna da
ciência – do crescimento do conhecimento através da livre criação ou do
planejamento do empreendimento cientifico; pela refutação e verificação de suas
hipóteses e teorias (Popper, 1973); pela estrutura e revoluções dos “paradigmas
científicos” (Kuhn, 1970)-, nem por uma razão tecnológica (Marcuse, 1967),
independentes da dinâmica social, da pulsão de conhecer e das estratégias de
poder no saber (Foucault, 1980). A criação cientifica e a inovação tecnológica
não se convertem em novos princípios determinantes do desenvolvimento
sustentável nem fundam uma ética do conhecimento capaz de dirimir e solucionar
os conflitos em torno da apropriação produtiva da natureza. O que foi dito
anteriormente implica a necessidade de pensar e de construir uma nova
racionalidade produtiva sustentada pelos princípios da entropia e da
complexidade ambiental, integrando as formações ideológicas, a produção científica,
os saberes pessoais e coletivos, os significados culturais e as condições
“reais” da sustentabilidade ecológica.[8]
A
economia fundada no tempo de trabalho foi substituída pela economia baseada no
poder do conhecimento científico como meio de produção e instrumento de
apropriação da natureza[9]. A acumulação e
a concentração de capital já não se baseiam tão-somente na superexploração da
natureza e da mão-de-obra barata do terceiro Mundo, mas, também, em novas estratégias
de apropriação capitalista da natureza dentro da nova geopolítica do
desenvolvimento sustentável incluindo a apropriação gratuita e a pilhagem dos
recursos genéticos, a subavaliação dos bens naturais e dos serviços ambientais
e o acesso subvencionado a hidrocarbonetos e recursos hídricos que mantém uma
agricultura supercapitalizada e um planeta hiperurbanizado.[10]
A
própria dialética do modo de produção capitalista, objeto da economia política,
chega ao limite de seu poder de explicação; seus conceitos se desatam e
evapora-se seu poder explicativo. O vínculo entre o valor de uso e a demanda,
assentados na necessidade e na utilidade, e o valor de troca, fundado na
equivalência dos trabalhos e das utilidades, se dissolve, ao mesmo tempo que a
“lógica do valor de troca” se torna autônoma, configura um código geral no qual
se subsume ao ser de todas as coisas, e vai transmutando as necessidades, os
desejos e as utilidades em uma mesma substância etérea de valor, fora de todo
referente e de todo sentido. O código econômico gira vertiginosamente acima de
toda lógica e de toda razão. É o império da lei estrutural do valor sobre o
valor de uso cingido a uma significação cultural:
Esta revolução consiste em
que os dois aspectos de valor, que algumas vezes se pensou que estivessem
coerente e eternamente vinculados, como por uma lei natural, se desarticulam: o
valor referencial se nulifica em
beneficio do jogo estrutural do valor. A dimensão estrutural ganha
autonomia excluindo a dimensão referencial, estabelecendo-se sobre a morte
desta última. Terminam os referenciais da produção, da significação, do afeto,
da substância, da história, toda equivalência de conteúdos “reais” que davam
seu peso ao signo ao ancorá-lo com um certo peso de utilidade e de gravidade – sua
forma de equivalente representativo. Tudo isso permanece mesmo substituído por
outro estágio do valor, o da relatividade total, da comutatividade
generalizada, da simulação combinatória. Simulação no sentido de que agora em
diante os signos se intercambiarão entre si mesmos sem interactuar com o real
[...] A mesma operação ocorre no nível da força de trabalho e do processo de
produção: a eliminação de todas as finalidades de conteúdo da produção permite
que esta funcione como um código, e permite ao signo monetário evadir-se em uma
especulação indefinida fora de toda referência ao real da produção
(Baudrillard, 1976: 18). [11]
E,
sem dúvida, mesmo que o signo monetário pareça liberar-se de todo referente
como valor de uso e flutuar no gozo pleno de uma espetacular especulação sem
uma ancoragem real, não consegue desprender-se de seu vínculo com a natureza. O
discurso do desenvolvimento sustentável é uma das expressões mais claras desse
simulacro, mediante o qual todo o real é dessubstanciado de seu ser e ao mesmo
tempo recodificado pelo signo unitário do mercado, gerando a hipereconomização
do mundo. E, sem dúvida, o real continua resistindo e respondendo a essa falha
da teoria desde a lei limite da natureza. Das entranhas do processo econômico
continuam sendo gestados os efeitos destrutivos da natureza que haveriam de se
manifestar com o crescimento da economia global, na crise ambiental. É isso o
que gerou na teoria econômica uma preocupação com suas “externalidades” – as
condições ecológicas da produção -, buscando internalizar o que foi negado e
ignorado pela teoria acerca do mundo sobre-determinado pela estrutura
econômica, por um devenir conduzido pela idéia de progresso, por uma liberação
dependente do desenvolvimento das forças produtivas guiadas pela ciência e pela
tecnologia. O mundo objetivado pela necessidade de manter um processo crescente
de produção, guiado pelo princípio de realidade gerado pela racionalidade
tecnoeconômica, se encontra com seu Outro, com o ambiente.
[1] DIAMOND, Jared. Armas,
germes e aço. São Paulo: Record, 2004. p. 242.
[2] LEFF, Enrique. Racionalidade Ambiental: a reapropriação social da natureza. Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 53, 54.
[3] LEFF, op. cit., p. 57.
[4] LEFF, op. cit.,
p. 57.
[5] LEFF, op. cit., p. 58.
[6] LEFF, op. cit., p. 59.
[7] LEFF, op. cit., p. 59.
[8] LEFF, op. cit., p. 60.
[9]
A legitimação dos direitos de propriedade
intelectual sobre os recursos genéticos da biodiversidade e o poder de invadir
as regiões tropicais do Terceiro Mundo com produtos transgênicos expressam o
poder dessa economia ecologizada e cientificizada.
[10] LEFF, op. cit., p. 61.
[11] LEFF, op.cit., p. 63, 64.
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