Ainda sobre os riscos da desindustrialização
No ano passado, o Brasil mais importou do que exportou café
moído! Ou seja, continuamos com a velha e burra política de vender café verde
em grãos, de baixa qualidade, sem ter conseguido dar um salto à frente nos
processos crescentes de café torrado e moído de maior qualidade, de acordo com
exigência do mercado internacional.
por Paulo Kliass
Enquanto alguns preferem ficar
comemorando as notícias de que PIB brasileiro poderia ter ultrapassado o da
Inglaterra, acho que deveríamos todos é estar mais preocupados com a
continuidade do processo de desindustrialização de nossa economia.
A situação não é para brincadeira, pois o quadro é
trágico! A cada dia surgem mais notícias e avaliações relativas à perda
relativa de competitividade da indústria brasileira. São muitas as evidências
de que as decisões de ampliação do investimento produtivo tendem a preferir a
opção por território estrangeiro para a instalação industrial e apenas o
destino das mercadorias para simples consumo em nossas terras.
Os casos mais simbólicos são políticas empresariais
como as da mega corporação Vale, que exporta minério de ferro bruto extraído de
nosso subsolo sob concessão da União e importa os produtos manufaturados para
seu próprio uso. É o que ocorre com os trilhos comprados para suas ferrovias ou
os super cargueiros encomendados para transporte de minérios– na grande maioria
dos casos importados da China. Muitos setores festejam os impressionantes
números obtidos com as exportações de pindorama, que contabilizaram quase uma
centena de bilhões de dólares em nossa balança comercial no ano que se
encerrou. Mas o conjunto de nosso País lamenta, de outro lado, os igualmente
expressivos valores das importações. Com o péssimo agravante de que vendemos
produto primário barato e compramos produtos manufaturados de maior valor
agregado. Até parece que os responsáveis pela nossa política econômica e
industrial esqueceram tudo o que devem ter lido e estudado sobre as chamadas
trocas desiguais no capitalismo, em especial os prejuízos causados aos países
de menor grau de industrialização.
Agora, recentemente, foram divulgadas informações
que são ainda mais carregadas de expressivo simbolismo. Ao longo de 2011, essa
mesma lógica chegou a atingir um setor que durante muito tempo foi considerado
como “genuinamente brasileiro”. No ano passado, o Brasil mais importou do que
exportou café moído! Ou seja, continuamos com a velha e burra política de
vender café verde em grãos, de baixa qualidade, sem ter conseguido dar um salto
à frente nos processos crescentes de café torrado e moído de maior qualidade,
de acordo com exigência do mercado internacional. E pior: passamos a importar
esse tipo de café manufaturado e com maior valor agregado do resto do mundo, em
volumes mais altos do que vendemos lá fora. Uma loucura! No concreto, isso
significa redução de investimento em novas plantas industriais aqui dentro, com
a conseqüente geração de emprego e renda lá fora.
Apesar de ser um processo complexo e de múltiplas
causas, há dois fatores que são os mais determinantes na conjuntura atual para
explicar a desindustrialização. São eles a nossa conhecida duplinha dinâmica:
câmbio e juros. A questão é tão evidente que chega mesmo a causar espanto a
forma irresponsável como os diversos governos têm enfrentado esse importante
problema.
Sai ano e entra ano, mas o quando não muda em sua
essência: continuamos sérios e obstinados em manter a condição de líder mundial
no quesito dos juros. Com a taxa oficial lá nas alturas, a lógica da
rentabilidade do capital prioriza a opção pela aplicação no mercado financeiro
e não na atividade produtiva. Assim, a política monetária de SELIC elevada
causa um duplo transtorno em nossa economia. De um lado, sacrifica de forma
absurda o orçamento do Estado com gastos puramente financeiros e limita as
despesas na área social e de investimento estratégico do Estado. De outro lado,
as altas taxas de juros inibem os novos investimentos nas áreas da produção e
nos serviços.
Mas aqui surge uma outra conseqüência negativa da
SELIC elevada. Ela exerce uma atração continuada e apetitosa sobre o capital
financeiro internacional – em especial sobre os recursos de natureza puramente
especulativa. Aquele tipo de dinheiro que vai e vem ao sabor dos riscos e dos
ganhos, sem nenhum compromisso com a geração de renda e emprego no país em que
está aportando no momento. E, por incrível que possa parecer para muitos, nossa
política econômica se dirige para satisfazer exatamente os desejos do
investidor de tal perfil. O resultado desse tipo de movimento é que nossa praça
fica inundada de recursos externos de curtíssimo prazo – aliás, fator
potencialmente gerador de elevada instabilidade macroeconômica. A qualquer
susto ou boato, o chamado “efeito manada” da massa especulativa pode causar
sérios problemas de desequilíbrio em nossas contas externas. Isso porque as
nossas regras tupiniquins, ao contrário do que ocorre na maioria dos países
industrializados, não prevêem nenhum tipo de controle sobre entrada e saída
desse capital, nem mesmo exige um tempo mínimo de permanência como
contrapartida de poder usufruir das benesses do ganho financeiro fácil
patrocinado por nosso setor público.
Essa pressão derivada do ingresso de dólares e
outras moedas estrangeiras provoca um desequilíbrio importante em nosso mercado
de câmbio. Mas um dos pilares básicos da estabilidade herdada desde os tempos
do Plano Real é o pressuposto da “liberdade cambial”. Assim, o receio - quase
um temor - em contrariar as vontades dos que mandam no mercado financeiro faz
com que o setor de câmbio seja considerado “imexível” pelo governo. O resultado
é uma sobrevalorização absolutamente artificial de nossa taxa de câmbio. Ao
longo da semana atual ela está na faixa de R$1,80/US$. É verdade que já
melhorou um pouco em relação aos níveis de 2010. Mas estamos ainda muito longe
de uma taxa que possa se considerar mais realista, que muitos analistas
econômicos situam na faixa de R$ 2,50.
Com esse poder de compra de nossa moeda no mercado
internacional, as importações são muito estimuladas. Desde as compras das famílias
animadas da classe média que fazem a farra nas terras da Disney até, e
principalmente, as empresas que importam a preços artificialmente baixos os
produtos finais e intermediários fabricados no exterior, em especial na China.
O contraponto desse processo de valorização de nossa moeda é o encarecimento
relativo dos produtos brasileiros manufaturados em sua busca por mercados para
exportação. Ficamos, portanto, mais uma vez relegados ao nosso papel de agente
secundário nessa divisão internacional do trabalho da modernidade pós-colonial.
Como sempre, mais uma vez perdendo o bonde da História. E ainda tem gente que
se vangloria, enche mesmo a boca, na hora de falar dessa nossa triste
especialização em exportação de produtos primários, as famosas “commodities”.
O que mais chama a atenção na passividade de nossos
responsáveis pela política econômica é que as medidas a serem adotadas são até
singelas, se pensarmos pela lógica da complexidade do funcionamento de outras
variáveis da economia. Basta reduzir a atratividade do mercado financeiro
brasileiro na comparação com as demais alternativas existentes no mercado
internacional. Caso o governo estabeleça controles mínimos de entrada e saída
dos recursos especulativos e imponha uma quarentena para um tempo mínimo de
permanência, uma parcela da elevada atração desaparecerá. Por outro, e talvez
mais importante, trata-se de promover uma redução significativa na taxa SELIC.
Com isso, haverá tendência à diminuição do ingresso de capital especulativo. E
o novo equilíbrio do mercado de câmbio promoverá a necessária desvalorização em
nossa moeda. Em resumo, nossa taxa de câmbio tenderá a refletir de forma mais
realista nossa situação de contas externas.
Algumas pessoas poderão estar se perguntando se por
acaso essa fuga de capitais não seria prejudicial ao Brasil. De forma alguma! E
veja que não se trata aqui de pregar nenhuma volta ao modelo passado das
autarquias isoladas, países isolados uns dos outros. De jeito nenhum! O que se
pretende é apenas que os fluxos de capitais entre o Brasil e o resto do mundo
privilegiem os investimentos produtivos. O capital puramente especulativo não
oferece nenhuma vantagem ao nosso País. Sua fuga, pelo contrário, é muito bem
vinda e poderia até mesmo ser festejada. Que se aventurem a sugar o rentismo
parasitário alhures, de outras sociedades.
Nós, inclusive, já oferecemos até hoje muito mais
do que podíamos e devíamos. As demais características da sociedade e da
economia brasileiras é que devem ser os elementos determinantes para os investimentos
que desejem para cá se dirigir. Um mercado interno consumidor em expansão, com
boas perspectivas de retorno de tais aplicações no curto, no médio e no longo
prazos. Uma Nação com tradição de paz, sem os conflitos militares que
caracterizam boa parte dos países do mundo. Um país em condições de exercer
importante liderança no processo de aprofundamento da integração regional, no
âmbito da América do Sul. Enfim, boas razões não faltam.
Uma vez resolvida essa artificialidade na definição
da taxa de câmbio, a tendência é de haver uma reacomodação dos fluxos de
importação e exportação. As importações sairão mais caras e perderão força por
conta dos chamados “preços relativos”. Já as exportações de produtos
industrializados poderão ser estimuladas. No cômputo final, se o governo der
demonstrações que as medidas virão para ficar, estarão dadas as condições
objetivas para a reversão do processo de desindustrialização. Como sempre, o
que falta é apenas a vontade política! Com um pouco também, é claro, de coragem
política para contrariar interesses poderosos.
Paulo Kliass é Especialista
em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e
doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto, 12/01/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário