Ainda há espaço para bancos bons?
por Paulo Kliass
A péssima imagem do financeiro
Um dos problemas derivados da profunda crise por
que passa o sistema econômico mundial nos tempos atuais é o aumento contínuo da
descrença em suas próprias instituições. Como a face mais evidente e mais
importante do sistema globalizado é a do universo financeiro, todas as ações e
organizações a ele ligadas acabam tendo sua própria credibilidade colocada em xeque. Falou em qualquer
coisa que leve o adjetivo “financeiro”: pronto! Entrou em estado de “desgraça”.
A coisa acaba ficando mais complicada, pois nas
manchetes do mal-feito acabam confundindo-se todos os elementos do próprio
sistema. A crise foi provocada pela ação irresponsável das grandes corporações
financeiras. Os maiores beneficiários da crise são os grandes bancos. As bolsas
de valores e de mercadorias representam o lócus por excelência da especulação
financeira.
A crise teve início com o sistema das hipotecas no
mercado imobiliário estadounidense, onde a incapacidade de honrar os
compromissos dos empréstimos era mascarada pelos mercados de títulos
secundários. A solução para o fenômeno evidente da bolha do mercado de imóveis
era empurrada com a barriga, por meio do lançamento de mais operações,
envolvendo maior risco, como nos jogos de pirâmide. As agências de “rating” –
que deveriam bem avaliar o risco embutidos nas operações financeiras – exercem,
ao contrário, função ativa no processo da especulação. Os esforços realizados
pelos governos dos Estados Unidos e da Europa têm sido na direção do salvamento
dos bancos, sempre à custa de sacrifício imposto à maioria da população. E por
aí vai.
E nessa toada, acaba-se correndo o risco de
generalizações que, muitas vezes, acabam por dificultar a análise concreta de
cada caso, de cada agente, de cada instituição. Apenas demonizar o conjunto das
instituições do sistema financeiro, por conta da crise e do comportamento mais
visível de seus gigantes, é algo que não contribui para bem compreender a
dinâmica de funcionamento da economia contemporânea. Na verdade, seria uma
atitude similar a condenar o conjunto das atividades do setor da agricultura,
por exemplo, em razão do comportamento predatório do latifundiário plantador de
soja transgênica. Ou então de denunciar todo o ramo da indústria de confecções
em função dos conhecidos empresários que realizam o seu lucro com base na
exploração do trabalho escravo. Ou ainda responsabilizar todas as empresas
atuantes no ramo da construção civil pela ação irresponsável das grandes e
conhecidas construtoras na área da construção residencial ou das grandes obras
encomendadas pelo setor público. Ou mesmo uma condenação de qualquer tentativa
de constituição de novos agentes na área de comunicação, dada a péssima atuação
dos integrantes do oligopólio atual em televisão, rádio, imprensa escrita, etc.
A atividade bancária em suas origens
No caso do sistema financeiro, a identificação mais
imediata que realizamos em nosso imaginário é com as instituições bancárias. A
formulação da falsa identidade “financeiro = banco” termina por criar um
sentimento contra os bancos, de natureza quase figadal por parte da maioria da
população (ainda que perfeitamente compreensível, em função da ação concreta da
maior parte deles). E, assim, surge a pergunta que não quer calar, embutida no
título: mas, afinal, não haveria mais espaço para atuação de “bons bancos” em
nossa economia?
Para ensaiar algum caminho de resposta, seria
necessário buscar compreender melhor qual a função do banco na economia
capitalista. Na verdade, a função clássica e tradicional das instituições
bancárias é o da concessão de crédito e de empréstimos. Em sua versão mais
tradicional, o banco recolheria os recursos monetários sobrantes na sociedade em
determinado momento, ou seja, a chamada poupança. Os indivíduos, as famílias,
as empresas e até mesmo o Estado deixariam ali os valores que não foram
consumidos em suas contas bancárias (por oposição à imagem de deixar o dinheiro
debaixo do colchão). Em tese, para assegurar que os recursos fiquem por mais
tempo sem movimentação, os bancos podem oferecer uma remuneração, que se efetua
com base na taxa de juros que eles oferecem aos depositantes. No jargão do
financês, são as assim denominadas “taxas de juros passivas”. Na outra ponta,
estariam os chamados agentes econômicos que necessitam de mais recursos do que
dispõem para suas atividades – os tomadores de empréstimos. E eles se dirigem
aos bancos, que justamente oferecem os valores que os demais haviam deixado
para depósito. No caso, a concessão do crédito envolve a cobrança das “taxas de
juros ativas” – normalmente maiores do que as anteriores. A diferença entre
ambas é o chamado “spread” e serve como base para constituição dos ganhos da
atividade bancária.
Assim, em uma versão assim simplificada, os bancos
podem vir a cumprir uma função importante na economia: a de intermediação de
recursos monetários. Mas por se tratar de um setor sensível e estratégico, a
atividade bancária quase sempre esteve sujeita à regulação e à fiscalização do
poder público. Afinal, o banco opera com aquilo que não é seu. Ele recolhe
valores de uns e empresta esses mesmos recursos para outros. Com o agravante de
que ele pode até emprestar mais do que tem em sua carteira. Ele teria o poder,
assim, de criar moeda de forma, digamos, artificial. É o que no financês se
chama de “multiplicador bancário”. O risco desse tipo de possibilidade é o da
chamada “corrida bancária”: se todos que aplicaram na instituição forem
reclamar o seu depósito ao mesmo tempo, o banco não tem como honrar os
compromissos. É por isso que os órgãos de regulação do sistema financeiro
estabelecem o “depósito compulsório”. Ou seja, uma parte do valor depositado
fica retida junto à autoridade monetária e o banco não pode usar para
emprestar. É uma tentativa de reduzir o risco da exposição bancária exagerada.
Assim, em condições de boa regulação e operando com
taxas de ganho razoáveis, é possível que a atividade bancária cumpra seu papel
de forma adequada na economia contemporânea. Isso significa intermediar
recursos de quem poupa e emprestá-los a quem deles necessite. E menciono aqui
dois casos típicos em que a atividade pode muito bem cumprir sua função social,
até de forma relevante e saudável. Trata-se dos bancos públicos e das
cooperativas de crédito.
Bancos públicos podem ser diferentes
O comportamento empresarial dos bancos públicos é
definido por seu dono, o governo. Ora, se a autoridade pública tiver interesse
em moralizar as atividades desenvolvidas no interior do sistema financeiro,
nada mais adequado do que utilizar os bancos de sua propriedade para tanto. No
Brasil, o governo federal é acionista majoritário de duas das maiores
instituições bancárias: o Banco do Brasil (BB) e a Caixa Econômica Federal
(CEF). Além disso, detém também a capacidade de comando sobre outras
importantes instituições de empréstimo e crédito: o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e os bancos de desenvolvimento
regional – Banco da Amazônia (BASA) e o Banco do Nordeste (BNB).
Ora, com um potencial de influência de mercado como
esse, o que falta é apenas a vontade política de transformar a prática e a
gestão das instituições bancárias. Por exemplo, decidindo diminuir o “spread”
cobrado em suas operações de crédito, onde chegam a impor ao cliente diferenças
abissais entre o juro que eles remuneram e o juro que eles recebem. Ou ainda
reduzindo de forma drástica os ganhos com as tarifas abusivas cobradas pelos
serviços oferecidos. Ou então estabelecendo regras para não mais enganar a
clientela com oferta de produtos financeiros escandalosamente irresponsáveis e
especulativos. Assim, os bancos estatais poderiam recuperar sua credibilidade
pública e contribuir para que a própria concorrência privada fosse obrigada a
redefinir seu “modus operandi”, sob pena de perder parte da clientela. Nada
justifica que o BB ou a CEF apresentem resultados escandalosamente elevados em
seus lucros anuais. Por serem bancos de propriedade do governo federal, seria
de se esperar que fossem obrigados por este a que melhor cumprissem com sua
missão: prestar um serviço ao conjunto da sociedade de menor custo e de melhor
qualidade.
A alternativa das cooperativas de crédito
O outro exemplo é o das cooperativas de crédito.
Trata-se de uma importante experiência histórica no movimento bancário em todo
o mundo. Boa parte do sistema financeiro europeu atual, por exemplo, tem suas
origens no movimento cooperativo, que surge ainda no final do século XIX e
início do século XX em países como Alemanha, França, entre outros. Na maioria
dos casos, a iniciativa estava vinculada a cooperativas ligadas à atividade
agrícola. E que depois, pouco a pouco, foram ampliando a sua área de atuação.
No caso brasileiro também houve momentos de fortalecimento desse tipo de alternativa
de financiamento. No entanto, a falta de controle dos órgãos públicos
envolvidos e a ausência de transparência no interior das próprias cooperativas
de crédito terminaram por manchar a imagem desse setor, jogando-o na vala comum
do escândalo geral da corrupção.
Atualmente, em função inclusive dos elevados custos
financeiros, vive-se uma retomada desse tipo de iniciativa. Afinal, se a
cooperativa pertence aos seus associados e não visa lucro, qual o sentido de
cobrar taxas extorsivas em suas operações ou buscar rentabilidade máxima na
apuração de seus resultados operacionais? Basta que elas tenham escala em
termos do número de participantes e credibilidade junto ao mercado para que seu
funcionamento seja simples e eficiente.
Qual o cliente que não se sente lesado por estar
pagando mais de 200% ao ano em cada momento que entra no vermelho em sua conta
corrente? Qual empresário industrial não se sente prejudicado com as absurdas
taxas cobradas em seus empréstimos, em níveis muito superiores à já elevada
taxa oficial da SELIC? Qual comerciante não se sente injustiçado com as tarifas
abusivas cobradas pelas empresas operadoras de cartão de crédito, todas elas
pertencentes aos próprios bancos?
Portanto, caberia ao governo federal cumprir sua
missão e moralizar a ação dos bancos. Em primeiro lugar, recomendando ao COPOM
que reduzisse de forma efetiva a taxa oficial de juros. Depois, orientando os
dirigentes dos bancos públicos a romperem com a lógica mercadista em seu
comportamento empresarial. Ou seja, não mais buscar a acumulação de lucros sem
qualquer princípio ético ou de respeito ao País, à sociedade e a seus cliente.
Finalmente, recomendando maior rigor da parte dos
órgãos reguladores do sistema financeiro, para reduzir a margem das manobras de
natureza especulativa e impondo limites legais à prática do “spread”. Assim,
todos ganharíamos. Principalmente, as futuras gerações que passariam a viver em
uma sociedade menos contaminada pelo vício do rentismo, a esperteza de viver
usufruindo apenas dos ganhos da atividade financeira parasita. Sim, é possível
e necessário que haja espaço para “bons bancos”. Basta que sejam, em sua
essência, apenas bancos e nada mais.
Paulo Kliass é Especialista
em Políticas
Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal
e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto,
27/01/2012
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