sexta-feira, dezembro 24, 2010

basta a vontade política

Salário mínimo: as falácias de sempre

Basta que a taxa de juros SELIC entre janeiro e dezembro de 2011 permaneça no nível de 10,05% ao ano, ao invés dos 10,75% projetados no Projeto da Lei Orçamentária para garantir os recursos necessários a um salário mínimo de R$ 580.
Todo mês dezembro é a mesma história. Começa a correria para encerrar rapidamente o ano legislativo, e o Congresso Nacional tem a obrigação constitucional de votar o orçamento federal para o exercício seguinte até o dia 31 de dezembro. Trata-se da famosa Lei Orçamentária Anual (LOA). 
Neste ano, em particular, assistiu-se a um desfile de escândalos, denúncias e renúncias de alguns dos congressistas envolvidos com a Comissão Mista de Orçamento (CMO). Em geral, são os fatos envolvendo as famosas emendas parlamentares, onde - em nome da defesa da importante instituição da democracia parlamentar e representativa - vem-se consolidando um esquema fraudulento de apropriação de recursos públicos e desvio para fins privados duvidosos. Eu estava entre os ingênuos, aqueles que achávamos que, depois da CPI dos Anões do Orçamento, lá nos idos de 1993, essa prática acabaria de vez, que as coisas iriam melhorar nesse domínio. Triste ilusão...
Pois bem, mas o assunto hoje aqui é o salário mínimo. E antes que alguém já se sinta incomodado com o título do artigo, vamos recorrer à ajuda do Houaiss. Ali se aprende que falácia é a “qualidade do que é falaz, falsidade”. E falaz é “o que engana, o que ilude, fraudador.” Ou seja, definição melhor é impossível para caracterizar o debate que se apresenta para a sociedade brasileira a respeito do valor de referência para a menor remuneração mensal de um trabalhador em nosso País para 2011.
O valor total para as despesas e as receitas constantes no Projeto da LOA, a ser votado nos próximos dias pelo conjunto de senadores e deputados federais, soma os valores dos chamados Orçamento Fiscal e Orçamento da Seguridade Social, separação formal essa que é uma exigência do texto constitucional. Tudo junto, o Orçamento da União proposto é de R$ 1,94 trilhões. Apenas a título de comparação, o valor do PIB brasileiro para 2010 deve fechar em torno de R$ 3,3 trilhões. O documento do Projeto de Lei é extenso, as tabelas são enormes, os anexos são imensos. Os dados podem ser agregados por natureza da função, por órgão governamental, etc. Não é intenção fazer aqui uma análise detalhada da alocação dos recursos orçamentários, mas tão somente ater-nos ao aspecto do já conhecido impacto do reajuste do salário mínimo sobre as contas do governo federal.
Porém, vale a pena reter aqui, para efeito de avaliação comparativa, um valor importante. Trata-se da quantia prevista para um item bastante “especial”: o pagamento de juros e encargos da dívida pública federal. O Projeto de Lei aloca nada mais nada menos do que R$ 170 bilhões para o exercício de 2011 ! Uma loucura! Quem tiver interesse é só procurar lá na página da Câmara dos Deputados, no Anexo 7 do Projeto de LOA, encaminhado pelo Executivo. O documento tem o título de “Serviço da Dívida Contratual e Mobiliária” . O cálculo, muito provavelmente, se baseia em um estoque de dívida pública federal beirando os R$ 1,8 trilhões, com uma taxa de juros SELIC projetada para todo o ano de 2011, de acordo com o texto da Mensagem Presidencial, como sendo bem próxima aos atuais 10,75% ao ano. Mas voltaremos a esse ponto mais à frente.
O valor proposto no Projeto de Lei para o salário mínimo em 2011 é de R$ 538,15, equivalente a um reajuste nominal de apenas de 5,5%, correspondente à inflação esperada para o período de 12 meses. Em função das primeiras reações iniciais de descontentamento, o governo aceitou melhorar a proposta e se comprometeu com o novo valor de R$ 540 !! Um fantástico avanço de 0,37% em relação à proposição inicial, que a Relatora já incorporou ao seu texto Substitutivo. Uma verdadeira brincadeira de mau gosto! Fico aqui só recordando as reações dos antigos dirigentes sindicais da CUT a cada vez que os governos do milênio passado anunciavam os índices de reajuste do salário mínimo.
As entidades do movimento sindical e dos aposentados/pensionistas articularam uma contraproposta de R$ 580, equivalente a um reajuste de 13,7%, raciocinando em termos de reposição inflacionária mais um percentual relativo ao crescimento do PIB. A reação dos representantes do governo foi imediata: Não! Não! É impossível! O orçamento federal não teria recursos disponíveis para tanto, o efeito em cascata de tal medida quebraria a previdência social, inviabilizaria os governos estaduais e municipais, e todo aquele blá-blá-blá já tão conhecido de todos nós. Com isso e toda a pressão exercida sobre os parlamentares da base aliada no interior da CMO, é muito provável que a LOA seja aprovada com o valor irrisório de R$ 540, levando a discussão política e eventual mobilização dos interessados para o início do próximo ano.
E vejamos bem que o valor alternativo proposto nada tem de irresponsável. Muito pelo contrário, ele está ainda muito distante dos números apresentados pelo DIEESE, que busca conferir valor monetário aos preceitos constitucionais relativos ao vencimento básico do trabalhador, tal como definido no inc. IV, do art. 7° da CF. Ali está assegurado que figura, dentre os demais direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, receber um "salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim". De acordo com os cálculos da respeitada instituição do meio sindical, o valor deveria ser de R$ 2.300 mensais para esse mês de dezembro . Espero que um dia ainda cheguemos lá.
Os argumentos do governo são os de sempre. Em síntese: não há recursos disponíveis e o governo deve pautar sua conduta pela responsabilidade fiscal. De acordo com a última parte: sim, o governo deve se pautar por elevada seriedade na condução de sua política fiscal. No entanto, o fato é que há recursos disponíveis no Orçamento da União para 2011. Ou melhor, haverá recursos disponíveis, desde que a Presidenta Dilma exija de sua equipe o cumprimento de sua promessa relativa à redução da taxa de juros a partir do ano que vem. Senão, vejamos.
De acordo com declarações do Ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, o pleito das entidades sindicais seria impossível de ser atendido, pois a cada 1% a mais de reajuste no valor do salário mínimo, haveria um impacto de R$ 1,5 bilhão nas despesas orçamentárias. De acordo, não vamos questionar tais números. Mas se for alcançado um consenso em torno da necessidade se dar continuidade à política de valorização do salário mínimo, a fixação de tal remuneração no patamar de R$ 580 significaria uma despesa adicional de R$ 12 bilhões ao longo do próximo ano, pois implica um reajuste de mais 8% sobre a proposta inicial.
Ora, para conseguir tal volume de recursos não há que se fazer grande sacrifício. Pelo contrário, basta que a taxa de juros SELIC entre janeiro e dezembro de 2011 permaneça no nível de 10,05% ao ano, ao invés dos 10,75% projetados no Projeto de Lei. Ora, apenas essa redução irrisória na taxa de juros oficial (espera-se que a baixa seja maior, claro!) é suficiente para alocar os recursos necessários a um salário mínimo de R$ 580. Isso sem contar, por outro lado, os efeitos positivos sobre a própria arrecadação tributária em geral, pois é sabido que mais de 40% do consumo da população de renda mais baixa em nosso País vão para os cofres públicos, na forma de tributos indiretos da União, Estados e Municípios.
Ou seja, mais uma vez, comprova-se que basta a vontade política. Os recursos orçamentários para avançar na melhoria do salário mínimo existem. A responsabilidade na condução da política fiscal exige, por outro lado, compromisso com o que é essencial na política do governo. No caso concreto, trata-se de fazer a opção entre: (i) despesa com juros ou (ii) remuneração de mais da metade dos assalariados e pensionistas do País. O resto é argumento falacioso, conversa prá boi dormir.
* Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Debate Aberto, 23/12/2010

quinta-feira, dezembro 23, 2010

fazer renascer a criança escondida

Natal: ver com os olhos do coração

É o que mais nos falta hoje: a capacidade de resgatar a imaginação criadora para projetar melhores mundos e ver com o coração. Se isso existisse, não haveria tanta violência, nem crianças abandonadas nem o sofrimento da Mãe Terra devastada.
Somos obrigados a viver num mundo onde a mercadoria é o objeto mais explícito do desejo de crianças e de adultos. A mercadoria tem que ter brilho e magia, senão ninguém a compra. Ela fala mais para os olhos cobiçosos do que para o coração amoroso. É dentro desta dinâmica que se inscreve a figura do Papai Noel. Ele é a elaboração comercial de São Nicolau – Santa Claus - cuja festa se celebra no dia 6 de dezembro. Era bispo, nascido no ano 281 na atual Turquia. Herdou da família importante fortuna. Na época de Natal saia vestido de bispo, todo vermelho, usava um bastão e um saco com os presentes para as crianças. Entregava-os com um bilhetinho dizendo que vinham do Menino Jesus.
Santa Claus deu origem ao atual Papai Noel, criação de um cartunista norte-americano Thomas Nast em 1886, posteriormente divulgado pela Coca-Cola já que nesta época de frio caía muito seu consumo. A imagem do bom velhinho com roupa vermelha e saco nas costas, bonachão, dando bons conselhos às crianças e entregando-lhes presentes é a figura predominante nas ruas e nas lojas em tempo de Natal. Sua pátria de nascimento teria sido a Lapônia na Finlândia, onde há muita neve, elfos, duendes e gnomos e onde as pessoa se movimentam em trenós puxados por renas.
Papai Noel existe? Esta foi a pergunta que Virgínia, menina de 8 anos, fez a seu pai. Este lhe respondeu: ”Escreva ao editor do jornal local! Se ele disser que existe, então ele existe de fato”. Foi o que ela fez. Recebeu esta breve e bela resposta:
Sim, Virgínia, Papai Noel existe. Isto é tão certo quanto a existência do amor, da generosidade e da devoção. E você sabe que tudo isto existe de verdade, trazendo mais beleza e alegria à nossa vida. Como seria triste o mundo se não houvesse o Papai Noel! Seria tão triste quanto não existir Virgínias como você. Não haveria fé das crianças, nem a poesia e a fantasia que tornam nossa existência leve e bonita. Mas para isso temos que aprender a ver com os olhos do coração e do amor. Então percebemos que não há nenhum sinal de que o Papai Noel não exista. Se existe o Papai Noel? Graças a Deus ele vive e viverá sempre que houver crianças grandes e pequenas que aprenderam a ver com os olhos do coração.
É o que mais nos falta hoje: a capacidade de resgatar a imaginação criadora para projetar melhores mundos e ver com o coração. Se isso existisse, não haveria tanta violência, nem crianças abandonadas nem o sofrimento da Mãe Terra devastada.
Para os cristãos vale a figura do menino Jesus que tirita sobre as palhinhas sendo aquecido pelo bafo do boi e do jumento. Disseram-me que ele misteriosamente através de um dos anjos que cantaram nos campos de Belém enviou a todas as crianças do mundo um cartãozinho de Natal no qual dizia:
Queridos irmãozinhos e irmãzinhas:
Se vocês olhando o presépio e me virem aí, sabendo pelo coração que sou o Deus-criança que não veio para julgar, mas para estar, alegre, com todos vocês,
Se vocês conseguirem ver nos outros meninos e meninas, especialmente no mais pobrezinhos, a minha presença neles,
Se vocês conseguirem fazer renascer a criança escondida no seus pais e nos adultos para que surja nelas o amor a ternura,
Se vocês ao olharem para o presépio perceberem que estou quase nuzinho e lembrarem de tantas crianças igualmente pobres e mal vestidas e sofrerem no fundo do coração por esta situação desumana e desejarem que ela mude de fato,
Se vocês ao verem a vaca, o boi, as ovelhas, os cabritos, os cães, os camelos e o elefante pensarem que o universo inteiro recebe meu amor e minha luz e que todos, estrelas, pedras, árvores, animais e humanos formamos a grande Casa de Deus,
Se vocês olharem para o alto e virem a estrela com sua cauda e recordarem que sempre há uma estrela sobre vocês, acompanho-os, iluminando-os, mostrando-lhes os melhores caminhos,
Então saibam que eu estou chegando de novo e renovando o Natal. Estarei sempre perto de vocês, caminhando com vocês, chorando com vocês e brincando com vocês até aquele dia que só Deus sabe quando estaremos todos juntos na Casa de nosso Pai e de nossa Mãe de bondade para vivermos bem felizes para sempre. 
Belém, 25 de dezembro do ano 1.
* Leonardo Boff é teólogo e escritor.
Fonte: Carta Maior, 22/12/2010

cultura da valorização de toda a vida

Somos as mundanças que queremos no planeta

por Leonardo Boff
Esta frase que parece arrogante é, na verdade, o testemunho do que significa o projeto “Cultivando Agua Boa” implementado pela grande hidrelétrica Itaipu Binacional nos limites entre o Brasil e o Paraguai envolvendo cerca de um milhão de pessoas. Os diretores da empresa – Jorge Samek e Nelton Friedrich – com suas equipes sabiamente entenderam o desafio global que nos vem do aquecimento global e resolveram dar uma resposta local, o mais inclusiva e holística possível. Esta se mostrou tão bem sucedida que fez-se uma referência internacional.
Seus diretores-inspiradores dizem-no claramente: ”A hidrelétrica Itaipu adotou para si o papel de indutora de um verdadeiro movimento cultural rumo à sustentabilidade, articulando, compartilhando, somando esforços com os diversos atores da Bacia Paraná 3 em torno de uma série de programas e projetos interconectados de forma sistêmica e holística e que compõem o Cultivando Agua Boa; eles foram criados à luz de documentos planetários como a Carta da Terra, o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis, a Agenda 21 e os Objetivos do Milênio”.
Operaram, o que é extremamente difícil, uma verdadeira revolução cultural, vale dizer, introduziram um complexo de princípios, valores, hábitos, estilos de educação, formas de relacionamento com a sociedade e com a natureza, modos de produção e de consumo que justifica o lema, escrito em todas as camisetas dos quatro mil participantes do último grande encontro em meados de novembro: ”somos as mudanças que queremos no planeta”.
Com efeito, a gravidade da crise do sistema-vida e do sistema-Terra é de tal magnitude que não bastam mais as iniciativas dos Estados, geralmente, tardias e pouco eficazes. A Humanidade inteira, todos os saberes, as instâncias sociais e as pessoas individuais, devem dar a sua contribuição e tomar o destino comum em suas mãos. Caso contrário, dificilmente, sobreviveremos coletivamente.
Christian de Duve, prêmio Nobel de Fisiologia de 1974, nos adverte em seu conhecido livro “Poeira Vital: a vida como imperativo cósmico” (1997) que “nosso tempo lembra uma daquelas importantes rupturas na evolução, assinaladas por extinções em massa”. Efetivamente, o ser humano tornou-se uma força geofísica destruidora. Outrora eram os meteoros rasantes que ameaçavam a Terra, hoje o meteoro rasante devastador se chama o ser humano sapiens e demens, duplamente demens.
Dai a importância de “Cultivando Água Boa”: mostrar que a tragédia não é fatal. Podemos operar as mudanças que vão desde a organização de centenas de cursos de educação ambiental e capacitação, do surgimento de uma consciência coletiva de corresponsabilidade e cuidado pelo ambiente, da gestão compartilhada das bacias hidrográficas, de incentivo à agricultura familiar, da criação de um refúgio biológico de espécies regionais, de corredores de biodiversidade unindo várias reservas florestais, de mais de 800 km de cercas de proteção das matas ciliares, do resgate de todos os rios, do cultivo de plantas medicinais, da geração de energia mediante os dejetos de suínos e aves, da construção de um canal de 10 km para vencer um desnível de 120 metros e permitir a passagem de peixes de piracema até a criação de um Centro Tecnológico, Centro de Saberes e Cuidados Ambientais e da Universidade da Integração Latino-Americana entre outras não citadas aqui.
A sustentabilidade, o cuidado e a participação/cooperação da sociedade civil são as pilastras que sustentam este projeto. A sustentabilidade introduz uma racionalidade responsável pelo uso solidário dos recursos escassos. O cuidado funda uma ética de relação respeitosa para com a natureza, curando feridas passadas e evitando futuras e a participação da sociedade cria o sujeito coletivo que implementa todas as iniciativas. Tais valores são sempre revisados e pactados. O resultado final é a emergência de um tipo novo de sociedade, integrada com o ambiente, com uma cultura da valorização de toda a vida, com uma produção limpa e dentro dos limites do ecossistema e com profunda solidariedade entre todos. Uma aura espiritual benfazeja perpassa os encontros como se todos se sentissem um só coração e uma só alma.
Não é assim que começa o resgate da natureza e o nascimento de um novo paradigma de civilização?
* Leonardo Boff é Teólogo
** Artigo socializado pela ALAI, América Latina en Movimiento e publicado pelo EcoDebate, 20/12/2010
Fonte: Portal EcoDebate, 20/12/2010

quarta-feira, dezembro 22, 2010

é pra lá que eu vou...

na expansão de oito commodities

A estrangeirização da propriedade fundiária no Brasil
Só entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializados mais de 45 milhões de hectares, sendo que 75% destes na África e outros 3,6 milhões de hectares no Brasil e Argentina, impulsionando aquilo que se convencionou chamar, na expressão em inglês, de “land grabbing”. O crescimento da produção agrícola e das demandas e transações de compra de terras, se concentra na expansão de oito commodities : milho, soja, cana-de-açúcar, dendê (óleo), arroz, canola, girassol e floresta plantada. A participação brasileira se dá fundamentalmente nos três primeiros produtos.
por Sérgio Sauer* e Sérgio Pereira Leite**
Estamos assistindo nos últimos tempos a um crescimento do interesse e busca por terras em todo o mundo, especialmente em razão da demanda por alimentos, agroenergias e matérias primas. Segundo recente estudo do Banco Mundial, de 2010, a demanda mundial por terras tem sido enorme, especialmente a partir de 2008, tornando a “disputa territorial” um fenômeno global. A transferência de terras agricultáveis (ou terras cultivadas) era da ordem de quatro milhões de hectares por ano antes de 2008. Só entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializados mais de 45 milhões de hectares, sendo que 75% destes na África e outros 3,6 milhões de hectares no Brasil e Argentina, impulsionando aquilo que se convencionou chamar, na expressão em inglês, de “land grabbing”.
Uma constatação fundamental do estudo do Banco Mundial é que o crescimento da produção agrícola e, consequentemente, das demandas e transações de compra de terras, se concentra na expansão de apenas oito commodities: milho, soja, cana-de-açúcar, dendê (óleo), arroz, canola, girassol e floresta plantada. A participação brasileira se dá fundamentalmente nos três primeiros produtos. Melhores preços dos agrocombustíveis e os subsídios governamentais levaram à expansão desses cultivos. Em 2008, a estimativa era de 36 milhões de hectares a área total cultivada com matérias-primas para os agrocombustíveis no mundo, área duas vezes maior que em 2004. Deste total, 8,3 milhões de hectares estão na União Européia (com cultivo de canola), 7,5 milhões nos Estados Unidos (com milho) e 6,4 milhões de hectares na América Latina (basicamente com cultivos de cana no Brasil).
Ainda segundo o mesmo documento, em torno de 23% do crescimento da produção agrícola mundial se deu em função da expansão das “fronteiras agrícolas”, apesar de que o aumento mais expressivo (cerca de 70%) da produção é resultado do incremento da produtividade física. As razões dessa expansão da produção (e também do volume das transações de terras) foram: a) demanda por alimentos, ração, celulose e outros insumos industriais, em conseqüência do aumento populacional e da renda; b) demanda por matérias-primas para os agrocombustíveis (reflexo das políticas e procura dos principais países consumidores), e c) deslocamento da produção de commodities para regiões com terra abundante, mais barata e com boas possibilidades de crescimento da produtividade.
Um dos dados mais significativos neste estudo do Banco Mundial é a caracterização dos atuais demandantes de terras no mundo: a) governos preocupados com o consumo interno e sua incapacidade de produzir alimentos suficientes para a população, especialmente a partir da crise alimentar de 2008; b) empresas financeiras que, na conjuntura atual, encontram vantagens comparativas na aquisição de terras e, c) empresas do setor agroindustrial que, devido ao alto nível de concentração do comércio e processamento, procuram expandir seus negócios.
Após a crise dos preços dos alimentos, em 2008, e das previsões de demanda futura, não é surpreendente o crescente interesse de governos – puxados pela China e por vários países árabes – pela aquisição de terras para a produção de alimentos para satisfazer o consumo doméstico. Chamam a atenção, no entanto, os investimentos do setor financeiro, historicamente avesso à imobilização de capital, especialmente na compra de terra, um mercado caracterizado pela baixa liquidez.
Na mesma perspectiva do levantamento do Banco Mundial, estudos encomendados pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do governo brasileiro, mostram que houve um crescimento significativo de investimentos estrangeiros diretos (IEDs) totais no Brasil a partir de 2002 (107% entre 2002 e 2008, passando de 4,33 a 8,98 bilhões de dólares no mesmo período). Segundo o jornal O Globo, o IPEA mostrou que os IEDs no setor primário brasileiro passaram de US$ 2,4 bi, em 2000, para US$ 13,1 bi, em 2007, sendo que a alta de 445% foi puxada pela mineração, que respondeu por 71% do total recebido nesse último ano. Também houve crescimento da participação externa nas atividades agropecuárias como, por exemplo, no cultivo da cana-de-açúcar e da soja e na produção de álcool e agrocombustíveis, especialmente por meio da compra e fusões de empresas brasileiras já existentes.
Apesar de não existir um levantamento mais sistemático, é possível concluir que esses investimentos estrangeiros no setor primário brasileiro resultam também na aquisição de muitas terras. De acordo com levantamento realizado pelos estudos do NEAD, no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), existiam 34.632 registros de imóveis em mãos de estrangeiros em 2008, que abarcavam uma área total de 4.037.667 hectares, números bastante expressivos considerando-se que não abrangeu o “período da corrida por terras” após crise de 2008. Deve-se ressaltar que mais de 83% desse total são imóveis classificados como grandes propriedades (acima de 15 módulos fiscais).
Utilizando diferentes fontes de informações, inclusive pesquisas no SNCR, mas também empresas de consultoria no ramo, os jornais de circulação nacional vêm publicando, desde meados dos anos 2000, dados sobre este processo de aquisição de terras por estrangeiros no Brasil. Em matéria do dia 02/11/2010, a partir de análises do Cadastro do INCRA, a Folha voltou a divulgar o avanço sobre as terras pelo capital estrangeiro. Segundo a reportagem, “empresas e pessoas de outros países compram o equivalente a 22 campos de futebol em terras no Brasil a cada uma hora. Em dois anos e meio, os estrangeiros adquiriram 1.152 imóveis, num total de 515,1 mil hectares”. 
Este interesse global por terras (relativamente abundantes) da América Latina (especial destaque ao Brasil, Argentina e Uruguai) e da África subsaariana tem provocado uma elevação dos seus preços. Constatado pelo citado estudo do Banco Mundial, o aumento de preço das terras brasileiras também vem sendo regularmente anunciado pela grande imprensa. No entanto, não há estudos sistemáticos capazes de oferecer um panorama nacional – ou mesmo regional – das transações e preços, sendo que as notícias são ilustradas com levantamentos de casos exemplares e dados locais, municipais ou regionais.
Segundo o jornal O Valor, os projetos sucroalcooleiros implantados entre 2008 e 2010 provocaram a valorização das terras nas regiões de expansão dos cultivos de cana-de-açúcar, especialmente nas novas “fronteiras”, localizadas principalmente nos Estados de Tocantins, Goiás, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, com índices que chegam até a 33% de majoração nos preços. Dados sobre o comportamento do mercado de terras, calculados pelo Instituto FNP para várias regiões brasileiras, corroboram as informações da imprensa sobre aumentos nos preços dos imóveis rurais em áreas de expansão das monoculturas (soja e cana, sobretudo).
Por outro lado, é fundamental ter presente que parte significativa dos investimentos estrangeiros é financiada com recursos públicos, especialmente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Fundo Constitucional do Centro Oeste (FCO). Estes empréstimos e incentivos fiscais estão sendo alocados principalmente em regiões de expansão do cultivo de cana e produção de etanol (Centro-Oeste) e soja (Centro-Oeste, Amazônia, Bahia e Tocantins).
O crescente volume de aplicações estrangeiras em terras brasileiras tem sido objeto de manifestações contrárias, inclusive, de segmentos representativos do chamado “agronegócio” brasileiro, bem como de editoriais da grande imprensa. É interessante notar que mesmo nesses setores que advogam uma perspectiva “pró-mercado”, há claramente uma posição de alerta com a quantidade de terras sendo adquiridas por estrangeiros, distanciando-se, portanto, das recomendações do estudo do Banco Mundial, mais voltado a explorar as janelas de oportunidades dessas novas áreas por meio do que vem sendo denominado de “investimentos responsáveis”.
Em uma perspectiva distinta, o Executivo Federal, a partir da preocupação com uma possível perda de soberania territorial, solicitou que a Advocacia Geral da União (AGU) fizesse uma revisão do Parecer GQ nº 181, publicado em 1998, que desmobilizou qualquer forma de controle efetivo sobre a aquisição de terras por parte de empresas estrangeiras no Brasil. De acordo com os termos do documento da AGU, desde os pareceres anteriores, de 1994 e 1998, “... o Estado brasileiro perdera as condições objetivas de proceder a controle efetivo sobre a aquisição e o arrendamento de terras realizadas por empresas brasileiras cujo controle acionário e controle de gestão estivessem nas mãos de estrangeiros não-residentes no território nacional”.
Diante da conjuntura atual de uma crescente demanda por terras e da constatação de que o INCRA não possui mecanismos concretos para efetuar um controle adequado das compras de imóveis rurais, o grupo de trabalho formado para avaliar tal situação concluiu que era necessária a “revisão dos pareceres de modo a dotar o Estado brasileiro de melhores condições de fiscalização sobre a compra de terras realizada por empresas brasileiras controladas por estrangeiros”.
A AGU publicou então o Parecer nº LA-01, de 19 de agosto de 2010, o qual re-estabeleceu possibilidades para limitar, ou melhor, para regulamentar os processos de estrangeirização das terras no Brasil. Este documento legal retoma a Lei nº 5.709, de 1971, afirmando que a mesma deve ser acolhida pela Constituição de 1988. Esta lei foi criada para regulamentar a compra de terras por estrangeiros, estabelecendo o limite máximo de compra em 50 módulos (art. 3º), sendo que a soma das propriedades de uma pessoa estrangeira não pode ultrapassar a um quarto (¼) da área do município (art. 12).
Sem desmerecer a importância jurídico-legal de tal parecer, cujo anúncio causou boa impressão em determinados circuitos internacionais ao mostrar a possibilidade de ação efetiva do Estado em área tão estratégica, a solução do problema não se materializa com a referida publicação. Primeiro, há problemas no próprio conteúdo da Lei 5.709 como, por exemplo, o limite de 50 módulos ou a restrição a um quarto da área do município, pois há municípios imensos no Brasil, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, principais alvos da busca por terras e expansão do agronegócio. No entanto, tal iniciativa, abre um caminho para que essa discussão ganhe maior espaço e amplitude no país.
A problemática fundiária transcende em muito ao problema do “land grabbing”, que pode envolver desde a “grilagem ou arresto de terras” até transações comerciais propriamente ditas, uma reação aos efeitos negativos da corrida por terra e a conseqüente estrangeirização. É fundamental não esquecer os históricos níveis de concentração da propriedade da terra no Brasil, novamente corroborados pelo Censo Agropecuário de 2006. Essa concentração fundiária não será revertida somente com adoção de mecanismos de controle da aquisição de terras por estrangeiros, pois a esmagadora maioria das grandes propriedades está nas mãos de poucos brasileiros, o que torna cada vez mais urgente a adoção de políticas redistributivas e de ordenamento territorial, como, por exemplo, a reforma agrária e o reconhecimento das terras pertencentes à populações indígenas e tradicionais.
* Sérgio Sauer é professor da Universidade de Brasília (UnB), na Faculdade de Planaltina (FUP) e na pós-gradução do Propaga e Relator Nacional do Direito Humano a Terra, Território e Alimentação - Plataforma DhESCA Brasil.
** Sérgio Pereira Leite é professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e Coordenador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA).
Fonte: Carta Maior, 20/12/2010

terça-feira, dezembro 21, 2010

lembrei-me de dois poemas chineses

POR FALARMOS DE CHÁ...
(Cecília Meireles)
Por falarmos de chá, lembrei-me de dois poemas chineses, muito antigos, do tempo daquela famosa dinastia T’ang, sob a qual floresceram tantos poetas, e acima da qual brilharam astros como Li-Po e Tu-Fu.
Um dos poemas é de Lo-Tung, grande bebedor de chá, que enumerava as sensações experimentadas à medida que absorvia consecutivas taças:
            A primeira taça umedece-me os lábios e a garganta;
            a segunda, interrompe-me a solidão;
            a terceira, penetra-me as entranhas, onde resolve
                                   [milhares de ideografias estranhas;
            a quarta, produz uma leve transpiração que leva,
                                   [através dos meus poros, o que existe de
                                                           [mau na minha vida;
            com a quinta, sinto-me purificado;
            a sexta, transporta-me ao Reino dos Imortais;
            a sétima... Ah! a sétima... já não posso beber mais!
            Sinto apenas o sopro do vento frio encher as mangas
                                                           [da minha roupa...
            Onde está o Paraíso?
            Deixai-me subir nesta suave brisa e que ela me leve
                                                                            [para lá!
O outro poema, de Uang-Tsi, é em forma de mensagem: delicada mensagem de um homem que manda a um amigo algumas folhas de chá para agradecer-lhe um poema de outro poeta. Diz assim:
Para agradecer-vos por me terdes feito conhecer esta poesia de Tsu-Kia-Liang, envio-vos algumas folhas de chá. São da árvore do mosteiro situado na montanha U-i.
É o mais ilustre chá do Império, como vós sois o seu mais ilustre letrado. Tomais um vaso azul de Ni-hing. Enchei-o de água de neve colhida, ao nascer do Sol, na vertente oriental da montanha Su-chan. Colocai-o num fogo de gravetos de roble, que devem ter sido apanhados sobre um musgo muito antigo e deixai-o sobre esse fogo até que a água comece a rir.
Derramai-a, então, numa taça de Huen-tcha, onde deveis ter colocado algumas folhas de chá, cobri a taça com um pedaço de seda branca tecida em Hua-chan e esperai que se espalhe pela vossa câmara um perfume comparável ao de um jardim de Fun-lo. Levai a taça aos lábios e fechai os olhos. Estareis no Paraíso.
Lidos os dois poemas, verifica-se não ser difícil chegar ao Paraíso. Basta saber preparar e saber beber uma taça de chá. Notai, porém, senhores, quantos requisitos exteriores e interiores são necessários a esse ato aparentemente fácil e simples! Mesmo sem provar desse chá de tão remotos séculos, se ouvirmos bem os poemas, se os ouvirmos extremamente bem, chegaremos ao Paraíso. (Mas ainda haverá quem sonhe com lugar tão sutil?)
* MEIRELES, Cecília. O que se diz e o que se entende. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

uma reforma agrária capaz de soberania alimentar

A comida não pode ser barata? Uma resposta cúmplice aponta a causa dessa injustiça
Os conceitos de “soberania alimentar” e de “segurança alimentar”, capazes de dar sustentação a direitos fundamentais de todo o povo, garantindo-lhe presidir o que plantar, colher, criar e abater, sem correr o risco da fome, pela falta de acesso à terra, devem inverter os sentidos das lições ditadas pelo presidente da Farsul e pelo ministro da Agricultura. O primeiro “tem de aceitar” e o segundo não pode “encerrar assunto” que envolva direitos como os que as suas opiniões desconsideram.
por Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsin
 “A sociedade tem de aceitar que a época da comida barata acabou.” Assim, o presidente da Farsul (Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul) resumiu sua opinião sobre o preço da comida, na edição de sexta-feira, 17, do jornal Zero Hora. 
Para quem ainda passa fome no Brasil, é difícil recordar quando, no passado, a comida foi barata. Em todo o caso, tratando aquela opinião de uma necessidade vital das pessoas, como é a de se alimentar, é conveniente analisar-se o dito no que ele pode revelar sobre as causas de uma injustiça social como essa, pois, pelo jeito, não temos saída e estamos condenados a aceitá-la. 
Segundo essa maneira de pensar, cabe uma comparação. Entre o possível prejuízo que a fração de empresários representada pela tal liderança possa ter na venda do indispensável à vida das pessoas, e o que essas possam sofrer por não poderem pagar o que lhes mata a fome, quem não pode sair perdendo é o dono do capital (nem sempre identificado, em tudo, com o “produtor rural”, a economia familiar que o comprove), pois, em todo o contexto explicativo da entrevista, a “comida barata” aparece como prejuízo certo desse personagem. 
Como o mercado, onde esse capital se alimenta de dinheiro e não de comida, é um ente abstrato, de humor desconhecido, refletido em expressões tão grandiloquentes quanto aleatórias do tipo “crise da economia mundial”, “excesso de demanda”, “defesa da liberdade de iniciativa econômica”, “globalização”, as causas dos perversos efeitos da previsão feita pelo presidente da Farsul geralmente ficam isentas de qualquer investigação sancionatória, inclusive do ponto de vista jurídico. A “mão invisível” (Adam Smith) dos seus ciclos econômicos de crise, exploração da natureza e das gentes, trata de imunizá-lo. 
Algumas mãos visíveis de defesa desse tipo de irresponsabilidade, todavia, podem ser identificadas, como prova a afirmação categórica do ministro da Agricultura, publicada na mesma edição de ZH, segundo a qual “índices de produtividade é assunto encerrado.” 
Ali aparece, novamente, o porque de se encerrar esse assunto: “Quem deve definir o que, como e quando o produtor brasileiro vai produzir é o mercado, a visão que ele tem de oportunidades de negócios, perspectivas de preço, demanda do mercado interno e internacional. Não pode ser um ato autoritário, de cima para baixo, dizendo que tem de produzir com tais índices de produtividade. Não é assim que se faz”. 
Entre o que a sociedade, portanto, “tem de aceitar” como diz o presidente da Farsul, e a forma como essa aceitação deve ser feita (“assunto encerrado”, “não é assim que se faz”...), como diz o ministro da Agricultura, o Estado, a democracia, os Poderes Públicos, o ordenamento jurídico não têm que dar palpite nem se meter. 
A lei e o direito, assim, não têm voz nenhuma aí. Quem deve mandar sobre o que deve se produzir “é o mercado”, “as oportunidades de negócios”, as “perspectivas de preços”, somente o dinheiro, em última análise. Poucas vezes se reconheceu, com tanta clareza e pelas vozes dos seus mais fiéis representes, onde se encontra, efetivamente, o “ato autoritário, de cima para baixo”, a que faz referência o ministro da Agricultura. Ele desce do mercado e é indiscutível, fatal, como ato caracteristico de toda ditadura. A/o pobre faminta/o que se submeta a esse ente-ídolo capaz de ditar o que, como, quando e quanto ele deve comer. Não é por acaso, portanto, que acabe morrendo de fome. O Estado e a democracia prossigam fingindo terem o poder de garantir a vida e a liberdade do povo pobre. 
Haja fome, então, para suportar uma opressão a esse nível. Ela comprova a maior contradição presente em todo o nosso sistema econômico. Justamente quando a produção rural conquista quantidades de alimento mais do que suficientes para alimentar o povo todo, o chamado “preço de mercado” cai a níveis tão baixos, que somente a retenção dessas quantidades consegue cobrir o custo da produção, seja o real, seja o inventado por quem sabe manipular dados a favor do seu lucro. Aí o Estado deixa de ser o vilão e passa a ser a solução...
Não é preciso ser economista para compreender onde tudo isso vai dar. Esse ar de fatalidade, no qual se inspiram as opiniões das referidas lideranças, não é igual ao do clima, corriqueiramente invocado em favor das alegadas dificuldades pelas quais passam os seus liderados. Que a freqüência desse repetido queixume já alcançou status de segunda natureza, isso não dá para negar, pois não há ano em que ele não repita o seu choro. 
Quanto cinismo e hipocrisia se refletem, pois, quando o respeito à lei, especialmente a da segurança nacional, é invocado com veemência, por essas lideranças, sempre que o povo necessitado de casa e comida toma em suas próprias mãos a iniciativa de proclamar que o tal respeito só vale, de fato e materialmente, em favor de minorias historicamente protegidas por uma ideologia sem outras referências que não as da propriedade e as do mercado. Se o destinatário de algumas vantagens previstas em lei é a/o pobre, elas ignoram e desprezam a lei. Essa exige, por exemplo, o cumprimento da função sal da propriedade, “em prol do bem coletivo”, das “necessidades dos cidadãos”, da “erradicação da pobreza”, de “direitos humanos fundamentais”, expressões que não faltam na Constituição Federal, no Estatuto da Terra e no Estatuto da Cidade, entre outras regras jurídicas. Aí, o seu efeito material, concreto, é igual a zero, já que o mercado, pelo menos o refletido nas opiniões publicadas pela ZH, não precisa se preocupar com isso. 
O direito à alimentação, por exemplo, somente entrou expressamente na Constituição em fevereiro deste ano (Emenda 64), como se a satisfação de uma necessidade vital como essa, de tão desrespeitada no país, tivesse necessidade de se proclamar em lei, para ser reconhecida como direito. Muito antes, os tratados internacionais que o Brasil assinou, como o dos direitos econômicos, sociais e culturais de 1966, já vinculavam o nosso país, inclusive, à reforma agrária capaz de, no mínimo, atenuar as danosas conseqüências da comida cara. 
Os conceitos de “soberania alimentar” e de “segurança alimentar”, capazes de dar sustentação a direitos fundamentais de todo o povo, garantindo-lhe presidir o que plantar, colher, criar e abater, sem correr o risco da fome, pela falta de acesso à terra, devem inverter os sentidos das lições ditadas pelo presidente da Farsul e pelo ministro da agricultura. O primeiro “tem de aceitar” e o segundo não pode “encerrar assunto” que envolva direitos como os que as suas opiniões desconsideram. O “realismo econômico” da comida cara, sem outro remédio, previsto por eles, se está sendo pelo menos mitigado nos seus danosos efeitos sociais, isso não se deveu ao mercado, lá erguido à panacéia dos nossos males, mas sim aos assentamentos gerados pela reforma agrária, pelo menos os que deram certo justamente por obedecer à outra lógica que não a exclusiva do mercado. Não foi este também que presidiu a política pública de implantação do Fome Zero e do Bolsa Família. 
Se existem mais brasileiros saciados, hoje, não devem isso ao mercado. Felizmente, há uma outra economia em curso, familiar, solidária, cooperativa, diferente dessa que acumula na mão de poucos o que falta na mesa de muitos. É por isso que a reforma agrária, esses assentamentos e essas políticas públicas recebem críticas tão ácidas das lideranças latifundiárias e daquelas que, no exercício do Poder Público, lhes são fiéis. “Paternalismos oficiais”, “favelas rurais” costumam aparecer sustentando essas críticas. É que o ídolo ao pé do qual elas se ajoelham, rezam e acendem velas diárias de adoração, não aceita outra forma de produção, distribuição e partilha dos bens indispensáveis à vida das pessoas que não passe pelo seu poder de exclusão, medido de acordo com a capacidade de pagar que cada uma dessas tenha alcançado. 
Aquela outra economia sabe que o dinheiro não se come, nem impõe um “ter de aceitar” ou um “assunto encerrado” prepotentes e anti-democráticos como os publicados pela ZH do dia 17. Os direitos e os interesses alheios não lhe são estranhos ou, até, hostis. O que ela mais deseja é a suficiência para todas/os e não somente para um pequeno grupo. Está a serviço de uma justiça social capaz de produzir comida e mesa fartas onde ninguém se assente constrangido pela dor de saber-se estranho à comum união.
Fonte: Carta Maior, 18/12/2010

a retórica do aperto de cinto

Quando os zumbis vencem

por Paul Krugman
Quando os historiadores olharem para o período 2008-10, o que mais os intrigará, acredito, é o estranho triunfo de ideias erradas. Os fundamentalistas do livre mercado estavam errados sobre tudo - mas agora dominam mais que nunca a cena política.
Como isso ocorreu? Como, depois que bancos irresponsáveis colocaram a economia de joelhos, acabamos com Ron Paul, que diz "Acho que não precisaremos de reguladores", prestes a assumir um conselho-chave da Câmara que fiscaliza o Fed? Como, após as experiências dos governos Clinton e Bush, acabaram com fazendo um acordo bipartidário para outros cortes de impostos?
A resposta da direita é que os erros econômicos do governo Obama mostram que políticas de governo grande não funcionam. Mas a resposta deveria ser, que políticas de governo grande? Pois o fato é que o estímulo econômico de Obama - que em si foi quase 40% de cortes de impostos - foi comedido demais para recuperar a economia.
E isso não é uma certeza depois dos fatos: muitos economistas, eu inclusive, advertiram desde o começo que o plano era inadequado. Uma política em que o emprego público realmente cai, em que os gastos do governo em bens e serviços cresceram mais lentamente que nos anos Bush, dificilmente seria um teste da economia keynesiana.
Vale assinalar também que tudo que a direita disse sobre por que a "obamaeconomia" fracassaria estava errado. Durante dois anos, nos advertiram de que o endividamento do governo enviaria as taxas de juros ao espaço; na verdade, as taxas flutuaram ao sabor do otimismo ou pessimismo na recuperação, mas permaneceram baixas para os padrões históricos. Durante dois anos, nos advertiram que a inflação, até mesmo a hiperinflação, estava à espreita; em vez disso, a desinflação prosseguiu, com a inflação básica - que exclui os preços voláteis de alimentos e energia - agora num valor mais baixo em meio século.
Mas esses equívocos não parecem ter importância. Para emprestar o título de um livro recente do economista australiano John Quiggin sobre doutrinas que a crise deveria ter eliminado mas não eliminou, ainda somos regidos pela "economia zumbi". Por quê? Parte da resposta, com certeza, é que as pessoas que deviam estar tentando eliminar ideias zumbis tentam antes conciliar com elas. E isso vale particularmente, mas não apenas, para o presidente.
Obama tentou estender a mão para os adversários ao dar cobertura a mitos da direita. Ele elogiou Reagan por recuperar o dinamismo americano (quando foi a última vez que se ouviu um republicano elogiar Franklin Roosevelt?), adotou retórica do Partido Republicano sobre a necessidade de o governo apertar o cinto mesmo ante a recessão, ofereceu congelamentos simbólicos de gastos e salários.
Nada disso impediu a direita de denunciá-lo como socialista. Mas ajudou a dar força a ideias ruins que podem causar muitos danos imediatos. Neste momento, Obama está elogiando o acordo de corte de impostos como um estímulo à economia - mas os republicanos já falam de corte de gastos que contrabalançariam qualquer efeito positivo do acordo.
E com que eficácia ele poderá se opor a essas cobranças, quando ele próprio adotou a retórica do aperto de cinto? Sim, todos compreendemos a necessidade de tratar com nossos inimigos políticos. Mas uma coisa é fazer acordos por nossos objetivos; outra é abrir a porta a ideias zumbis. Quando se faz isso, os zumbis acabam comendo nosso cérebro - e, possivelmente, nossa economia também.
Tradução: Celso M. Paciornik
* Paul Krugman é economista e Prêmio Nobel 
Fonte: O Estado de S.Paulo, 21/12/2010

segunda-feira, dezembro 20, 2010

maneiras de se conceber e mudar o mundo

Embrapa, o acordo com a Monsanto e a privatização da "neutralidade científica"
A onda neoliberal que vem dando sentido hegemônico às maneiras de se conceber e mudar o mundo a partir da perspectiva capitalista, mais fortemente desde a década de 1990, envolveu a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) de forma incontestável, acentuando a sua estratégica de geração de tecnologias no sentido da artificialização da agricultura.
Essa empresa estatal de pesquisa agropecuária tem contribuído desde a sua constituição, em abril de 1973, para a expansão e melhoria técnica relativa da agricultura no Brasil.
O volume e qualidade da maioria dos resultados obtidos, a formação de pessoal técnico-científico, a difusão técnica no nível dos produtores rurais e a sua expansão institucional no âmbito da cooperação internacional a colocam como uma das instituições mais eficientes do país e com presença respeitável nos meios técnico-científicos mundiais.
Essa qualificação anterior, no entanto, não a exime de responsabilidades nem de desvios político-ideológicos que a tem induzido para resultados que são - seria ingenuidade sugerir como involuntários - afirmadores das desigualdades sociais no campo.
A opção política estratégica de apoio técnico-científico ao agronegócio, de efetivação de acordos de cooperação com empresas transnacionais de caráter monopolista - como emblematicamente se concretizou com a Monsanto - e a aceitação e geração de produtos da sua própria pesquisa a partir dos organismos geneticamente modificados (OGMs), ainda que no âmbito de uma ampla diversificação de produção tecnológica, não deixa de marcar o sentido hegemônico da direção técnico-científica que vem adotando.
A Embrapa segue esse caminho ao enveredar pelos caminhos da artificialização da agricultura, em consonância com os interesses das grandes empresas capitalistas transnacionais, sejam elas as produtoras de insumos para a agricultura sejam aquelas que comercializam os produtos dela obtidos.
Isso, supostamente, se verifica no âmbito de contradições técnico-científicas internas ao corpo técnico e administrativo da Embrapa. Mesmo assim, a concepção reinante sobre a agricultura familiar e camponesa, iniciativas de produção que representam a maioria dos estabelecimentos rurais no país, se mantém como de atrelamento subalterno ao agronegócio, como se afirma no site de sua Missão e Atuação1:
“(...) programas de pesquisa específicos conseguiram organizar tecnologias e sistemas de produção para aumentar a eficiência da agricultura familiar e incorporar pequenos produtores no agronegócio, garantindo melhoria na sua renda e bem-estar.”
Público x privado
Embrapa foi constituída e se mantém suportada por recursos públicos. Isso significa implicitamente que a sua prática de geração de tecnologias deve (deveria), antes de tudo, estar a serviço da maioria da população brasileira que produz no campo.
Todavia, quando a direção hegemônica da empresa abre espaço para a consolidação de acordos como o realizado com a Monsanto desde 2005/2006, e o reafirmando em 29 de novembro p.p. com o aporte de recursos dessa empresa transnacional ao Fundo de Pesquisa Embrapa-Monsanto2, fica mais explícito o caráter real do sentido da produção tecnológica dessa empresa, ainda que estatal.
Ela se insere no processo governamental mais amplo de sustentação do capital privado nacional e multinacional do agronegócio, mais recentemente através das parcerias público-privado.
Não há dúvida de que os acordos com empresas multinacionais como a Monsanto apequenam a Embrapa e comprometem a relativa autonomia técnico-científica que deveriam ter seus técnicos e administradores perante o grande capital nacional e transnacional.
Essa parceria do tipo público-privado, como a efetuada há tempos com a Monsanto, joga o que poderia se considerar como o melhor da história institucional da Embrapa na vala comum da mercantilização do saber. Além disso, coloca sérias interrogações sobre o caráter que se reveste a área de cooperação técnico-científica internacional quando esta afirma ser ‘principalmente a pesquisa em parceria e a transferência de tecnologia’ (sic).
Supostamente o que se espera de uma empresa estatal, mesmo submetida a diferentes pressões políticas, é que seus resultados técnicos se enquadrem como serviços públicos.
“O conceito de técnica mostra que deve ser, por necessidade, patrimônio da espécie. Sua função consiste em ligar os homens na realização das ações construtivas comuns. Constitui um bem humano que, por definição, não conhece barreiras ou direitos de propriedade, porque o único proprietário dele é a humanidade inteira. A técnica, identificada à ação do homem sobre o mundo, não discrimina quais indivíduos dela devem se apossar, com exclusão dos outros. Sendo o modo pelo qual se realiza e se mede o avanço do processo de humanização, diz respeito à totalidade da espécie.”3
Mercantilização
Não se supõe que reine na Embrapa o mito da neutralidade científica. Todavia, não se espera por outro lado que a direção hegemônica da empresa esteja identificada com os interesses produtivistas das empresas privadas nacionais e transnacionais e da mercantilização da produção tecnológica como disso é exemplo a sua parceria com a Monsanto.
Ora, essa hegemonia dos interesses do agronegócio e das empresas transnacionais no seio da Embrapa se torna politicamente mais comprometedora quando se expande a sua capacidade de transferência de tecnologia para paises considerados em desenvolvimento no âmbito de uma cooperação Sul-Sul, como o que se está implantando na cooperação com paises da África, América Latina e Caribe.
Será que já não é demais a pressão que Banco Mundial, OMC, FMI e FAO exercem sobre esses paises em desenvolvimento para incorporarem no seu que-fazer da produção no campo as mercadorias e serviços denominados de ‘tecnologias para o desenvolvimento da agricultura’, pacotes tecnológicos esses produzidos (em parcerias) pelas empresas transnacionais de insumos?
Vai então a Embrapa, uma empresa estatal brasileira, se somar ao esforço anti-social e anti-ecológico de artificialização da agricultura e da dependência (neocolonial) dessas economias rurais aos interesses dos grandes conglomerados da indústria química como Monsanto, Bayer, Basf, Syngenta, Dow e DuPont? Sem duvida alguma que isso seria, ou já é, desolador.
“(...) Mesmo que explicitamente não pretenda se impor como um empreendimento totalitário, a ciência já comporta em si mesma, implicitamente, a possibilidade de tal projeto (o sentido que ela projeta sobre o homem e o mundo só pode ser o único possível). Seus êxitos retumbantes levam-na, talvez inconscientemente, a impor-se como única dimensão possível do sentido. Sua atitude fundamental diante do mundo neutraliza todas as outras atitudes. Donde o risco de tornar-se totalizante e autoritária.”4
1 Site da EMBRAPA. ver aquí (acesso 15/12/2010, 08:00 horas)
2 Ver aquí (consulta 14 dez 2010; 09:40 horas)
3 Pinto, Álvaro Vieira (2005). O conceito de tecnologia, vol. I. Rio de Janeiro, Contraponto, 2v. , p. 269.
4 Japiassu, Hilton (1975). O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda, p. 169.
Fuente: MST - Brasil
Fonte: Biodiversidad en América Latina y El Caribe, 17/12/2010

o REDD é bom demais para ser verdade?

REDD: as realidades em branco e preto

Quando se trata de mudanças climáticas, o mecanismo de REDD é o assunto do momento. “Redução de Emissões por Desmatamento nos Países em Desenvolvimento” traz a perspectiva atraente de mitigação das mudanças climáticas, conservação da biodiversidade ameaçada e de trazer o tão necessário financiamento para o desenvolvimento para os povos indígenas e povos e comunidades que vivem nas florestas – e ao mesmo tempo, oferecer ganhos significativos para investidores. Tudo isto junto levanta uma questão imediata: o REDD é bom demais para ser verdade?
A resposta, infelizmente, é “sim”. Apesar de REDD poder beneficiar algumas comunidades e a biodiversidade em áreas específicas, em termos globais REDD está emergindo como um mecanismo que tem o potencial de exacerbar a desigualdade, colhendo recompensas enormes para as empresas e outros grandes investidores e trazer benefícios consideravelmente menores – ou até mesmo sérias desvantagens – para os povos indígenas e outras comunidades dependentes da floresta. Além disso, se os governos focarem isoladamente em REDD, ele poderia se tornar uma distração perigosa e ineficaz com relação à necessidade de implementar políticas públicas reais e eficazes para a mitigação e adaptação das mudanças climáticas.
Os estudos de caso deste informe mostram claramente que uma corrida para implementar REDD já está em andamento. Os estudos de caso também mostram que os projetos de REDD variam significativamente, dependendo do país de implementação e os objetivos dos patrocinadores do projeto. Embora alguns projetos sejam mais bem elaborados, outros são claramente focados em maximizar os lucros.
Mesmo no caso do melhor cenário, contudo, parece que os povos indígenas devem trabalhar arduamente para se fazerem ouvir ou para se beneficiarem dos projetos de REDD de uma forma equitativa. Além disso, organizações da sociedade civil consideradas críticas aos projetos de REDD são muitas vezes excluídas das consultas e suas contribuições anteriores são ignoradas. Além disso, alguns investidores estão obviamente tentando apressar o processo de negociação dos projetos tão rapidamente quanto possível, mesmo que isso signifique exercer pressão indevida sobre os parceiros de negociação ou pular partes já acordadas de processos, como a necessidade de consulta prévia.
Uma das conclusões mais claras é que as grandes corporações transnacionais, especialmente aquelas envolvidas no setor de energia ou indústrias dependentes de energia intensiva estão rapidamente se perfilando para os projetos de REDD porque estes lhes oferecem – talvez mais do que para qualquer outro participante – uma verdadeira oportunidade de “ganha-ganha”. Através de REDD estes atores são capazes de remodelar-se como campeões na luta contra as mudanças climáticas, mesmo que continuem ou até mesmo expandam suas operações para extrair combustíveis fósseis. Ao mesmo tempo, eles têm a possibilidade de lucrar com REDD centenas de milhões de dólares.
* Para acessar o documento, na íntegra e no formato PDF, clique aqui
Análise originalmente publicada no Informe Nº 241 do Portal Biodiversidad en América Latina y el Caribe.
Fonte: EcoDebate, 20/12/2010

domingo, dezembro 19, 2010

um astronauta em sua sala de espera

García Márquez vai ao dentista*
O doutor Jaime Gazabón abriu a porta da sua clínica dental de Cartagena das Índias e descobriu García Márquez tão sozinho como um astronauta em sua sala de espera. Eram duas e trinta da tarde de 11 de fevereiro de 1991 e o paciente tinha chegado pontualmente a sua primeira consulta. "Em sete anos nunca chegou tarde", me contaria tempo depois o odontólogo. Na sua mesa de centro, havia literatura de consultório de dentista, umas revistas para bocejar a espera e ativar os efeitos sedantes de uma música de fundo. O doutor Gazabón parecia muito vivo debaixo de seus óculos de leitor de dentaduras. Tinha essa bonomia que transpira à gente da costa da Colômbia e uns bigodes que se esmeravam por competir com seu sorriso simétrico. Aquela primeira vez - me contou em 1999 - García Márquez havia chegado até ali em seu automóvel com chofer, em um bairro da cidade cujo nome é perfeito para um dentista: Bocagrande.
Quando o odontólogo saiu para recebê-lo, o escritor acabava de completar a mão a ficha clínica: "Nome do paciente: Gabriel García Márquez. Qual é sua ocupação? Paciente vitalício. Número de telefone: Cortado por falta de pagamento. Se é casado, ocupação de sua esposa: Sim, não faz nada. Para que companhia trabalha sua esposa? Quisera eu já sabê-lo. Nome da pessoa responsável por o pagamento do tratamento: Gabo, o filho do telegrafista. Você tem algum incômodo ou dor? Incômodo, sim, a dor virá depois. Poderia nos dizer quem o recomendou ao doutor? Sua fama universal". Foi o que García Márquez escreveu nessa primeira dramática visita que cedo ou tarde todos fazemos ao consultório de um tira-dentes. "Um conto é o que você conta a si mesmo na sala do dentista enquanto aguarda sua consulta", disse John Cheever.
Nos primeiros sete anos de consulta, o odontólogo tratou García Márquez com o respeitoso vocativo de maestro. Depois começou a chamá-lo compadre. Quando se inteirou de que a esposa do doutor estava grávida de seu sexto filho, García Márquez perguntou com o entusiasmo de um padre recém-ordenado: "E quando batizamos?". Ia ser o primeiro filho homem do dentista. Gazabón não entendeu a pergunta até que alguém que havia vivido no México explicar que nesse país, onde Gabo reside há décadas, às vezes se pede aos pais a honra de ser padrinho, não ao contrário. No dia do batismo, García Márquez e sua esposa Mercedes Barcha foram os primeiros a chegar à igreja.
- Não creio que nada seja casual - me diria seu dentista - Foi um batizado macondiano.
Aquela cerimônia não foi a primeira coincidência familiar. O doutor Gazabón recorda que as famílias de ambos tinham sido vizinhas no bairro de Pie de la Popa e que a irmã de García Márquez ia brincar com a sua irmã em casa. Nessa época, o dentista era um bebê de um ano e o escritor devia ser um jovem de vinte e poucos anos que andava mamando gallo, esse modo tão caribenho de ficar de fuleiragem e se vacinar contra o solene. Eram de gerações distantes: quando García Márquez ganhava o Nobel de Literatura, Gazabón fazia uma pós-graduação em Reabilitação Oral na Ohio State University. A primeira vez que o paciente visitou a casa de quem iria ser seu compadre, o romancista entrou pela porta principal e saiu pela da cozinha para cumprimentar as empregadas.
Desde então nenhum dentista havia calado tanto sobre a boca aberta de um escritor que detesta entrevistas. Segundo o médico, García Márquez gostava de repetir que cada vez que chegava a Cartagena das Índias, ele era o primeiro para quem telefonava. Desde que o visitou em seu consultório, a vida do doutor Gazabón sofreu uma metamorfose. O odontólogo era convidado a ler um fragmento de Cem anos de solidão no Museo Naval de Cartagena. Seus amigos lhe enviavam livros para que García Márquez fizesse uma dedicatória. Uma assinatura. Um garrancho. Por favor. As senhoras pediam para tirar uma foto com ele. Uma só. Um minuto. Por favor. Os pacientes que chegavam ao seu consultório viam, em frente à poltrona negra onde se sentavam, um quadro com uma fotografia do paciente ilustre e seu odontólogo invejado.
O escritor aparece recostado na mesma poltrona com uma camisa negra e as mãos juntas como se o dentista o tivesse amarrado. Quem via aquele retrato em cores acreditava que podia ser a travessura de um computador caribenho, uma tosca montagem eletrônica de um fã. O certo é que o quadro parecia servir ao dentista como una primeira anestesia para seus pacientes. Num golpe de vista se esqueciam de seus molares e qualquer careta de dor se transformava na pergunta de sempre. O que fazia García Márquez sentado ali?
II
Cinco anos depois de conhecê-lo no consultório em Cartagena das Índias, o doutor Gazabón abriu diante de mim uma pasta negra que guardava sob sete chaves. Tinha acabado de se mudar com sua família para Tampa, na Florida, logo depois de ter de partir da Colômbia, onde ele e sua esposa eram militantes evangelistas em uma comunidade cristã. Ambos pregavam em bairros populares onde não eram bem-vindos pela guerrilha. Era uma noite de outono e o dentista vestia uma camisa negra povoada de árvores. Estava de pé, em frente à mesa da copa de sua nova casa, buscando algo na pasta que acabava de abrir. Sua mudança para os Estados Unidos não terminava. No chão, ainda havia caixas para desempacotar. Debaixo da mesa, passeava Blackie, um cachorro pincher em miniatura que o dentista diz que só falta falar. Nas paredes estavam penduradas pinturas de sua esposa, a artista plástica Ángela Schiappa. Nos meses posteriores a sua chegada, o doutor Gazabón ainda não podia exercer a profissão de odontólogo na Florida. Enquanto isso, trabalhava de ceramista dental em um laboratório de próteses dentárias. Tinha se tornado um escultor de dentes de porcelana.
Já era meia-noite e o dentista extraiu da pasta uma minúscula bolsa de veludo azul, parecida com essas onde os joalheiros guardam metais preciosos para protegê-los dos arranhões e da deterioração do tempo. Em um dos quartos, Jaime Enrique de Jesús, seu filho mais novo e afilhado do escritor, tinha dormido. Havia visto uma fotografia em que García Márquez e sua mulher estavam com ele em frente ao padre no instante do batizado. Era então um bebê e agora tinha sete anos. Se lhe perguntavam sobre o padrinho, não lembrava de nada além do que o que seus pais lhe contaram. Mas essa noite o doutor Gazabón parecia estar disposto a me mostrar o que não me havia confiado cinco anos atrás, quando o conheci em seu consultório de Bocagrande. Nessa bolsa de veludo azul guardava um segredo.
III
Não foram nada novelescas as razões que levaram García Márquez ao consultório do doutor Gazabón. Um odontólogo de Bogotá havia feito una correção na dentadura do escritor, e lhe recomendou o ortodontista Luis Eduardo Botero para que continuasse seu tratamento em Cartagena das Índias. Era una operação de rotina com um desses especialistas que consertam dentes mal-posicionados. O ortodontista devolveu a dentição do escritor ao seu lugar devido, mas diagnosticou um problema periodontal. Em bom castelhano, uma dor na gengiva. Era a especialidade do doutor Gazabón, e o ortodontista o recomendou a García Márquez. Foi assim que naquela tarde de fevereiro de 1991 descobriu o filho do telegrafista na sala de espera de seu consultório em Bocagrande, depois de ele escrever seus dados clínicos em una ficha de papel-cartão que a secretaria Onira Madera lhe havia entregado.
- Foi como um presente de Deus - me disse Gazabón treze anos depois em sua casa na Florida.
Durante as consultas, a política era o que sublinhava em García Márquez o que tinha de mais terreno. Um dia o dentista se atreveu a comentar algo sobre Deus.
- Gabo fez o que qualquer pessoa faria - recordou. - Deu um drible e passou a outro tema.
O odontólogo entendeu que devia evitar assuntos divinos em suas conversas com o romancista. Porém havia una pergunta metafísica: que diabos ia fazer com suas lembranças quando García Márquez morrer.
- Não sei - me disse - Eu até posso morrer antes dele.
- Os dentistas não vão para o céu - adverti.
- Olha que eu vou - respondeu.
Não é ruim saber que alguém vai sempre até alguma parte. Sentir-se um homem bom parecia ser a única soberba no doutor Gazabón. Tinha escrito em sua história dental a última vez que atendeu García Márquez: 20 de janeiro de 1999. Foi uma quarta-feira. O dentista também recordava haver recebido uma chamada telefônica do escritor em dezembro desse ano apocalíptico.
Gabriel García Márquez sairia de Cartagena das Índias no século seguinte. Naquela época, um câncer linfático se manifestava. Segundo o dentista, houve o rumor de que o cantor Julio Iglesias queria comprar a casa do escritor. Antes de se mudar para os Estados Unidos, o doutor Gazabón tinha deixado uma carta para um dos irmãos do escritor com o pedido expresso de que a lesse. Também, uma caixa de biscoitos feitos por sua sogra. Essa noite de outono na Florida, quando estava a ponto de me mostrar o que guardava na pasta negra, o doutor Gazabón me disse que ainda não tinha recebido resposta.
IV
Não havia razões óbvias para explicar por que García Márquez o escolheu como seu dentista e depois compadre. O doutor Gazabón era um odontólogo de interior. Nas estantes de seu consultório de Cartagena das Índias não se encontrava nenhuma novela, apenas clássicos da dentadura anglo-saxã como Periodontal Disease, dolorosa literatura para odontologistas. O doutor Gazabón não havia lido a novela Anestesia local, de Günter Grass, nem o conto O dentista, de Alfred Polgar. Tampouco uma passagem de Memórias do subterrâneo, onde Dostoiévski escreve sobre a voluptuosidade de uma dor de dente. O doutor Gazabón tinha lido o poema Desiderata, que tinha pendurado na parede do consultório, encimando um móvel com enxágues bucais e dentaduras postiças. Em cima da mesa tinha um crânio que nada tinha que ver com Hamlet. Era o cenário de um dentista, o lugar comum da castração dental.
O doutor Gazabón tinha uma teoria elementar: García Márquez havia escolhido a ele como compadre para romper com a rotina de famoso. Falava do escritor com familiaridade, admiração e sem falsas reverencias. "As pessoas se esquecem de que Gabo é um ser humano". Mas as pessoas também se esqueciam de que o dentista era um ser humano e lhe perguntavam quanto se podia cobrar de um compadre assim. "Poderia dizer quem o recomendou ao doutor? Sua fama universal", tinha escrito García Márquez em sua ficha de paciente.
V
O odontólogo seguia contando anedotas do Premio Nobel de Literatura enquanto revisava a pasta onde guardava suas mais íntimas recordações. A história clínica do paciente García Márquez, retratos de família com García Márquez, recortes de jornais sobre García Márquez, um dente de García Márquez. Sim. O tesouro do dentista era um molar com três raízes e una incrustação de ouro. Só de saber que havia pertencido ao romancista, aquele dente adquiria uma aparência de ficção e parecia mais horrível ainda no ato de tirá-lo de uma bolsa de veludo. Ver um dente fora da boca faz qualquer um passar a língua para verificar se os seus permanecem ali, dispostos a mastigar e morder. O molar de um gênio é tão feio quanto o de qualquer um e alimenta a ilusão de que todos somos iguais debaixo do boticão do dentista. Mas um dente de García Márquez em suas mãos é mais que isso. É a história secreta de um sorriso.
Há anos García Márquez já traía uma inexplicável predileção pelo tema dental. Dedicou alguns episódios de sua obra à nossa vulnerabilidade ante uma dor de dentes e à fascinação que pode causar una dentadura. Em Um dia desses, um de seus contos mais memoráveis, Aurelio Escovar, um dentista sem diploma, extrai sem anestesia o dente que torturou por cinco dias seu opositor, o prefeito de uma cidadezinha sem nome. Por sorte, García Márquez nunca quis ser prefeito e Gazabón é um odontólogo formado. Anos depois, em Cem anos de solidão, o romancista escreveu um episódio premonitório de sua primeira visita ao odontólogo: "Viram [os habitantes de Macondo] um Melquíades juvenil, recomposto, desenrugado, com a dentição nova e radiante.
Quem se lembrava de suas gengivas destruídas pelo escorbuto, suas bochechas flácidas e seus lábios murchos, se apavorou diante daquela prova cabal dos poderes sobrenaturais do cigano". Em resumo: Melquíades tirou os dentes, envelhecendo de imediato, mas logo os colocou de novo e sorriu com o poder restaurado da sua juventude. O homem envelhece quando seus dentes não se repõem. García Márquez sabia bem disso. Perder um dente era também uma metáfora da perda do poder.
Não foi o primeiro escritor a se fascinar pela questão. Joyce e Nabokov haviam perdido a dentição antes de completar cinquenta anos, e não pouparam palavras para retratá-la em seus livros como algo mais que um traço fisionômico. Martin Amis, outro escritor do clube dos desdentados, ensaiou em seu livro Experiência uma explicação sobre a comunidade de escritores de dentes postiços: "Que mais tinham em comum Nabokov e Joyce além da péssima dentição e uma prosa soberba? O exílio e décadas de uma precariedade econômica próximo à indigência. E uma tendência compulsiva ao excesso. E a submissão desmedida que merecidamente lhes inspirava suas esposas". Qualquer semelhança com García Márquez é pura coincidência.
- É como um Deus da literatura. Todo mundo está interessado em qualquer coisa que ele faça - me disse ele - Gabo sabe que eu não posso esconder o que aconteceu entre nós.
O último dia em que o vi em seu consultório em Cartagena das Índias, o único dente que faltava a García Márquez era o siso. Mas anos antes, naquela primeira tarde em 1991, em seu consultório de Bocagrande, Gabriel García Márquez tinha uma cárie e o doutor Gazabón havia decidido obturar: injetou anestesia local, extraiu um molar, suturou a ferida e tempo depois colocou um implante no lugar. Segundo o dentista, o escritor nunca se queixou. Sem dúvida, desde essa primeira consulta houve uma perda. Na historia da literatura, sempre aconteceu assim: Homero era cego, à Cervantes faltava um braço, García Márquez tinha cárie.
- O fio dental é mais importante que a escova - me disse o doutor Gazabón.
* perfil do escritor Gabriel García Márquez escrito por Julio Villanueva Chang e traduzido para o português por Ronaldo Pelli.
Fonte: Folha | Ilustríssima, 19/12/2010

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