Na Europa ainda reina a confiança na “austeridade” da Velha Europa frente às “inconstâncias” da jovem América, sem falar nas “loucuras” da América Latina. Por isso prevalece, com ou sem sarcasmo, aquela visão moralizadora que torna “natural” a ocorrência dessa crise, sem aprofundar a crítica dos fundamentos econômicos e políticos que levaram a ela. Se todos fossem “sóbrios” e "austeros", nada disso estaria acontecendo.
por Flávio Aguiar -
Correspondente da Carta Maior em Berlim
Eu li:
And so, when the euro
zone became a reality, elephants like Germany
and France came together
with mice like Portugal , Ireland and Luxembourg . Stable, prosperous
countries of the north shared their common currency with shaky, underdeveloped
countries of the south, mature industrialized nations joined forces with what
were hardly more than developing countries. Strict Protestants
mixed with sensual Catholics.
“E assim, quando a zona do euro se tornou realidade,
elefantes como a Alemanha e a França se juntaram a camundongos como Portugal,
Irlanda e Luxemburgo. Países estáveis e prósperos do norte dividiram a sua
moeda comum com países abalados e subdesenvolvidos do sul, nações maduras e
industrializadas juntaram forças com aquelas que mais pareciam países em desenvolvimento.
Protestantes sóbrios se misturaram com sensuais católicos”.
E não podia acreditar. Não, não estava lendo o comentário,
nalguma seção de Opiniões, de algum político ou economista de direita. Eu
estava lendo trecho de uma longa reportagem da Spiegel International, versão
em inglês da prestigiosa Der
Spiegel, uma expoente do establishment liberal e ilustrado alemão.
Pensei que houvesse alguma ironia ali. Mas não. A
continuação da leitura me convenceu que poderia haver até sarcasmo – inclusive
em relação aos tais de “sóbrios protestantes” – mas não havia ironia nenhuma.
Era uma descrição do formato real, literal, de uma forma hegemônica de pensar
na mídia e no senso comum alemão. O problema todo, para essa forma de pensar, é
que países que fizeram a lição de casa neoliberal, que privatizaram,
comprimiram salários e aposentadorias, confrontaram e reduziram o poder de
barganha dos trabalhadores, de repente se viram jogando do mesmo lado da banca
com países perdulários, indisciplinados, que recusaram privatizações e que
ainda tinham o peso de sindicatos e movimentos fortes de trabalhadores e outras
taras de um passado que deveria ser remoto.
Continuei a leitura. Eis alguns trechos:
“Na primavera de 2003, as taxas sobre as letras gregas
eram apenas 0,09 pontos acima das alemãs. Em termos simples, isso significava
que os mercados então sentiam que a Grécia, com sua economia baseada em
azeitonas, iogurte, estaleiros e turismo, era um país tão merecedor de créditos
e confiança quanto a Alemanha industrializada, o principal país exportador
naquela conjuntura. Por que? Porque os dois países tinham a mesma moeda”.
Adiante:
“A Agenda 2010 [programa de reforma da economia alemã] pôs
pressão sobre os salários e reduziu o custo unitário do trabalho, de tal modo
que a Alemanha conseguiu ainda mais competitividade em relação a países como a
Itália e a Grécia. Enquanto o custo unitário do trabalho declinava na Alemanha,
ele crescia na maior parte dos países da Zona do Euro, sobretudo, na Grécia”.
Mas os problemas não pararam aí. Para financiar a festa de
seus trabalhadores, funcionários públicos e aposentados – ao lado, o artigo
aponta – da burocracia corrupta que dirige o país enquanto os governos
socialistas ou conservadores se sucediam, a Grécia, assim como outros países
europeus da mesma laia atrasada e pré-moderna, foram se endividando. Na Grécia
ainda houve o hoje reconhecido caso da manipulação contábil de números, pelos
quais débitos futuros se transformavam em créditos presentes, para manter as
aparências e conseguir mais empréstimos para pagar os anteriores.
Pior: essa prática dos “sensuais sulistas” (já quem nem
todos eles são necessariamente católicos) contaminou as práticas dos “sóbrios
nortistas” (já quem nem todos eles são necessariamente protestantes). Os países
do norte começaram também a se endividar para além dos limites estabelecidos
pelo tratado de Maastricht (60% do PIB, ou 3% de déficit em relação ao PIB
anual). A farra se expandiu, também porque ninguém, no sóbrio norte, se
preocupava muito em verificar as contas do carnavalesco sul, porque o dinheiro
dos empréstimos facilitava as exportações daquele para este. As exportações
alemãs cresciam vertiginosamente, e 70% delas iam para países da União Européia.
Saindo agora dos termos do artigo da Spiegel mas continuando na trilha de seus
temas:
Quando o governo Papandreou, eleito no ano passado,
destampou a meleca, o pânico foi geral. O sistema bancário que já recebera
ajuda suplementar direta (o governo alemão, por exemplo, emprestou dinheiro a
juro zero para as instituições alemãs) passou a receber ajuda indireta, sob a
forma de empréstimos para a Grécia, Portugal e Irlanda honrarem seus
compromissos. Na verdade a parte do leão desses empréstimos vai direto para os
bancos credores, que, sem isso, quebrariam.
Assim mesmo o banco belga Dexia quebrou, e no fim de
semana passado ele foi objeto de uma tripla estatização, pela França, Bélgica e
Luxemburgo, no valor de 90 bilhões de euros (uns 216 bi de reais, ao câmbio
oficial, usado nas grandes transações bancárias). A quebra do Dexia se deu
porque o risco grego (de ter de “reestruturar” sua dívida) pesou na sua
avaliação (ele era credor de grandes montantes da dívida grega) e os demais
bancos começaram a recusar novas transações com ele. Numa reunião de emergência
no domingo Sarkozy e Merkel anunciaram um acordo para fortalecer o fundo de
emergência. Não deram detalhes, mas isso significa que a principal diferença
entre eles deve ter sido aplainada. Merkel queria que o fundo só fosse usado
para socorrer países em inadimplência; Sarkozy, que ele também fosse usado para
socorrer o sistema financeiro.
Em algum ponto do meio do caminho devem ter chegado.
Deverão anunciar o plano todo no fim do mês, antes da reunião de cúpula do G-20
em Cannes, em 3 e 4 de novembro.
Dessa intrincada situação e avaliação, ressaltam algumas
certezas:
1) Apesar das vagas declarações sobre a necessidade de
regulamentar o sistema financeiro mundial, a ninguém ocorre culpar a sua
desregulamentação descalibrada (sobretudo a partir das políticas de Thatcher
nos anos 80) pela situação de descalabro a que se chegou, tanto no plano
privado (com o financiamento de dívidas hipotecárias impagáveis, por exemplo)
quanto no público (com o fornecimento de empréstimos a rodo a países e depois a
venda dessas letras a desavisados para colher lucros antes que o pânico se
espalhe, como várias instituições financeiras fizeram; ou com a criação de
derivativos de seguro contra inadimplências, o que faz com que parte do mercado
financeiro torça para que haja falências, terceirizando os prejuízos que no fim
serão sustentados pelos trabalhadores e contribuintes através das “ajudas
financeiras”).
2) A ninguém tampouco ocorre responsabilizar, ao lado de
desregulamentação financeira, a quebra da espinha dorsal de movimentos de
trabalhadores e do poder de barganha de sindicatos, que, pela queda do poder
aquisitivo, criou ciclos recessivos contínuos, só enfrentados, quando possível,
pela transferência de exportações. Hoje, ao lado da catástrofe grega, se fala
no milagre alemão – mas este não depende do poder aquisitivo alemão, que
encolheu, e sim das exportações para a China e o sudeste asiático.
3) Apesar de pesos pesados do capitalismo ilustrado, como
Paul Krugman e Joseph Stiglitz, além de outros, estarem advertindo
continuamente que uma crise desse porte exige decisões em nível de políticas de
estado no sentido de injetar poder aquisitivo na economia através de
investimentos, ao invés de retirar poder aquisitivo através das políticas de
“austeridade”, ainda não significativas forças sociais e políticas
comprometidas com uma visão dessas. Graças a movimentos como Occupy Wall Street
e da consciência da debandada de forças democratas frente às eleições de 2012,
o governo Obama começou a se mexer nessa direção, ainda que timidamente. Mas
aqui na Europa ainda reina a confiança na “austeridade” da Velha Europa frente
às “inconstâncias” da jovem América, sem falar nas “loucuras” da América
Latina. Programas de “austeridade” são fáceis de vender eleitoralmente, e o
pensamento de esquerda, por seu turno, ainda não se recuperou dos golpes do
final do século passado.
4) Por isso prevalece, com ou sem sarcasmo, aquela visão
moralizadora que torna “natural” a ocorrência dessa crise, sem aprofundar a
crítica dos fundamentos econômicos e políticos que levaram a ela. Se todos
fossem “sóbrios”, nada disso estaria acontecendo. A Grécia não estaria, quem
sabe, de joelhos no milho como está agora, e levando lições de moral. Mas
estaria no seu cantinho, o que teria sido melhor para todo o mundo,
especialmente os do centro do salão.
Fonte: Carta Maior | Internacional, 10/10/2011
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