segunda-feira, outubro 10, 2011

ainda reina a confiança na “austeridade”

A Grécia vista de Berlim: um retrato da crise
Na Europa ainda reina a confiança na “austeridade” da Velha Europa frente às “inconstâncias” da jovem América, sem falar nas “loucuras” da América Latina. Por isso prevalece, com ou sem sarcasmo, aquela visão moralizadora que torna “natural” a ocorrência dessa crise, sem aprofundar a crítica dos fundamentos econômicos e políticos que levaram a ela. Se todos fossem “sóbrios” e "austeros", nada disso estaria acontecendo.
Eu li:
And so, when the euro zone became a reality, elephants like Germany and France came together with mice like Portugal, Ireland and Luxembourg. Stable, prosperous countries of the north shared their common currency with shaky, underdeveloped countries of the south, mature industrialized nations joined forces with what were hardly more than developing countries. Strict Protestants mixed with sensual Catholics.
“E assim, quando a zona do euro se tornou realidade, elefantes como a Alemanha e a França se juntaram a camundongos como Portugal, Irlanda e Luxemburgo. Países estáveis e prósperos do norte dividiram a sua moeda comum com países abalados e subdesenvolvidos do sul, nações maduras e industrializadas juntaram forças com aquelas que mais pareciam países em desenvolvimento. Protestantes sóbrios se misturaram com sensuais católicos”.
E não podia acreditar. Não, não estava lendo o comentário, nalguma seção de Opiniões, de algum político ou economista de direita. Eu estava lendo trecho de uma longa reportagem da Spiegel International, versão em inglês da prestigiosa Der Spiegel, uma expoente do establishment liberal e ilustrado alemão.
Pensei que houvesse alguma ironia ali. Mas não. A continuação da leitura me convenceu que poderia haver até sarcasmo – inclusive em relação aos tais de “sóbrios protestantes” – mas não havia ironia nenhuma. Era uma descrição do formato real, literal, de uma forma hegemônica de pensar na mídia e no senso comum alemão. O problema todo, para essa forma de pensar, é que países que fizeram a lição de casa neoliberal, que privatizaram, comprimiram salários e aposentadorias, confrontaram e reduziram o poder de barganha dos trabalhadores, de repente se viram jogando do mesmo lado da banca com países perdulários, indisciplinados, que recusaram privatizações e que ainda tinham o peso de sindicatos e movimentos fortes de trabalhadores e outras taras de um passado que deveria ser remoto.
Continuei a leitura. Eis alguns trechos:
“Na primavera de 2003, as taxas sobre as letras gregas eram apenas 0,09 pontos acima das alemãs. Em termos simples, isso significava que os mercados então sentiam que a Grécia, com sua economia baseada em azeitonas, iogurte, estaleiros e turismo, era um país tão merecedor de créditos e confiança quanto a Alemanha industrializada, o principal país exportador naquela conjuntura. Por que? Porque os dois países tinham a mesma moeda”.
Adiante:
“A Agenda 2010 [programa de reforma da economia alemã] pôs pressão sobre os salários e reduziu o custo unitário do trabalho, de tal modo que a Alemanha conseguiu ainda mais competitividade em relação a países como a Itália e a Grécia. Enquanto o custo unitário do trabalho declinava na Alemanha, ele crescia na maior parte dos países da Zona do Euro, sobretudo, na Grécia”. 
Mas os problemas não pararam aí. Para financiar a festa de seus trabalhadores, funcionários públicos e aposentados – ao lado, o artigo aponta – da burocracia corrupta que dirige o país enquanto os governos socialistas ou conservadores se sucediam, a Grécia, assim como outros países europeus da mesma laia atrasada e pré-moderna, foram se endividando. Na Grécia ainda houve o hoje reconhecido caso da manipulação contábil de números, pelos quais débitos futuros se transformavam em créditos presentes, para manter as aparências e conseguir mais empréstimos para pagar os anteriores.
Pior: essa prática dos “sensuais sulistas” (já quem nem todos eles são necessariamente católicos) contaminou as práticas dos “sóbrios nortistas” (já quem nem todos eles são necessariamente protestantes). Os países do norte começaram também a se endividar para além dos limites estabelecidos pelo tratado de Maastricht (60% do PIB, ou 3% de déficit em relação ao PIB anual). A farra se expandiu, também porque ninguém, no sóbrio norte, se preocupava muito em verificar as contas do carnavalesco sul, porque o dinheiro dos empréstimos facilitava as exportações daquele para este. As exportações alemãs cresciam vertiginosamente, e 70% delas iam para países da União Européia.
Saindo agora dos termos do artigo da Spiegel mas continuando na trilha de seus temas:
Quando o governo Papandreou, eleito no ano passado, destampou a meleca, o pânico foi geral. O sistema bancário que já recebera ajuda suplementar direta (o governo alemão, por exemplo, emprestou dinheiro a juro zero para as instituições alemãs) passou a receber ajuda indireta, sob a forma de empréstimos para a Grécia, Portugal e Irlanda honrarem seus compromissos. Na verdade a parte do leão desses empréstimos vai direto para os bancos credores, que, sem isso, quebrariam.
Assim mesmo o banco belga Dexia quebrou, e no fim de semana passado ele foi objeto de uma tripla estatização, pela França, Bélgica e Luxemburgo, no valor de 90 bilhões de euros (uns 216 bi de reais, ao câmbio oficial, usado nas grandes transações bancárias). A quebra do Dexia se deu porque o risco grego (de ter de “reestruturar” sua dívida) pesou na sua avaliação (ele era credor de grandes montantes da dívida grega) e os demais bancos começaram a recusar novas transações com ele. Numa reunião de emergência no domingo Sarkozy e Merkel anunciaram um acordo para fortalecer o fundo de emergência. Não deram detalhes, mas isso significa que a principal diferença entre eles deve ter sido aplainada. Merkel queria que o fundo só fosse usado para socorrer países em inadimplência; Sarkozy, que ele também fosse usado para socorrer o sistema financeiro. 
Em algum ponto do meio do caminho devem ter chegado. Deverão anunciar o plano todo no fim do mês, antes da reunião de cúpula do G-20 em Cannes, em 3 e 4 de novembro.
Dessa intrincada situação e avaliação, ressaltam algumas certezas:
1) Apesar das vagas declarações sobre a necessidade de regulamentar o sistema financeiro mundial, a ninguém ocorre culpar a sua desregulamentação descalibrada (sobretudo a partir das políticas de Thatcher nos anos 80) pela situação de descalabro a que se chegou, tanto no plano privado (com o financiamento de dívidas hipotecárias impagáveis, por exemplo) quanto no público (com o fornecimento de empréstimos a rodo a países e depois a venda dessas letras a desavisados para colher lucros antes que o pânico se espalhe, como várias instituições financeiras fizeram; ou com a criação de derivativos de seguro contra inadimplências, o que faz com que parte do mercado financeiro torça para que haja falências, terceirizando os prejuízos que no fim serão sustentados pelos trabalhadores e contribuintes através das “ajudas financeiras”).
2) A ninguém tampouco ocorre responsabilizar, ao lado de desregulamentação financeira, a quebra da espinha dorsal de movimentos de trabalhadores e do poder de barganha de sindicatos, que, pela queda do poder aquisitivo, criou ciclos recessivos contínuos, só enfrentados, quando possível, pela transferência de exportações. Hoje, ao lado da catástrofe grega, se fala no milagre alemão – mas este não depende do poder aquisitivo alemão, que encolheu, e sim das exportações para a China e o sudeste asiático. 
3) Apesar de pesos pesados do capitalismo ilustrado, como Paul Krugman e Joseph Stiglitz, além de outros, estarem advertindo continuamente que uma crise desse porte exige decisões em nível de políticas de estado no sentido de injetar poder aquisitivo na economia através de investimentos, ao invés de retirar poder aquisitivo através das políticas de “austeridade”, ainda não significativas forças sociais e políticas comprometidas com uma visão dessas. Graças a movimentos como Occupy Wall Street e da consciência da debandada de forças democratas frente às eleições de 2012, o governo Obama começou a se mexer nessa direção, ainda que timidamente. Mas aqui na Europa ainda reina a confiança na “austeridade” da Velha Europa frente às “inconstâncias” da jovem América, sem falar nas “loucuras” da América Latina. Programas de “austeridade” são fáceis de vender eleitoralmente, e o pensamento de esquerda, por seu turno, ainda não se recuperou dos golpes do final do século passado.
4) Por isso prevalece, com ou sem sarcasmo, aquela visão moralizadora que torna “natural” a ocorrência dessa crise, sem aprofundar a crítica dos fundamentos econômicos e políticos que levaram a ela. Se todos fossem “sóbrios”, nada disso estaria acontecendo. A Grécia não estaria, quem sabe, de joelhos no milho como está agora, e levando lições de moral. Mas estaria no seu cantinho, o que teria sido melhor para todo o mundo, especialmente os do centro do salão.
Fonte: Carta Maior | Internacional, 10/10/2011

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