''Até quando a sociedade barranqueira e brasileira vai assistir
conformada aos desmandos que um diminuto grupo poderoso política e
economicamente faz para si mesmo, na Bacia do São Francisco e no Nordeste, com
vultuosos recursos públicos, sob o manto da democracia representativa, em nome
do “desenvolvimento” social e da proteção ambiental?''. O texto integra
manifesto da Articulação
Popular São Francisco Vivo –SFVivo, 04-09-2011.
Eis o manifesto.
O Rio São
Francisco completa hoje 510
anos de seu “batismo”. O Opará dos indígenas – “rio-mar” ou “sem
paradeiro definido” – tornou-se ao longo dos séculos “rio dos currais” e “rio
da integração nacional”, gerador de energia elétrica e grande pólo de irrigação
agrícola. Nos últimos 70 anos, intensificaram-se as produções de riquezas em
suas margens e em seus biomas formadores (cerrado, mata atlântica e caatinga).
Em conseqüência, as degradações várias e cumulativas chegaram ao
ponto do quase esgotamento do seu complexo de vida. Foi de 35% a perda de sua
vazão nos 56 anos entre 1948 e 2004, segundo o Centro Nacional de Pesquisa
Atmosférica (NCAR – Colorado / EUA), a mais grave entre
os maiores rios do mundo. Os maiores impactos recaem sobre a população pobre da
Bacia Hidrográfica. Mais que sobreviver, ela resiste, toma iniciativas e cobra
uma revitalização real já! É quase só isso o que se tem a celebrar hoje!
A Articulação
Popular São Francisco Vivo - SFVivo, que congrega cerca de 300
entidades sociais da Bacia, entre movimentos, associações, sindicatos,
pastorais e ONGs, vem a público e perante as autoridades para denunciar a
continuidade dos desmandos contra o rio e seu povo; e convocar todos e todas a
se unirem em iniciativas concretas em defesa da vida que ainda resta no São
Francisco – Terra e Água, Rio e Povo.
Quatro anos depois de iniciado o projeto de transposição para o
Nordeste chamado Setentrional, as principais críticas ao projeto já se revelam
verdadeiras. A revitalização da Bacia, tarefa imensa, cobrada há tempos, veio
num programa governamental mínimo como “moeda de troca” pela transposição, e se
arrasta incompleta, insuficiente, sob suspeitas de corrupção, sujeita ao jogo
dos interesses político-eleitorais. Pensa-se encobrir as evidências com eventos
festivos e shows de artistas famosos durante esta semana, em algumas cidades
ribeirinhas, sob o slogan de “São Francisco Vive”, cópia mal
intencionada da divisa de nossa Articulação. Pretender com marketing “resolver”
a grave situação do Velho Chico é tripudiar sobre a sorte de milhões de pessoas
e um inúmero conjunto de espécies e formas de vida.
Transposição: obras confirmam críticas
Nossas críticas e alertas quanto à transposição, feitas por
organizações da sociedade civil e cientistas isentos, que sempre contestamos a
obra e suas razões, já se comprovaram:
2. Não atenderia a população mais necessitada: efetivamente, não pôs
uma gota d’água para nenhum necessitado; antes desmantelou a produção agrícola
local por onde passou.
3. O custo da água seria inviável: hoje o governo reconhece
que o metro cúbico valerá cerca de R$ 0,13 (poderá ser ainda bem maior), seis
vezes maior que às margens do São Francisco, onde muitos irrigantes estão
inadimplentes por dívidas com os sistemas de água. Para ser economicamente
viável, este preço terá que ser subsidiado, e é certo que o povo pagará a
conta;
4. Impactaria comunidades indígenas e quilombolas: comunidades
quilombolas impactadas são 50 e povos indígenas nove. As demarcações de seus
territórios foram emperradas, seus patrimônios destruídos. No caso dos Truká,
em Cabrobó – PE, em cuja área o Exército iniciou o Eixo Norte, o território já
identificado é demarcado se aceitarem as obras. No caso dos Tumbalalá, em
Curaçá e Abaré – BA, na outra margem, se aceitarem a barragem de Pedra Branca.
Ainda não foram demarcados pela FUNAI os territórios Pipipã e Kambiwá, a
serem cortados ao meio pelos futuros canais, ao pé da Serra Negra, em
Pernambuco, monumento natural e sagrado de vários povos. Muitas destas
comunidades ainda resistem. O povoado e o assentamento de reforma agrária em
Serra Negra não admitem a execução das obras em seu espaço.
5. Destruiria o meio ambiente: grandes porções da caatinga foram desmatadas. Inventário
florestal levantou mais de mil espécies vegetais somente no Eixo Leste.
6. Empregos precários e temporários: como sintetizou o
cacique Neguinho Truká, “os empregos foram temporários, os problemas são
permanentes”. Em Cabrobó, nada restou da prometida dinamização econômica, só
decepção e revolta. Nas cidades onde a obra passou ficou um rastro de comércio
desorganizado, casas vazias, gente desempregada, adolescentes grávidas...
7. Arrastadas no tempo, a obra se presta a “transpor” votos e
recursos: não debela, antes realimenta a “indústria política da seca”.
Nova precisão de data para conclusão: 2014! Vem mais uma eleição aí, em 2012,
outra em 2014...
8. Faltam duas das conseqüências graves a serem totalmente
comprovadas, que só teremos certeza se a obra chegar ao fim: vai impactar ainda mais o rio São Francisco e não vai levar
água para os necessitados do Nordeste Setentrional. Enfim, a água da
Transposição é para o agro-hidronegócios e pólos industriais do Pecém (CE) e Suape (PE).
Portanto, mantemos a crítica ao projeto. O governo reconhece
oficialmente que cinco lotes estão parados e os nove restantes estão em ritmo
lento. Já foram gastos 3,5 bilhões de reais na obra. Alegam que a obra “começou
sem ter qualquer projeto executivo”, pelo que se deveriam prever custos... Já é
longo o histórico de problemas do projeto, seguidas vezes suspenso ou sob
suspeição do Tribunal de Contas da União. A pressa era eleitoral, o retardo é
venal!
A título de comparação, pensando em menos custos, mais eficiência
e eficácia, com esse dinheiro poderiam ter sido feitas 2.187.500 cisternas,
beneficiando uma população total de 11 milhões de pessoas.
Em outra opção, com esses recursos, segundo a Agência Nacional de Águas - ANA,
poderiam ter sido custeadas mais de 1/3 das adutoras previstas para o Nordeste
não entrar em colapso hídrico até 2025. Portanto, já teria beneficiado
seguramente 12.883.333. Com metade dos recursos da transposição, já teria sido
beneficiada mais gente que a obra promete atender, ou seja, 12 milhões de
pessoas. Entretanto, nenhuma dessas adutoras está em andamento!
Com o programa “Água para Todos”, o governo Dilma intensificou o programa de cisternas
para abastecer a população difusa com mais 800 mil unidades. É um tácito
reconhecimento de que as propostas da sociedade civil eram as mais corretas
para abastecimento doméstico da população. E de que a transposição não é para
matar a sede de 12 milhões!
Ainda há tempo de preparar a região para o presente e o futuro em
termos de segurança hídrica. Segundo o Atlas Nordeste da ANA seriam necessários pouco menos de R$
10 bilhões para abastecimento urbano de 39 milhões de pessoas em 1794 cidades dos
nove estados da região. Obras que a despeito da transposição terão que ser
feitas.
O aquecimento global poderá significar para o semiárido quase o
dobro de aumento da temperatura em outras regiões. Não é aconselhável expandir
os negócios intensivos em água e solos, ainda que sejam agora altamente
lucrativos, com subsídios públicos e demandas crescentes do mercado global. É
uma escolha política, não uma sina econômica.
Revitalização paliativa
O programa governamental de revitalização em nada foi melhorado.
Continua setorial e desconexo, longe das causas estruturais dos processos de
degradação sócio-ambiental da Bacia. Reduz-se a obras de saneamento básico e
ambiental, melhoria da navegabilidade e recuperação de matas ciliares. Avançou
um pouco mais nas primeiras, mas como muitos problemas como se verá, e quase
nada nestas últimas. Em se tratando de transposição e revitalização, dois são
os pesos e duas as medidas.
Numa falsa abertura à participação da sociedade coletou mais de
300 propostas, a maioria das quais o Ministério da Integração descartou por não
apresentarem ou não se transformarem em projetos exeqüíveis, dentro dos marcos
legais... Está-se a sugerir que a sociedade é a culpada por não se recuperar
seu rio?
A título de Programa
de Revitalização do Rio São Francisco – PRSF incluem-se todas as ações possíveis do
governo federal, de vários setores, muitas em parcerias com os governos
estaduais da Bacia, de modo a inflar as aparências. Nos períodos eleitorais
temos assistido como se decidem as destinações de verbas, para os mais variados
fins... E não há transparência, não se tem como saber muito menos acompanhar o
andamento das ações.
No site do Ministério da Integração os dados estão desatualizados.
Falam de aplicados R$ 194,6 milhões entre 2004-2007 e da “previsão” de R$ 1,2
bilhões no PAC – Plano
de Aceleração do Crescimento 2007-2010. No caso do “esgotamento sanitário”
seriam atendidos todos os 102 municípios da calha do rio. O último relatório do
programa disponível é de dezembro de 2007... Já o site do Ministério do Meio
Ambiente fala que “as ações para a revitalização estão inseridas no Programa de
Revitalização de Bacias Hidrográficas com Vulnerabilidade Ambiental do Plano
Plurianual (PPA 2004/2007 e PPA
2008/2011) e será complementado por outras ações previstas em
vários programas federais do PPA”... E de fato aparecem setorialmente neles. Já
à agenda não se tem acesso em site nenhum, nem à execução orçamentária...
Inevitável a pergunta: o que se quer esconder?
Fomos conferir de perto aquelas que nos parecem as obras
principais do PRSF: as de esgotamento sanitário.
Membros da SFVivo percorreram o traçado destas obras em algumas cidades
ribeirinhas. Parte do que relataram segue em anexo no DOSSIÊ “CAMINHO DO
ESGOTO”.
Até quando a sociedade barranqueira e brasileira vai assistir
conformada aos desmandos que um diminuto grupo poderoso política e
economicamente faz para si mesmo, na Bacia do São Francisco e no Nordeste, com
vultuosos recursos públicos, sob o manto da democracia representativa, em nome
do “desenvolvimento” social e da proteção ambiental? Reciclam-se os discursos
(sustentabilidade) e os métodos (corrupção), para continuar a mesma sina
(dominação e exploração). O planeta dá sinais de que não suporta mais, a
humanidade se rebela em ruas e praças. Há esperança, e ela vem do povo unido e
organizado. Como neste 510º 4 de outubro, ao dar a quem tanto nos ofereceu o
“gole d’água” de sua luta pelo São
Francisco Vivo – Terra e Água, Rio e Povo!
Rio São Francisco, 4 de outubro de 2011.
Articulação Popular São Francisco Vivo.
Fonte: IHU | Notícias, 05/10/2011
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