Comentários sobre K., de Bernardo Kucinski
por Maria
Rita Kehl.
“Acendo a história, me apago em mim”; a
citação de Mia Couto que abre o romance de Bernardo Kucinski ganha seu pleno
sentido somente depois que o leitor chega à última página. “Apagar-se” na
tentativa de acender uma história que nunca foi contada é uma imagem que
sintetiza a epopéia do pai idoso à procura da filha desaparecida durante a
ditadura militar brasileira. Mas é também a posição do próprio narrador: é
possível que o estilo contido e preciso de Bernardo Kucisnki tenha sido
construído à custa de um corajoso e calculado método de apagamento subjetivo.
Na medida em que avançava na leitura de K.,
aumentava em mim a impressão de que só assim, apagando-se, teria sido possível
ao autor encontrar coragem para reconstituir o sofrimento do pai que procura em
vão pela filha e se convence aos poucos de que nunca a reencontrará, nem terá
direito a homenagear seus restos mortais. A contenção no estilo da narrativa,
longe de aparentar frieza ou impessoalidade, coloca o leitor em permanente
estado de alerta diante do campo minado do texto. Uma bomba de dor está para explodir
no capítulo seguinte, no parágrafo seguinte, enquanto a brutalidade que a
provocou se insinua, sistemática, a cada nova tentativa de K. encontrar
notícias da filha e do genro desaparecidos.
É preciso coragem para conduzir a narrativa, e com
ela, o leitor, pelos caminhos tenebrosos percorridos por quem procura notícias
assim, a esmo, um pouco às cegas, sem saber em quem confiar, à mercê de
armadilhas, chantagens, falsos informantes, delações. Caminhos que são eles
próprios o avesso da vida. O avesso do que a vida deveria ser. Coragem para
inventar o que mais se aproxima da verdade: a perspectiva subjetiva do inimigo.
Pois a narrativa de K. reconstitui a voz do delator, do torturador, da amante
do delegado e até daquele que se tornou símbolo do mal absoluto no Brasil da
década de 1970: Sérgio Paranhos Fleury.
É preciso apagar-se um pouco para conseguir dar voz
a quem certamente disse coisas como essas: “É isso aí, Mineirinho, vamos
espalhar boatos de onde os corpos estão. (...) a gente solta um, dá um tempo,
depois solta outro. Vamos matar esses caras de canseira”. (P.76). “...agora é
hora de limpar os arquivos, não deixar prova. (...) Entregar a moça, onde é que
esses caras estão com a cabeça? Mesmo que eles estivessem vivos, como é que eu
ia entregar, depois de tudo o que aconteceu? Não é para acabar com as provas?
Pois nós acabamos.” (p.77).
Talvez por isso, K. só pudesse ter sido escrito
quarenta anos depois do acontecido. No prefácio de A grande viagem, o escritor
espanhol Jorge Semprún escreve que precisou de 16 anos até obter o
distanciamento necessário para descrever sua passagem por um campo de
concentração nazista. Kucisnki precisou de mais tempo que isso, porque foi
muito além da introspecção necessária para reconstituir o passado em primeira
pessoa. Transportou-se por escrito para a perspectiva do pai, cada vez mais
desesperançado e mais envelhecido, cada vez mais obstinado em fazer tudo o que
estivesse ao seu alcance para encontrar – o que? Primeiro a filha; depois,
notícias de sua morte; a seguir, pelo menos uma ossada que pudesse sepultar; no
fim de tudo, o direito a uma matzeivá vazia no cemitério judaico onde apenas o
nome se perpetuasse e evocasse a morte.
Direito que também lhe foi negado pelo rabino, em
nome da ortodoxia contida nos livros sagrados, assim como lhe foi negado pelo
dono da pequena gráfica o direito de publicar um livrinho em memória da filha e
do genro: “como o senhor se atreve a trazer material subversivo para a minha
gráfica...?” (p.84). O pai se atreveu a isso e muito mais. O pai nem sabia de
fato o quanto se atrevia. “O pai que procura pela filha desaparecida não tem
medo de nada”.
A enorme angústia do pai diante do desaparecimento
da filha transforma-se aos poucos no desespero de não conseguir nem ao menos
uma inscrição simbólica de sua existência. Esta virá na forma modesta de nome
de rua em um loteamento na periferia do Rio de Janeiro, que um vereador de
esquerda conseguiu batizar em homenagem aos desaparecidos políticos. Na volta
da cerimônia, K. se espanta ao passar por uma avenida batizada com o nome do
criador do DOI-CODI, General Milton Tavares de Souza, também imortalizado numa
das pontes sobre a marginal Tietê, em São Paulo. Estranho costume dos
brasileiros, pensa o velho, de “homenagear bandidos e torturadores e golpistas
como se fossem verdadeiros benfeitores da humanidade” (p. 158).
O livro termina com uma crítica piedosa e elegante
a respeito da intransigência da direção de certas organizações, na luta armada,
que se recusaram a liberar seus militantes diante da obviedade da derrota e do
massacre iminentes. Mas não é este o alvo principal do belo romance histórico
de Bernardo Kucinski. Hoje, quando finalmente o Brasil anuncia a intenção de
pelo menos investigar os responsáveis pelos crimes de Estado cometidos durante
o regime militar (punir, como os argentinos, jamais!), K. deveria ser leitura
obrigatória para todos os membros da nossa tímida Comissão da Verdade, criada
com quatro décadas de atraso, no atual governo da ex-prisioneira política Dilma
Roussef.
(*) Artigo publicado originalmente no blog da Boitempo
Fonte: Carta Maior | Debate Aberto, 22/11/2011
Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e poeta, é
autora do livro "A mínima diferença - o masculino e o feminino na
cultura".
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