Entrevista
especial com José Cláudio Alves
“O Rio de Janeiro permite tiro de fuzil em
favela, mas não permite mais tiros de fuzil nas ruas da Zona Sul”, declara José
Cláudio Alves à IHU On-Line, referindo-se à ocupação
da Rocinha nos últimos dias.
Para ele, a ocupação anunciada aconteceu porque a “Rocinha é uma das favelas de
grande expressão no cenário do Rio de Janeiro, porque está na fronteira entre a
área da Zona Sul e a área que vai para a Zona Oeste, para a Barra da Tijuca,
para São Conrado. Atrás da Rocinha também tem a Gávea, então, a favela fica
localizada numa das áreas mais ricas da cidade. Portanto, jamais seria feita
uma ocupação usando a mesma lógica que se utilizou no Alemão”.
Na
avaliação do sociólogo, a Rocinha
é diferente das demais favelas do Rio de Janeiro porque é formada por uma população
nordestina que tem presença muito forte em toda a área da Zona Sul. “A Rocinha
expressa o interesse racial da classe dominante daquela região, que tem
preferência por ter, dentro de seus prédios, pessoas brancas”, aponta.
Para o
sociólogo, a prisão
do traficante Nem é
estratégica, mas ele continuará controlando o tráfico de dentro do presídio.
“Ele vai ser penalizado e sabe disso, mas, por outro lado, ele também sabe que
a sua liderança será preservada até porque, para que a estrutura que está
montada na Rocinha se mantenha, é preciso realizar um acordo com ele. A
intenção da polícia agora é ocultar o tráfico de droga, de armas sob um manto
de uma pacificação da polícia”, avalia.
Na
entrevista a seguir, concedida por telefone para a IHU On-Line, Alves questiona a estrutura policial, fala
dos desafios
das UPPs e dos acordos
estabelecidos entre os traficantes e os policiais. E questiona: “O que mudou
nesse país desde 1960? Uma juíza
foi assassinada recentemente e
umdeputado
estadual tem que sair do país para
poder sobreviver”. E responde: “Hoje nós temos uma estrutura democrática,
legítima, eleita, fazendo algo muito mais grave, muito mais intrincado e
percolado do que a ditadura foi capaz de fazer”.
José
Cláudio Souza Alves é graduado em Estudos
Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em sociologia pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor na mesma
área pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente é professor na
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line
– Como o senhor analisa a anunciada ocupação da Rocinha e a forma como a favela
foi ocupada? A ocupação foi anunciada pelo fato de a Rocinha estar localizada
entre bairros de classe média?
José
Claudio Alves – Naquela época, quando
houve a invasão
do Complexo Alemão, a polícia já havia anunciado a possibilidade de ocupar
a Rocinha. Naquele momento eu disse que a ocupação não aconteceria da mesma
forma que aconteceu no Alemão, ou seja, como uma construção político-midiática,
com o uso de armamento de guerra, com tanques passando por cima de carros, com
o Exército entrando nas ruas, etc.
A Rocinha é
uma das favelas de grande expressão no cenário do Rio de Janeiro, porque está
na fronteira entre a área da Zona Sul e a área que vai para a Zona Oeste, para
a Barra da Tijuca, para São Conrado. Atrás da Rocinha também tem a Gávea,
então, a favela fica localizada numa das áreas mais ricas da cidade. Portanto,
jamais seria feita uma ocupação usando a mesma lógica utilizada no Alemão. Não
é possível fazer o mesmo tipo de ocupação porque a classe média não permite.
Além disso, o Estado e os grupos políticos não possuem interesse em promover
tal tipo de ação, porque isso assustaria os moradores da Zona Sul. Lembre-se
que o Rio de Janeiro permite tiro de fuzil em favela, mas não permite mais
tiros de fuzil nas ruas da Zona Sul.
Segurança
pública diferenciada
A questão
da segurança pública tem tratamento diferenciado para cada segmento social, e a
Rocinha expõe demais a Zona Sul para que se possa fazer a mesma coisa que se
fez no Alemão. Por isso a ocupação
da favela foi anunciada e não houve confrontos, tiroteios. A ocupação está
sendo negociada há muito tempo. Há um acordo progressivo de reestruturação do
crime naquela comunidade para viabilizar os interesses do tráfico, que vai
continuar. A favela permite o acesso às drogas por parte da classe média
da Zona Sul, de São Conrado, da Barra. Artistas e músicos consomem drogas
dentro da Rocinha, e a favela é uma das áreas mais seguras para consumo de
drogas no Rio de Janeiro, porque ninguém importuna a Rocinha. Há muitos anos se
estabeleceu o turismo dentro da favela e lá também existem mais de 200 ONGs que
têm um histórico de relação com a Zona Sul, com a sociedade, com a classe
média, com a classe artística.
Apesar de a
favela ter sido ocupada, isto não significa que a comunidade mais pobre da
Rocinha não vá sofrer as mesmas consequências que a comunidade do Alemão sofreu.
Depois da ocupação da favela, foram encontradas inúmeras armas que haviam sido
enterradas pelos traficantes. É claro que a polícia sabia onde estava esse
material, porque isso faz parte do acordo entre a polícia e os traficantes. O
problema é que as armas, como aconteceu no Alemão, podem vir a ser
comercializadas.
IHU On-Line
– Pode nos contar a história da Rocinha, que é considerada por muitos
pesquisadores a maior favela da América Latina? Como a favela surgiu e se
modificou ao longo dos anos? E o que diferencia a Rocinha das demais favelas?
José
Claudio Alves – A Rocinha
é uma favela muito específica. Ela não tem, como na maioria das comunidades
do Rio de Janeiro, muitos habitantes negros. Há uma maciça presença de
nordestinos brancos, principalmente cearenses. Essa população nordestina tem
uma presença muito forte em toda a área da Zona Sul, porque eles trabalham para
a classe média. A Rocinha expressa o interesse racial da
classe dominante daquela região, que tem preferência por ter, dentro de seus
prédios, pessoas brancas. Isso está expresso na composição étnica da comunidade
da Rocinha. Os moradores da favela trabalham como garçons, atuam na construção
civil, prestam serviços de jardinagem, etc. Há uma relação direta dessa população
com a mão-de-obra local. No Alemão, a maioria da população é negra e trabalha
na periferia, nos lugares em que a classe média não vê problema nenhum em
deixar o negro e o pobre trabalhando.
Dentro da Rocinha se constituiu um grande comércio
em termos de restaurantes, lojas, prestação de serviços. A população da Zona
Sul tem acesso também a tais espaços. Ao longo do tempo, a Rocinha também foi
se constituindo uma área de interesse de várias ONGs para implantar seus
projetos. Atuam na comunidade ONGs sérias, que tem de fato uma relação com a
população, mas inúmeras delas estão vinculadas a outros interesses políticos e
econômicos. A família Andrea
Gouvêa tem sua base dentro da
Rocinha por causa de interesses políticos. Existe um livro chamado Sorria,
você está na Rocinha, do Julio Ludemir,
que retrata essa situação. Ele morou na Rocinha
e teve que sair da favela porque, se não saísse, seria morto pelas ONGs. No
livro ele retrata todo este universo de interesses de grupos não
governamentais.
No início
dos anos 2000 aconteceu um confronto aberto entre policiais e traficantes
dentro da Rocinha e a mídia toda do Rio de Janeiro veiculou isso. A Rocinha foi
mencionada na mídia internacional. O confronto se estendeu para a autoestrada
da Lagoa/Barra, onde circula a classe média com poder aquisitivo elevado.
Depois disso, não houve mais confrontos porque a população rica da região não
pode se sentir ameaçada. Afinal de contas, matar pobre favelado no Alemão não
tem problema nenhum. Agora, atingir o interesse privado, a individualidade
blindada que está circulando livremente, é inaceitável.
Depois
desse acontecimento, retomou-se o debate sobre a remoção de favelas, e eu fui para
a Rocinha conhecer a história daquela comunidade. É uma história surreal. Dois
grupos estavam em confronto. De um lado, estava o Comando Vermelho, que
anteriormente dominava a comunidade e, de outro, os Amigos dos Amigos, que hoje controla
o crime organizado na região. Na época, o traficante líder na Rocinha havia
saído da prisão e, na ocasião, o Bope entrou na comunidade obrigando os
traficantes que estavam lá a entrarem em confronto com a polícia. Toda a
atenção dos traficantes se voltou para o confronto com esta operação militar.
Enquanto isso, por trás da favela, pela estrada da Gávea, entrava na Rocinha um
comboio do traficante que havia sido libertado. Esse comboio passou por
inúmeros carros do aparato policial e ocupou a favela pelo outro lado. A partir
disso, percebe-se que essa foi uma operação casada para garantir a
reestruturação do tráfico dentro da favela, de acordo com os interesses do
aparato policial que esteve vinculado a isso.
Os
moradores contam essa história e dizem que, na favela, ocorrem inúmeras
negociações e “jogadas” que envolvem muito dinheiro, e afirmam que há uma
relação direta da comunidade com a Zona Sul e a Zona Oeste rica da cidade. Essa
situação precisa ser compreendida para entender o que está acontecendo na
Rocinha neste momento. Essa facção, que em função de um acordo entrou na
Rocinha no início dos anos 2000 para controlar a favela, permanece fazendo
acordos e negociando a sua continuidade na comunidade, sem ferir os interesses
dos vários grupos envolvidos, sobretudo, os interesses do próprio aparato
policial que está ali comprometido.
IHU On-Line
– Quem é o traficante Nem? O que a prisão dele significa e como o senhor avalia
a exibição do traficante como troféu por parte da polícia?
José
Claudio Alves – Há alguns meses Nem
estava retornando do Vidigal com um comboio de traficantes – ele ia com
frequência para o Vidigal participar de festas –, quando aconteceu um confronto
entre policiais militares e traficantes. Os traficantes se alojaram dentro de
um Hotel próximo à Barra da Tijuca, e a classe média ficou em pânico. A mídia
veiculou a notícia de que um número grande de traficantes participou da
operação, mas um jornalista do jornal O Globo investigou
o caso e descobriu que a operação dos policiais não tinha sido autorizada pelos
superiores. A partir dessa situação, percebemos que os policiais foram ao
encontro do Nem para obter mais dinheiro. Há uma prática muito comum no Rio de
Janeiro em que policiais sequestram traficantes e depois pedem resgate por eles.
A meu ver, era essa a operação que iria ocorrer ali. Esse fato já revela que
havia um acordo entre a polícia e os traficantes.
O Nem
tem peso no Rio de Janeiro porque
ele está em uma favela estratégica, que consome muita droga e gera bastante
dinheiro. Ele nunca vai expor toda a estrutura do tráfico, porque isso faz
parte do jogo. Ele vai ser penalizado e sabe disso, mas, por outro lado, ele
também sabe que a sua liderança será preservada até porque, para que a
estrutura que está montada na Rocinha se mantenha, é preciso realizar um acordo
com ele. A intenção da polícia agora é ocultar o tráfico de drogas, de armas
sob um manto de uma pacificação da polícia. A polícia tem interesse em
preservá-lo, em expor somente o necessário para que todos o vejam como o grande
criminoso. Ele é o cara que vai, de dentro da estrutura penitenciária do estado
do Rio de Janeiro, comandar o tráfico na Rocinha para que acordos construídos
anteriormente sejam mantidos.
O Nem é
mais um refém dessa estrutura, assim como os policiais envolvidos em interesses
de banqueiros, empresários, artistas que querem ter acesso às drogas. Os
policiais e os traficantes são meros vigilantes dos interesses desse imenso
comércio do tráfico de drogas. A manutenção desse sistema gera dividendos para
os interessados. O Nem e esse aparato policial que faz essa operação ficcional
geram um simbolismo que convence a população e faz com que a sociedade acredite
que, de fato, a Rocinha será algo melhor e diferente. Não é isso que vai
acontecer. A Rocinha viverá agora uma nova fase, a qual
não irá alterar a situação de pobreza, sofrimento e de dependência do tráfico.
IHU On-Line
– Como acontece esse acordo entre traficantes e a polícia para a ocupação da
Rocinha? E que acordos acontecerão daqui para frente?
José
Claudio Alves – Ninguém faz ata desses
acordos. Eles são verbais e aqueles que estão na ponta do sistema fazem com que
eles vigorem. As lideranças das comunidades é que têm peso nessas negociações,
além de representantes de políticos. Não sei dizer quem são as pessoas que
atualmente estão negociando. Por enquanto não é possível saber essas
informações. Só será possível ir à Rocinha mais tarde, quando a “poeira
baixar”.
Quem está
dando as ordens na Rocinha agora é o aparato policial. É claro que inicialmente
a comunidade fica aliviada, porque sabe que não irão acontecer confrontos
nos próximos meses, mas isso não resolve a situação.
IHU On-Line
– Quais serão os desafios das UPPs na Rocinha e no Vidigal?
José
Claudio Alves – O primeiro desafio é
superar a questão da policização, entender que essa polícia não é o principal
agente identificado nessas comunidades. Precisaria se estabelecer um diálogo
com a comunidade, assim como compreender a história dessas favelas. Seria
fundamental dar voz para as lideranças da comunidade para que elas possam ser
atores de sua própria transformação, da sua própria realidade política. Tinha
que alterar essa dependência que a comunidade tem com o tráfico de drogas e de
tudo que está associado ao tráfico.
Para mudar
essa realidade, é preciso implementar várias políticas articuladas entre si,
especialmente na área da educação. As famílias precisam receber acompanhamento
psicológico e social. Seria fundamental gerar renda nessas comunidades para não
fazê-las depender do dinheiro do tráfico. Além de oferecer acesso a transporte,
seria necessário urbanizar urbanizar as favelas para que elas não sejam um
ambiente degradado.
Na Rocinha
e no Alemão existem áreas ambientais extremamente degradadas e não há nenhum
projeto de recuperação ambiental para essas áreas. A transformação de tais
comunidades demandaria um investimento muito alto por parte do Estado.
Entretanto, o Estado quer ganhar dinheiro, não investir. Os governos têm
interesse nos megaeventos que vão ocorrer no Rio de Janeiro e, portanto, não
deixaram de investir no Porto Maravilha, que é uma área estratégica que envolve
todo o setor financeiro e imobiliário do Rio de Janeiro, para investir recursos
na Rocinha.
As UPPs
são insignificantes porque
ocupam apenas 70 das mil comunidades existentes no Rio de Janeiro. As UPPs
entram em áreas estratégicas para o Estado. A zona oeste é distante de tudo, e
é o local mais degrado do Rio de Janeiro. Campo Grande, Santa Cruz, Bangu,
Realengo, Padre Miguel são as áreas mais violentas, juntamente com o subúrbio.
Para investir em segurança, é fundamental repensar a cidade.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a recente saída de Marcelo
Freixo do Brasil por causa de ameaças de morte?
José Claudio Alves – Marcelo levou à condenação vários envolvidos
com o crime e com as milícias. Ele tem poder para interferir, assim como a juíza
Patrícia Acioli tinha. A
mídia disse que Patrícia Acioli tinha a mão pesada, mas não é nada disso. Ela
apenas cumpria sua função como juíza: condenava e julgava as pessoas de acordo
com os seus crimes. O que o Marcelo está fazendo é dever de todo deputado
estadual do Rio de Janeiro. A saída dele do país foi determinante para ele
sobreviver. É deplorável que uma sociedade como a do Rio de Janeiro tenha que
assistir a isso.
A rede
é tão complexa e tão grande, que quem mexe numa ponta dessa rede poderá ser
atingido e morto por outro grupo. Quando entrevistei a promotora pública Tânia Maria de Sales Moreira, que
já faleceu, ela estava investigando o caso das mães
de Acari, que estavam tentando descobrir o paradeiro dos corpos de onze
filhos que desapareceram de uma festa. Ela descobriu que um dos envolvidos no
assassinato dos jovens tinha envolvimento com roubo de carga, e que um grupo de
extermínio chamado Cavalos
Corredores também
estava envolvido nos assaltos. Ora, esse grupo cometeu a chacina
de Vigário Geral alguns anos
depois, em 1993. Tânia me disse que, se eles tivessem avançado na investigação
das mães de Acari, Vigário Geral não teria acontecido, porque os Cavalos
Corredores teriam
sido desarticulados. No Rio de Janeiro há uma rede complexa do crime. Marcelo puxou uma ponta dessa rede, assim como
a Patrícia Acioli puxou outra. Só que ao mexer em alguma
ponta desta teia, mexe-se com a rede inteira, e a exposição de quem faz isso é
imensa. As pessoas não sabem por quem serão atingidas.
Ele agiu corretamente ao sair do país por alguns dias. Marcelo
Freixo hoje é uma das pessoas
que mais luta pelos direitos humanos no Brasil, mas, infelizmente não podemos
contar com a estrutura do poderes Judiciário, Legislativo e Executivo. É mais
fácil para o Marcelo fazer denúncias internacionais, porque
elas geram uma repercussão dentro do país e levam a população e as autoridades
a fazerem modificações.
O que mudou nesse país desde 1960? Uma juíza foi assassinada
recentemente e um deputado estadual tem que sair do país para poder sobreviver.
Hoje nós temos uma estrutura democrática, legítima, eleita, fazendo algo muito
mais grave, muito mais intrincado e percolado do que a ditadura foi capaz de
fazer. Ao longo desses 40 e poucos anos transformamos uma estrutura ilegal e criminosa
numa estrutura legal, criminosa, com um interferente muito mais profundo.
Conseguimos derrubar a ditadura e agora, como derrubar uma estrutura como essa,
instalada no Rio de Janeiro?
Assim como o Nem é chave para o acordo da permanência do tráfico
na Rocinha, o Marcelo é uma peça-chave para outro grupo
dentro dessa cidade. O acordo do Nem é muito mais poderoso e muito mais
articulado do que o acordo que rege a permanência do Freixo no Brasil. Os dois representam
espaços e projetos da cidade, espaços sociais, concepções políticas, concepções
econômicas distintas dentro dessa realidade. Como a situação será organizada
daqui para a frente é, ao meu ver, o nosso grande dilema.
(por Patricia
Fachin, Stéfanie Telles e Rafaela Kley)
Fonte: IHU | Notícias, 21/11/2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário