sexta-feira, novembro 25, 2011

“a dívida não se paga, a dívida se rola”

Aspectos da dívida pública federal

Converteu-se em realidade uma frase que ficou famosa no início da década de 1980, quando o Brasil enfrentava uma grave crise de liquidez. À época, no auge da renegociação de nossa dívida externa em 1982, Delfim Netto, o todo-poderoso da área econômica do governo da ditadura, afirmou: “a dívida não se paga, a dívida se rola”.
A Secretaria do Tesouro Nacional (STN), subordinada ao Ministério da Fazenda (MF), divulgou recentemente seu boletim periódico, contendo as informações relativas ao comportamento da dívida pública federal. O balanço refere-se à situação do endividamento da União até o final do mês de outubro de 2011. A leitura do documento nos informa que o volume total da dívida pública federal atingiu a cifra de R$ 1.807 bilhões, ou seja, R$ 1,8 trilhão. Isso significa que teria ocorrido uma elevação correspondente a R$ 162 bi no valor total da dívida ao longo dos últimos 12 meses, uma vez que o valor para outubro do ano passado havia sido de R$ 1.645 bi. Assim, não obstante o pagamento de mais de R$ 140 bi a título de juros da dívida pública no mesmo período, o Estado brasileiro ainda promoveu o crescimento do valor do principal da dívida da União em 10%. [1] 
Antes de avançarmos um pouco mais na análise das informações ali contidas, talvez valha a pena discutirmos o próprio conceito de dívida pública e as diferentes aspectos metodológicos existentes para o caso brasileiro. Em uma abordagem mais básica, o processo de endividamento de qualquer Estado-Nação só se justificaria em situações onde o balanço de sua situação fiscal (receitas x despesas) esteja desequilibrado. Em tais condições, estando o governo sem condições financeiras de fazer face às suas obrigações, ele se vê obrigado a buscar recursos para além das fontes tradicionais de suas receitas, como é o caso dos tributos.
Valendo-se de sua condição – teórica, ao menos - de agente portador de elevado grau de credibilidade, o Estado lança títulos públicos, em que promete honrar os compromissos ali constantes. Por meio de tal operação, o setor privado adianta recursos líquidos aos cofres públicos (dinheiro à vista) e fica com um papel em suas mãos. Trata-se de uma promessa de pagamento do montante emprestado, adicionado das cláusulas de rendimento financeiro previstas em cada caso. No jargão do “financês”, refere-se ao valor de face mais os juros.
No passado, a maior parte dos casos em que se operava o recurso ao endividamento público podiam ser resumidos a duas situações exemplares. De um lado, os quadros de descontrole fiscal básico, onde um aumento inesperado de despesas ou súbita redução de receitas traziam dificuldades para encerrar o exercício orçamentário. De outro lado, o aumento da dívida pública era quase sempre utilizado como mecanismo para assegurar ciclos de investimento estatal. Ou seja, antecipar recursos para viabilizar o crescimento econômico futuro. No primeiro caso, o endividamento já nasce com sintomas de dúvida, pois o ente que busca recursos passa por uma crise conjuntural e isso pode ser sinalizador de eventual dificuldade para honrar o compromisso mais à frente. No segundo caso, a leitura de quem empresta pode ser mais otimista, uma vez que o recurso vai para investimento e o Estado teria melhores condições de retornar o pagamento no futuro próximo. [2] 
Além disso, existe outra importante modalidade de acesso ao endividamento público. Trata-se do Estado sair em busca de recursos junto a instituições financeiras ou governamentais no exterior. O país devedor emite promessas de dívida em moeda estrangeira e recebe os recursos nesse tipo de divisa. Porém, para fazer face ao seu compromisso, ele deverá acumular recursos dessa mesma natureza. Para tanto, passa a ser importante a análise e acompanhamento de seu desempenho no setor externo (balanço entre exportações e importações) – condição mais favorável para gerar excedentes externos e pagar os compromissos da dívida assumida.
No entanto, o próprio desenvolvimento do capitalismo, a sofisticação do mercado financeiro e o crescimento da importância do Estado na atividade econômica fizeram com que as condições objetivas do processo de endividamento público se tornassem muito mais complexas do que as situações acima expostas. Os mecanismos por meio dos quais os Estados passaram a arrecadar recursos junto ao setor privado – os títulos públicos – se autonomizaram no mercado mobiliário e passaram a ganhar vida econômico-financeira própria, quase independente. As instituições compram e vendem títulos inicialmente emitidos por governos como simples mercadorias no mercado secundário, terciário e por aí vai. Fonte de lucro e especulação pura. Quanto maior risco do governo não honrar o compromisso, maior é a chamada “taxa de desconto” sobre o valor de face do título. E esse é o início do caminho para a jogatina, para as revoadas avassaladoras de capitais, para as chantagens dos operadores do mercado internacional sobre governos impotentes.
Além disso, o volume total do endividamento público cresceu a níveis assustadores, para a grande maioria dos países do mundo. Tanto que, cada vez mais, se raciocina em termos da capacidade de honrar os compromissos da dívida (juros e serviços correlatos) e nem tanto em honrar os valores relativos ao chamado “principal” da dívida contraída. Converteu-se em realidade uma frase que ficou famosa no início da década de 1980, quando o Brasil enfrentava uma grave crise de liquidez e dificuldade para cumprir seus compromissos com a banca estrangeira. À época, no auge da renegociação de nossa dívida externa em 1982, Delfim Netto, o todo-poderoso da área econômica do governo da ditadura, disse que “a dívida não se paga, a dívida se rola”. Ou seja, o Ministro do General Figueiredo afirmava com todas as letras aquilo que todo mundo nos meios empresarial e governamental sabia e não tinha a coragem política de dizer: o Brasil não apresentava condições de pagar o total de sua dívida. E pleiteava condições de renegociação junto às instituições financeiras. O problema é que o acordo assinado com o FMI foi desastroso para nossa economia. Mas aí já é uma outra história...
O ponto a reter aqui é que passou a ganhar relevância um novo aspecto do endividamento. Aquilo que em economês se chama de diferença entre as variáveis “estoque” e as variáveis “fluxo”. No caso, o estoque sendo o volume total acumulado da dívida do Estado e o fluxo sendo os juros pagos periodicamente em função dos compromissos assumidos no momento do endividamento. O Japão é talvez o caso mais sintomático dos países desenvolvidos, uma vez que sua dívida corresponde a mais de 200% de seu PIB. Os Estados Unidos apresentam uma dívida equivalente a 100% de seu PIB. Canadá, Inglaterra, França e Alemanha, por sua vez, situam-se entre 75% e 85%. Para o Brasil, o coeficiente de endividamento em relação ao PIB é de aproximadamente 50%. Esse indicador foi criado como uma tentativa de medir a chamada “capacidade de pagamento” do Estado devedor. Ou seja, qual a porcentagem que o estoque de dívida pública representa sobre o total de bens e serviços gerados por um país num determinado ano. No limite, esse índice significa pouco. Mas oferece alguma idéia a respeito de eventual facilidade/dificuldade em honrar aquele compromisso no curto, médio e longo prazos. 
Os impactos variam muito segundo o país considerado, é claro. A dívida pública norte-americana é claramente impagável. Mas nem por isso, aquele país sofre as pressões e conseqüências sociais e econômicas a que estão sendo submetidos outros que apresentam índices menores, como Grécia, Espanha e Itália, por exemplo. O que normalmente ocorre para o fenômeno descrito por Delfim Netto é que, uma vez chegado o momento do vencimento, o Estado não paga a dívida como previsto no título. E emite um novo papel para substituir o antigo, com vencimento mais à frente e nova promessa de pagamento. É a tal da rolagem da dívida. Uma ciranda financeira baseada na credibilidade, mas com alto grau de incerteza e especulação.
O fato é que a autonomização dos títulos das dívidas públicas como mercadorias específicas e o processo crescente de financeirização das atividades econômicas pelo mundo afora tornou mais importante a preocupação do ente emissor com a capacidade de honrar o fluxo de juros e serviços do que com o montante do principal. Para recuperar a frase do Delfim: a dívida a gente rola! Desde, é claro, que os demais agentes no mercado financeiro internacional estejam de acordo ou se sintam obrigados a aceitar tal condição. Além do mais, os níveis e valores são tão mastodonticamente elevados, que reduções nos “ativos a receber” passam a ser aceitas e incorporadas pelo próprio sistema. Em alguns casos, com a criação de novas dívidas para cobrir os rombos passados ou então apenas “acusando o golpe”, como se diz no boxe, e tocando a bola prá frente. A Argentina e o Equador, por exemplo, recentemente promoveram uma redução unilateral no valor de face das dívidas assumidas por governos anteriores e nem por isso perderam acesso ao crédito no mercado internacional. Ou seja, tudo se passa como se o sistema estivesse mesmo preparado para essa eventualidade: incorporar uma perda definitiva em seus balanços.
E agora, voltando ao boletim da STN. Outro elemento importante refere-se a um indicador destacado pela STN no relatório. É o chamado “custo da dívida pública federal”. O documento aponta que, entre setembro e outubro de 2011, teria havido uma “redução” no item de 13% para 12,5% ao ano. Uma loucura! Apesar da ligeira queda, o custo é elevadíssimo! Como a maior parte da dívida é composta por títulos indexados à SELIC, o custo que o Tesouro Nacional tem que pagar é muito elevado. E toda a sociedade acaba sendo obrigada a arcar com esse ônus, pois os recursos saem do Orçamento da União, que deixa de gastar com áreas essenciais como saúde, educação, previdência, saneamento, etc. Façamos a conta por baixo: 12,5% de R$ 1,8 tri resultam em R$ 225 bilhões. Esse seria o volume necessário apenas para pagar os juros da dívida pública com títulos da União durante 12 meses!
Caso houvesse disposição do governo para reduzir a taxa SELIC ou alterar a composição dos títulos da dívida, a economia obtida com as despesas financeiras seria significativa. Uma taxa oficial de juros de 6% ao ano, por exemplo, reduziria tais gastos parasitas a mais da metade, liberando recursos para compromissos orçamentários mais efetivos. A dívida continuaria a ser rolada e as despesas para tanto pesariam menos sobre os ombros da maioria da população.
NOTAS
[2] Há também os casos em que o Estado simplesmente lança mão do recurso à emissão de moeda para gerar os recursos necessários. Em tese isso não provoca aumento da dívida, mas aí surge o problema da inflação causada pelo uso descontrolado desse subterfúgio.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto, 24/11/2011

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