Aspectos da dívida pública federal
por Paulo Kliass
A Secretaria do Tesouro Nacional (STN),
subordinada ao Ministério da Fazenda (MF), divulgou recentemente seu boletim
periódico, contendo as informações relativas ao comportamento da dívida pública
federal. O balanço refere-se à situação do endividamento da União até o final
do mês de outubro de 2011. A
leitura do documento nos informa que o volume total da dívida pública federal
atingiu a cifra de R$ 1.807 bilhões, ou seja, R$ 1,8 trilhão. Isso significa
que teria ocorrido uma elevação correspondente a R$ 162 bi no valor total da
dívida ao longo dos últimos 12 meses, uma vez que o valor para outubro do ano
passado havia sido de R$ 1.645 bi. Assim, não obstante o pagamento de mais de
R$ 140 bi a título de juros da dívida pública no mesmo período, o Estado
brasileiro ainda promoveu o crescimento do valor do principal da dívida da
União em 10%. [1]
Antes de avançarmos um pouco mais na análise das
informações ali contidas, talvez valha a pena discutirmos o próprio conceito de
dívida pública e as diferentes aspectos metodológicos existentes para o caso
brasileiro. Em uma abordagem mais básica, o processo de endividamento de
qualquer Estado-Nação só se justificaria em situações onde o balanço de sua
situação fiscal (receitas x despesas) esteja desequilibrado. Em tais condições,
estando o governo sem condições financeiras de fazer face às suas obrigações,
ele se vê obrigado a buscar recursos para além das fontes tradicionais de suas
receitas, como é o caso dos tributos.
Valendo-se de sua condição – teórica, ao menos - de
agente portador de elevado grau de credibilidade, o Estado lança títulos
públicos, em que promete honrar os compromissos ali constantes. Por meio de tal
operação, o setor privado adianta recursos líquidos aos cofres públicos (dinheiro
à vista) e fica com um papel em suas mãos. Trata-se de uma promessa de
pagamento do montante emprestado, adicionado das cláusulas de rendimento
financeiro previstas em cada caso. No jargão do “financês”, refere-se ao valor
de face mais os juros.
No passado, a maior parte dos casos em que se
operava o recurso ao endividamento público podiam ser resumidos a duas
situações exemplares. De um lado, os quadros de descontrole fiscal básico, onde
um aumento inesperado de despesas ou súbita redução de receitas traziam
dificuldades para encerrar o exercício orçamentário. De outro lado, o aumento
da dívida pública era quase sempre utilizado como mecanismo para assegurar
ciclos de investimento estatal. Ou seja, antecipar recursos para viabilizar o
crescimento econômico futuro. No primeiro caso, o endividamento já nasce com
sintomas de dúvida, pois o ente que busca recursos passa por uma crise
conjuntural e isso pode ser sinalizador de eventual dificuldade para honrar o
compromisso mais à frente. No segundo caso, a leitura de quem empresta pode ser
mais otimista, uma vez que o recurso vai para investimento e o Estado teria
melhores condições de retornar o pagamento no futuro próximo. [2]
Além disso, existe outra importante modalidade de
acesso ao endividamento público. Trata-se do Estado sair em busca de recursos
junto a instituições financeiras ou governamentais no exterior. O país devedor
emite promessas de dívida em moeda estrangeira e recebe os recursos nesse tipo
de divisa. Porém, para fazer face ao seu compromisso, ele deverá acumular
recursos dessa mesma natureza. Para tanto, passa a ser importante a análise e
acompanhamento de seu desempenho no setor externo (balanço entre exportações e
importações) – condição mais favorável para gerar excedentes externos e pagar
os compromissos da dívida assumida.
No entanto, o próprio desenvolvimento do
capitalismo, a sofisticação do mercado financeiro e o crescimento da
importância do Estado na atividade econômica fizeram com que as condições
objetivas do processo de endividamento público se tornassem muito mais
complexas do que as situações acima expostas. Os mecanismos por meio dos quais
os Estados passaram a arrecadar recursos junto ao setor privado – os títulos
públicos – se autonomizaram no mercado mobiliário e passaram a ganhar vida
econômico-financeira própria, quase independente. As instituições compram e
vendem títulos inicialmente emitidos por governos como simples mercadorias no
mercado secundário, terciário e por aí vai. Fonte de lucro e especulação pura.
Quanto maior risco do governo não honrar o compromisso, maior é a chamada “taxa
de desconto” sobre o valor de face do título. E esse é o início do caminho para
a jogatina, para as revoadas avassaladoras de capitais, para as chantagens dos
operadores do mercado internacional sobre governos impotentes.
Além disso, o volume total do endividamento público
cresceu a níveis assustadores, para a grande maioria dos países do mundo. Tanto
que, cada vez mais, se raciocina em termos da capacidade de honrar os
compromissos da dívida (juros e serviços correlatos) e nem tanto em honrar os
valores relativos ao chamado “principal” da dívida contraída. Converteu-se em
realidade uma frase que ficou famosa no início da década de 1980, quando o
Brasil enfrentava uma grave crise de liquidez e dificuldade para cumprir seus
compromissos com a banca estrangeira. À época, no auge da renegociação de nossa
dívida externa em 1982, Delfim Netto, o todo-poderoso da área econômica do
governo da ditadura, disse que “a dívida não se paga, a dívida se rola”. Ou
seja, o Ministro do General Figueiredo afirmava com todas as letras aquilo que
todo mundo nos meios empresarial e governamental sabia e não tinha a coragem
política de dizer: o Brasil não apresentava condições de pagar o total de sua
dívida. E pleiteava condições de renegociação junto às instituições
financeiras. O problema é que o acordo assinado com o FMI foi desastroso para
nossa economia. Mas aí já é uma outra história...
O ponto a reter aqui é que passou a ganhar
relevância um novo aspecto do endividamento. Aquilo que em economês se chama de
diferença entre as variáveis “estoque” e as variáveis “fluxo”. No caso, o
estoque sendo o volume total acumulado da dívida do Estado e o fluxo sendo os
juros pagos periodicamente em função dos compromissos assumidos no momento do
endividamento. O Japão é talvez o caso mais sintomático dos países
desenvolvidos, uma vez que sua dívida corresponde a mais de 200% de seu PIB. Os
Estados Unidos apresentam uma dívida equivalente a 100% de seu PIB. Canadá,
Inglaterra, França e Alemanha, por sua vez, situam-se entre 75% e 85%. Para o
Brasil, o coeficiente de endividamento em relação ao PIB é de aproximadamente
50%. Esse indicador foi criado como uma tentativa de medir a chamada
“capacidade de pagamento” do Estado devedor. Ou seja, qual a porcentagem que o
estoque de dívida pública representa sobre o total de bens e serviços gerados
por um país num determinado ano. No limite, esse índice significa pouco. Mas
oferece alguma idéia a respeito de eventual facilidade/dificuldade em honrar
aquele compromisso no curto, médio e longo prazos.
Os impactos variam muito segundo o país
considerado, é claro. A dívida pública norte-americana é claramente impagável.
Mas nem por isso, aquele país sofre as pressões e conseqüências sociais e
econômicas a que estão sendo submetidos outros que apresentam índices menores,
como Grécia, Espanha e Itália, por exemplo. O que normalmente ocorre para o
fenômeno descrito por Delfim Netto é que, uma vez chegado o momento do
vencimento, o Estado não paga a dívida como previsto no título. E emite um novo
papel para substituir o antigo, com vencimento mais à frente e nova promessa de
pagamento. É a tal da rolagem da dívida. Uma ciranda financeira baseada na
credibilidade, mas com alto grau de incerteza e especulação.
O fato é que a autonomização dos títulos das
dívidas públicas como mercadorias específicas e o processo crescente de
financeirização das atividades econômicas pelo mundo afora tornou mais
importante a preocupação do ente emissor com a capacidade de honrar o fluxo de
juros e serviços do que com o montante do principal. Para recuperar a frase do
Delfim: a dívida a gente rola! Desde, é claro, que os demais agentes no mercado
financeiro internacional estejam de acordo ou se sintam obrigados a aceitar tal
condição. Além do mais, os níveis e valores são tão mastodonticamente elevados,
que reduções nos “ativos a receber” passam a ser aceitas e incorporadas pelo
próprio sistema. Em alguns casos, com a criação de novas dívidas para cobrir os
rombos passados ou então apenas “acusando o golpe”, como se diz no boxe, e
tocando a bola prá frente. A Argentina e o Equador, por exemplo, recentemente
promoveram uma redução unilateral no valor de face das dívidas assumidas por
governos anteriores e nem por isso perderam acesso ao crédito no mercado
internacional. Ou seja, tudo se passa como se o sistema estivesse mesmo
preparado para essa eventualidade: incorporar uma perda definitiva em seus
balanços.
E agora, voltando ao boletim da STN. Outro elemento
importante refere-se a um indicador destacado pela STN no relatório. É o
chamado “custo da dívida pública federal”. O documento aponta que, entre
setembro e outubro de 2011, teria havido uma “redução” no item de 13% para
12,5% ao ano. Uma loucura! Apesar da ligeira queda, o custo é elevadíssimo!
Como a maior parte da dívida é composta por títulos indexados à SELIC, o custo
que o Tesouro Nacional tem que pagar é muito elevado. E toda a sociedade acaba
sendo obrigada a arcar com esse ônus, pois os recursos saem do Orçamento da
União, que deixa de gastar com áreas essenciais como saúde, educação,
previdência, saneamento, etc. Façamos a conta por baixo: 12,5% de R$ 1,8 tri
resultam em R$ 225 bilhões. Esse seria o volume necessário apenas para pagar os
juros da dívida pública com títulos da União durante 12 meses!
Caso houvesse disposição do governo para reduzir a
taxa SELIC ou alterar a composição dos títulos da dívida, a economia obtida com
as despesas financeiras seria significativa. Uma taxa oficial de juros de 6% ao
ano, por exemplo, reduziria tais gastos parasitas a mais da metade, liberando
recursos para compromissos orçamentários mais efetivos. A dívida continuaria a
ser rolada e as despesas para tanto pesariam menos sobre os ombros da maioria
da população.
NOTAS
[1] Ver:http://www.stn.fazenda.gov.br/hp/downloads/divida_publica/relatoriodpf2011/relatorio_out11.pdf
[2] Há também os casos em que o Estado simplesmente
lança mão do recurso à emissão de moeda para gerar os recursos necessários. Em
tese isso não provoca aumento da dívida, mas aí surge o problema da inflação
causada pelo uso descontrolado desse subterfúgio.
Paulo Kliass é Especialista
em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e
doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte:
Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto, 24/11/2011
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